No silêncio do quarto jazia eu. Morto.
Apático à vida. Minha mãe, católica, chamara a rezadeira. Dona Terezinha vinha.
Com ramo na mão, fazia o que sabia e podia. Sua reza era infalível. Mas nem os
olhos eu mexia. Grudados nas telhas. Também não fechavam. Talvez por isso ainda
houvesse esperança. Meu pai retornava do trabalho à noite, dava uma olhada pra
cama de palha, espantava uma mosca que teimava em me beijar os lábios. Pegava
nos pés, frios e fazia um gesto de cabeça que queria dizer “um filho a menos,
um anjo a mais”. Eu seria o oitavo anjo que meus pais mandavam pro céu.
No dia seguinte, a rezadeira
voltava. Mais reza, mais erva. O cachimbo, semiapagado, era reanimado pelo
puxão que lhe vinha dos pulmões, e a fumaça me nublava o rosto e se evaporava
pelo quarto. No canto, um sapo coaxava uma única vez, antes de ser expulso a
ponta pés. E como tudo que ocorria nesses dias de angústia, ele retornava para
o canto úmido, onde ficava o pote coberto por um pano alvo, tendo o copo de
alumínio ao pé. Minha mãe transitava de lá para cá. Ora olhando o filho
encomado, ora mexendo a panela onde o minguado feijão fervia. Ela devia se
perguntar se eu sentia o cheiro da comida, se eu ouvia a batida no tabuleiro de
carne que seu Batista carniceiro batia com força para chamar os clientes, se eu
sentia o caldo que sabia a quase nada...
Anoitecia. Meu pai chegava, e
olhava, e balançava a cabeça. As estrelas tornavam a brilhar e metiam-se intrometidas pelas frestas das telhas e também se diziam “não tem jeito”. As
redes ao lado da cama, onde dormiam minhas irmãs, gemiam embaladas pelos pés
que tocavam na parede, num vai e vem incessante. Sob as sombras tremulantes da
luz da lamparina, elas olhavam o doentinho, para ver se Deus já viera buscá-lo.
Era teimoso.
No vigésimo dia, minhas irmãs
saíram cedo com algumas amigas da mesma idade. Tinham Catorze anos e precisavam
de diversão. E não era grande diversão preparar a partida de quem já aqui não
estava? E foram de porta em porta pedindo ajuda “para o caixão do anjinho”. “Já
morreu?” Perguntavam. “Não. Mas de hoje não passa”. Não havia dinheiro. Davam o
que podia. Um pouco de café, um pacote de bolacha, umas ervas para o chá, duas
colheres de açúcar. “Quando acontecer, a gente vem chamar para o velório”. E
saíam esperançosas de que muita gente acorreria à casa e compareceria também ao
enterro.
No vigésimo primeiro dia, ele
apareceu. Era pequeno. Da cabeça ao começo da calda devia ter uns quinze
centímetros. Pôs-se entre a fresta de uma telha que estava quebrada. O danado
afastou um pouco mais e ali se pôs a me observar, sentado em um caibro, mudando
para outro de quando em vez, pondo-se frente ao meu rosto, de modo que seus
olhos verticalizavam com os meus. Quem primeiro o viu foi meu pai, que o olhou
e percebeu que ele tentava me imitar. Mas ele não conseguia ficar por muito
tempo estático. Minha mãe exortou a meu pai que o expulsasse, porque tinha
ouvido dizer que uma criança havia morrido depois de ser mordido por um “bicho
desses”. Ele, paciente, mexeu a cabeça como a dizer “e quem está vivo”!
Pela manhã, as amigas de minhas
irmãs chegaram para saber se a diversão estava garantida, quem sabe até se
naquele velório não aparecia um moço bonito”! Minha irmã mais velha, balançou a
cabeça desanimada. Minha mãe entrou esfregando as mãos num pano e deu um grito:
Ele acordou!” Era verdade eu estava mexendo os olhos, procurando o saguí que andava
de um caibro para outro, balaçando a cabeça e emitindo gritinhos. Cansado de
tentar me imitar, o danadinho resolveu me despertar das profundezas escuras
daquele transe, para que eu o imitasse.
Minha mãe, quando me contava
essa história, destacava bem o sorriso que eu emitia, quando ouvia os gritinhos
do soim, era assim que chamávamos. Ela dizia que naqueles dias a vida voltou
para mim como se nunca houvesse saído. Voltei a comer, a chorar e a... Deixa
pra lá. O certo é que eu tive a vida de volta por capricho de um soim. Quanto
às minhas irmãs, essas tiveram de arranjar outras atrações para se divertirem.
(Alves Andrade)
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