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sexta-feira, 11 de maio de 2012

PARA TODAS AS MÃES DO MUNDO E DO CÉU

Para Sempre

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.

Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

(Por Carlos Drumond de Andrade)

sexta-feira, 20 de abril de 2012

ÀS SEIS DA TARDE


Às seis da tarde
as mulheres choravam
no banheiro.
Não choravam por isso
ou por aquilo
choravam porque o pranto subia
garganta acima
mesmo se os filhos cresciam
com boa saúde
se havia comida no fogo
e se o marido lhes dava
do bom
e do melhor
choravam porque no céu
além do basculante
o dia se punha
porque uma ânsia
uma dor
uma gastura
era só o que sobrava
dos seus sonhos.

Agora
às seis da tarde
as mulheres regressam do trabalho
o dia se põe
os filhos crescem
o fogo espera
e elas não podem
não querem
chorar na condução
Marina Colasanti

quinta-feira, 19 de abril de 2012

EMBRIAGA-TE


http://imgs.obviousmag.org/archives/uploads/2006/061112_pissaro_montmartre1.jpg


Devemos andar sempre bêbados.
Tudo se resume nisso.
Para não sentires o tremendo fardo do tempo que te pesa sobre os ombros e te verga ao [encontro da terra,  
Embriagar-te sem cessar.
Mas com quê!
Com vinho, com poesia, ou com a virtude.
A teu gosto.
E se alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre as verdes ervas de uma vala, na [solidão morna do teu quarto, no adro de uma catedral ou sob o sol causticante da [caatinga tu acordares com a embriaguez atenuada ou desaparecida, 
Pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que se cala, a tudo o [que grita, a tudo o que canta, a tudo o [que fala;
Pergunta-lhes que horas são: 
"São horas de te embriagares.
Para não seres como os escravos martirizados do Tempo, injustiçado dos homens, 
embriaga-te, embriaga-te sem cessar. 
Ma como quê!
Com vinho, com Poesia. com a virtude".
A teu gosto!
(Baudelaire, adaptado)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

LIBERDADE

        

      Deve existir nos homens um sentimento profundo que corresponde a essa palavra LIBERDADE, pois sobre ela se têm escrito poemas e hinos, a ela se tem até morrido com alegria e felicidade.
      Diz-se que o homem nasceu livre, que a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade de outrem; que onde não há liberdade não há pátria; que a morte é preferível à falta de liberdade; que renunciar à liberdade é renunciar à própria condição humana; que a liberdade é o maior bem do mundo; que a liberdade é o oposto à fatalidade e à escravidão; nossos bisavós gritavam “Liberdade, Igualdade e Fraternidade!”. Nossos avós cantaram: “Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil!”; nossos pais pediam: “Liberdade! Liberdade! – abre as asas sobre nós”, e nós recordamos todos os dias que “o sol da liberdade em raios fúlgidos – brilhou no céu da Pátria…” – em certo instante.
       Somos, pois criaturas nutridas de liberdade há muito tempo, com disposições de cantá-la, amá-la, combater e certamente morrer por ela.
       Ser livre – como diria o famoso conselheiro… – é não ser escravo; é agir segundo a nossa cabeça e o nosso coração, mesmo tendo que partir esse coração e essa cabeça para encontrar um caminho… Enfim, ser livre é ser responsável, é repudiar a condição de autônomo e de teleguiado – é proclamar o triunfo luminoso do espírito. (Supondo que seja isso.)
        Ser livre é ir mais além: é buscar outro espaço, outras dimensões, é ampliar a órbita da vida. É não estar acorrentado. É não viver obrigatoriamente entre quatro paredes.
       Por isso, os meninos atiram pedras e soltam papagaios. A pedra inocentemente vai até onde o sonho das crianças deseja ir. (Às vezes, é certo, quebra alguma coisa, no seu percurso…). Os papagaios vão pelos ares até onde os meninos de outrora (muito de outrora!…) não acreditavam que se pudesse chegar tão simplesmente, com um fio de linha e um pouco de vento!…
        Acontece, porém, que um menino, para empinar um papagaio, esqueceu-se da fatalidade dos fios elétricos e perdeu a vida. E os loucos que sonharam sair de seus pavilhões, usando a fórmula do incêndio para chegarem à liberdade, morreram queimados, com o mapa da Liberdade nas mãos!…
     São essas coisas tristes que contornam sombriamente aquele sentimento luminoso da LIBERDADE. Para alcançá-la estamos todos os dias expostos à morte. E os tímidos preferem ficar onde estão, preferem mesmo prender melhor suas correntes e não pensar em assunto tão ingrato.
      Mas os sonhadores vão para a frente, soltando seus papagaios, morrendo nos seus incêndios, como as crianças e os loucos. E cantando aqueles hinos que falam de asas, de raios fúlgidos – linguagem de seus antepassados, estranha linguagem humana, nestes andaimes dos construtores de Babel…
(Cecília Meireles)

quinta-feira, 21 de abril de 2011

DOM CASMURRO


        
            Um dos romances mais interessantes de se lê é Dom Casmurro, de Machado de assis. Quem não o leu, faça-o. Será um prazer tão imenso que possivelmente será difícil encontrar outro similar. Desculpem-me a exageração, como diria o próprio machado, mas vai aí um fundo de verdade. A linguagem de machado de Assis é responsável pelo sucesso da obra, até mais do que a história. O modo como é conduzida a trama é a linguagem. Vejamos esse pequeno trecho:
           "Não me pude ter. As pernas desceram-me os três degraus que davam para a chácara, e caminharam para o quintal vizinho. Era costume delas, às tardes, e às manhãs também. Que as pernas também são pessoas, apenas inferiores aos braços, e valem de si mesma, quando a cabeça não as rege por meio de ideias." (Capítulo XIII)
           Se a história é genial no que tange a dúvida  do adultério que permeia a mente de quem discute a obra sob esse ponto, a linguagem é genialíssima, como diria a personagem José Dias, pela objetividade, pela metáfora da existência que desenvolve, pelo vocábulo que lhe preenche as entranhas. 
       Fazia tempo que não o lia, e algumas passagens já me haviam esquecido. Tomei-o novamente e descobri mais uma vez o prazer da leitura. Quando eu era pequeno, dez anos, acho, li um livro que me pareceu divino: Amor, o pacto quebrado, de Bábara Cartland. Cinco anos, li-o novamente. A história me pareceu interessante, mas já encontrei algumas falhas de descrição, sequência. Mais à frente li-o novamente e já o achei uma lástima. A culpa não é da autora, mas minha, que cansei de ler histórias em quadrinho, livros de bolso e fui ler José de alencar, Aluísio Azevedo. 
          Com Machado, conforme dito acima, isso não acontece. Cada vez que lemos mais descobrimos maravilhosas construções. Enigmas linguísticos vão sendo desfeitos e releituras vão se fazendo em nossos conceitos. Vejam o trecho abaixo, para depois me dizer se vale ou não a pena ler Dom Casmurro.
                     "O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas creem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal frequência é cansativa." (Cap. II)
    (Professor alves, 13/04/2011)

quinta-feira, 3 de março de 2011

DONA GUIDINHA DO POÇO

SONETO PARA GUIDINHA
http://img.mercadolivre.com.br/jm/img

Vêem essa mulher atada a grilhões,
Que aos nossos olhos desfila altaneira?
Vá que finja passar dessa maneira,
Foi senhora de bens e de milhões.

Antes ria alto e barrava os barões
E só respeitava sua bandeira
Feita de ímpeto e palavra cardeira,
De todos recebia bajulações.

O despudor que lhe penetrou a casa
E também instigou-lhe a índole impudica
levou-a ao jardim suspenso da perfídia.

Por isso hoje lhe cortaram a asa
E sem moral acorrentada fica,
Já seus bem jazem entregues a desídia
(Professor Alves, Maio de 2004)

sábado, 29 de janeiro de 2011

LUCÍOLA


(Soneto incidental)

Essa moça que vemos no ataúde
Atendia pelo nome de Lúcia
Virou-se na vida com garra e astúcia
'Té que uma paixão lhe levou a saúde.

Em vida, do alcouce foi rainha
E nenhuma disputou-lhe a coroa;
Molhada da cidade na garoa,
Despedaçou orgulho como fuinha.

Que demônio levou esse anjo à vida,
Pois habita em seus olhos pudicícia
E o sorriso lhe é meigo, divinal?

Foram aflições em que se viu metida
Dos tigres indecentes a malícia,
Mas o amor a livrou de todo o mal.

(Professor Alves, Setembro de 2003)

terça-feira, 12 de outubro de 2010

ESTA VIDA


Um sábio me dizia: esta existência,
não vale a angústia de viver. A ciência,
se fôssemos eternos, num transporte
de desespero inventaria a morte.
Uma célula orgânica aparece
no infinito do tempo. E vibra e cresce
e se desdobra e estala num segundo.
Homem, eis o que somos neste mundo.

Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um monge me dizia: ó mocidade,
és relâmpago ao pé da eternidade!
Pensa: o tempo anda sempre e não repousa; 
esta vida não vale grande cousa.
Uma mulher que chora, um berço a um canto;
o riso, às vezes, quase sempre, o pranto.
Depois o mundo, a luta que intimida,
quadro círios acesos : eis a vida

Isto me disse o monge e eu continuei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um pobre me dizia: para o pobre
a vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus, eu não creio nesta fantasia.
Deus me deu fome e sede a cada dia
mas nunca me deu pão, nem me deu água.
Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoa
de andar de porta em porta, esfarrapado.
Deu-me esta vida: um pão envenenado.

Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Uma mulher me disse: vem comigo!
Fecha os olhos e sonha, meu amigo.
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira.
No telhado, um penacho de fumaça.
Cortinas muito brancas na vidraça
Um canário que canta na gaiola.
Que linda a vida lá por dentro rola!

Pela primeira vez eu comecei a ver,
dentro da própria vida, o encanto de viver.
 
 (Guilherme de Almeida, do Site: www.revista.agulha.nom.br/gu.html)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

NEL MEZZO DEL CAMIN...



Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

(Mário Pederneiras, Poesias, Sarças de fogo, 1888.)

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

SONETO DA FÊMEA I



Massa de carne 
                           pronta 
                                       pro banquete
Da farsa antropofágica, 
                                           da guerra
Que chamamos de amor.
                                          Solta
                                                     Passível
Ela dança na nuvem 
                                   provocando
O gesto decisivo do carrasco
Que forja e teme
                             que deseja e tolhe
Mas tem que permitir:
                                      contrita,
                                                     esponja
Em forma humana, 
                                ela ressuma
                                                    e ainda
Se perfuma
                    se adorna
                                     se camufla
(Isto é: se tempera)
                                 e preparada
Se deixa devorar 
                             feita uma fruta
Arena ensanguentada 
                                     após o jogo
Ela queda
                  - invadida  ressentida,
E ele prossegue
                           - isento e triunfante.

      (Pedro Lira, in Desafio, uma Poética do amor)

domingo, 12 de setembro de 2010

FRASES DE EXUPERY


Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.


Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos.

Amar não é olhar um para o outro, é olhar juntos na mesma direção.

A gente corre o risco de chorar um pouco quando se deixou cativar...

Foi o tempo que dedicastes à tua rosa que fez tua rosa tão importante"

O verdadeiro homem mede a sua força, quando se defronta com o obstáculo.

Num mundo que se faz deserto, temos sede de encontrar um amigo.

Antoine Saint Exupery, in o Pequeno Príncipe

sexta-feira, 14 de maio de 2010

SONETO DO AMOR TRAÍDO

SONETO DO AMOR TRAÍDO

Não há traição:
                        Quem ama não trai nunca.
Seu amor não 'tá só no que defronta
mas n'alma com que olha
                                     - e o que vê sempre


É o seu próprio ser 
                             multiplicado.
E não se trai a si. 
                           Quando
                                       (por curvas)
alguém larga um alguém por outro alguém,
isso já estava morto
                               e martelava
por hábito
                por vício
                             por capricho
ou por receio de encarar o novo
que entanto acresce
                                enquanto o já provado
apenas nos repisa.
                             Se é traição
quem trai faz um favor:
                                  derrete o nó.
E segue a natureza
                              porque aquilo
não era mais amor: 
                              - era insistência.             
  
 (Pedro Lira, in Desafio)                

domingo, 2 de maio de 2010

FELICIDADE CLANDESTINA


POR CLARICE LISPECTOR



 Ela era gorda. baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com sua letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me subme tia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía asReinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era meu modo estranho de andar pelas ruas do Recife. Dessa vez nem cai: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes eu aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas, houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A se nhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só pra depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante.




[in O Primeiro Beijo e Outros contos, Ática, São paulo, 1990, p. 52]

sábado, 24 de abril de 2010

POLIANA



Quando Poliana chegou à casa da tia, surpreendeu Nanci e ao leitor por não reclamar de nada. Se a cama tinha uma mola solta, ela disse: "Que bom, minha cama já vem com massageador!" A janela não tinha cortinas: "Com uma paisagem dessas, quem precisa de cortinas!" No guarda roupa não havia espelho: "Que legal, assim não vejo minhas sardas!" Nanci então começou a imaginar "que menina estranha aquela!"  Até que um dia Poliana contou para Nanci seu segredo:

O JOGO


"No dia seguinte, ao ver Poliana alegre como um passarinho, Nanci não aguentou de curiosidade:
-Você é sempre assim?
-Assim como?
-Tão contente.
-Desde que aprendi o jogo, nunca mais fiquei triste.
-De que jogo você está falando?
-Do jogo do contente.Como é esse jogo?
-É ver sempre o lado bom de tudo que nos acontece.
-Quem te ensinou?
-Foi meu pai. Tudo começou quando eu fui receber um presente de natal. Os padres distribuíam presentes para as crianças pobres. eu peguei o meu pacote e fui pra casa. eu queria muito ganhar uma boneca, eu sonhava com uma boneca. Mas quando abri a caixa, quase morri de tristeza. Em vez de uma boneca, eu tinha ganhado um par de muletas. 
- Um par de muletas? que horror!
- Foi isso mesmo que eu pensei, um horror. Comecei a chorar, desesperada. Então meu pai me acalmou e disse que em vez de ficar triste com as muletas, eu devia ficar feliz por não precisar usá-las. Ele estava certo. Que felicidade maior do que não precisar usar muletas? No mesmo instante eu parei de chorar e saí pulando pela casa. É assim que funciona o jogo do contente."  

É assim que devemos jogar com a vida, ver sempre o lado bom das coisas que nos acontecem e que não são o que esperamos, e não vermos o lado ruim das coisas boas, como algumas pessoas fazem, parece-nos, com o prazer da infelicidade. Bela lição essa de Poliana. Acho que essa menininha deveria formar uma escola para adulto, juntamente com o principezinho, aquele lá do planeta X não dei das quantas. 

                                     

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O POVO X IRONIA

O Povo


Não posso deixar de concordar com tudo que dizem do povo. É uma posição impopular, eu sei, mas o que fazer? É a hora da verdade. O povo que me perdoe, mas ele merece tudo o que se tem dito dele. E muito mais. 

As opiniões recentemente emitidas sobre ao povo até agora foram tolerantes. Disseram, por exemplo, que o povo se comporta mal em grenais. Disseram que o povo é corrupto. Por um natural escrúpulo, não quiseram ir mais longe. Pois eu não tenho escrúpulo. 

O povo se comporta mal em toda parte, não apenas no futebol. O povo tem péssimas maneiras. O povo se veste mal. Não raro, cheira mal também. O povo faz xixi e cocô em escala industrial. Se não houvesse povo, não teríamos o problema ecológico. O povo não sabe comer. O povo tem um gosto deplorável. O povo é insensível. O povo é vulgar. 

A chamada explosão demográfica é culpa exclusivamente do povo. O povo se reproduz numa proporção verdadeiramente suicida. O povo é promíscuo e sem-vergonha. A superpopulação nos grandes centros se deve ao povo. As lamentáveis favelas que tanto prejudicam nossa paisagem urbana foram inventadas pelo povo, que as mantém contra os preceitos da higiene e da estética. 

Responda, sem meias palavras: haveria os problemas de trânsito se não fosse pelo povo? O povo é um estorvo. 

É notória a incapacidade política do povo. O povo não sabe votar. Quando vota, invariavelmente vota em candidatos populares que, justamente por agradarem ao povo, não podem ser boa coisa. 
O povo é pouco saudável. Há, sabidamente, 95 por cento mais cáries dentáries entre o povo. O índice de morte por má nutrição entre o povo é assustador. O povo não se cuida. Estão sempre sendo atropelados. Isto quando não se matam entre si. O banditismo campeia entre o povo. O povo é ladrão. O povo é viciado. O povo é doido. O povo é imprevisível. O povo é um perigo. 

O povo não tem a mínima cultura. Muitos nem sabem ler ou escrever. O povo não viaja, não se interessa por boa música ou literatura, não vai a museus. O povo não gosta de trabalho criativo, prefere empregos ignóbeis e aviltantes. Isto quando trabalha, pois há os que preferem o ócio contemplativo, embaixo de pontes. Se não fosse o povo nossa economia funcionaria como uma máquina. Todo mundo seria mais feliz sem o povo. O povo é deprimente. O povo deveria ser eliminado. 

Luis Fernando Veríssimo 

Há muito tempo conheço esse texto, e ele sempre me pareceu normal, normal, normal (como diria Jessier Quirino). Nessa semana, procurando-o na internet, encontrei-o em alguns blogs. Há muitos comentários a seu respeito. Em todos eles, o autor, Veríssimo, é defenestrado, em alguns casos até menoscabado, pela sua suposta visão de povo. Quem não conhece o autor, pela obra é claro, lendo esse texto e não parar para fazer análise da figura de linguagem denominada IRONIA, com certeza vai ter atitude semelhante à daqueles que fizeram os comentários supracitados. é preciso que vejamos nele a ideia, não do autor, mas a da elite encarnada nele. Como o poeta é capaz de se travestir, de se multiplicar a si mesmo(desculpem a redundância), Veríssimo trai o seu nome (verdadeiro ao extremo) para fazer o mesmo.  Essa é a visão que a elite tem do povo, das massas, para ela o causador de todos os males sociais é o povo. Quando Veríssimo enfatiza isso, surge então toda sua ironia de deboche contra a burguesia, que fede, mas que tem dinheiro pra comprar perfume.   

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NA ESCURIDÃO MISERÁVEL

FERNANDO SABINO  “Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o m...