segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

CAPÍTULO IV
“Achei cousa mais amarga do que a morte: a mulher cujo coração são redes e laços e cujas mãos são grilhões; quem for bom diante de Deus fugirá dela, mas o pecador virá a ser seu prisioneiro.”
(Eclesiastes: 7; 26)



Tinha dezessete anos e um vício: tabagismo. Tudo começou quando tinha doze anos. Sempre que saíamos da escola um ou outro colega aparecia com um cigarro. À época não conhecia as conseqüências de um hábito como o de fumar ou de qualquer outro vício, pois não havia publicidade contra eles. E para mim, o que interessava era experimentar, saber que gosto tinha aquela brasa que meu tio puxava como se fosse o ato mais prazeroso da existência humana. Quando os colegas começaram a fumar depois da aula, eu fui embalado nessa onda, que além de tudo era proibido pela escola e aumentava a idéia de prazer. O que eu não sabia era que aquele momento de “curtição” iria passar, com o tempo, para os meus colegas, mas para mim não. Tornou-se necessidade a ponto de em pouco tempo eu não conseguir mais esconder de ninguém. Para meus pais foi uma dor de cabeça, mas como sempre acontece, com o tempo, acabaram se acostumando à idéia, mas sempre que podiam listavam-me todos os males causados por esse vício idiota. Eu tentava explicar-lhe que a coisa fugira ao meu controle. Eu já fumava, com quinze anos, trinta a quarenta cigarros diários. Era compulsivo. O vício preenchia todos os eventos diários. Depois do café acendia um cigarro; saía de casa, acendia mais um; se chegava, outro; se ia tomar banho, também, e assim por diante. Tudo era motivo para fumar. O resultado disso foram os dentes amarelados e uma pouca resistência física. Para subir, por exemplo, dois lanços de escada, era-me uma tormenta.
Por isso é que eu digo: tinha dezessete anos e era escravo de um vício. Tentei de diversas formas parar com esse mau hábito, mas todas as tentativas foram inúteis. Tentei uma solução lida em um livro, desses que vendem nas livrarias aos montes. O método consistia em paulatinamente diminuir os cigarros diários, ir cortando-os em determinados horários até que só restasse o último, o da hora de dormir. E assim eu fiz. Cortei primeiro o que eu fumava depois do café da manhã, em seguida um da tarde e assim fui. Até que me restaram cinco cigarros diários e uma angústia terrível. O rendimento escolar caiu. Eu não pensava noutra coisa senão no próximo cigarro. As pernas formigavam e a cabeça não se detinha em nada que queria fazer. Para não ser reprovado, fumei todos os cigarros que os nervos me ordenavam fumar, tirei o atraso. Abandonei de vez o método e voltei a ser “normal”. A partir daí assumi novamente o vício, como se fosse algo que fizesse parte de mim, sem remorso. Pois o cigarro era meu prazer e na minha cabeça começou a se formar a idéia fixa de que quem quisesse me aceitar teria que ser do jeito que eu era. Passei a adotar frases para desarmar os antitabagistas, como “Sei que o cigarro mata devagarinho, mas eu não tenho pressa de morrer”, ou “Desconfia dos que não fumam, eles não têm mundo interior, eles não têm sentimento, pois fumar é uma forma disfarçada de suspirar.”
Foi nesse ínterim que conheci Ângela. Uma colega de 2ª série do Ensino Médio. De repente nos pegamos falando as mesmas coisas, ouvindo as mesmas músicas e fumando os mesmos cigarros. Foi paixão imediata. Era nos nossos beijos que me encontrava e me realizava. Íamos para a Ponte Metálica (Ponte dos Ingleses) e lá ficávamos até o manto noturno desabar completamente sobre a terra, inventávamos versos, cifras. Depois passamos a inventar posições, era o prazer sexual que finalmente me vinha despertar as mais loucas sensações; seus lábios eram doces como favos de mel e as alucinações que me sussurrava azeitavam o meu viver, enquanto sua língua, penetrando meus ouvidos era aguda como espadas. Quando estava só, lembrava-me de Aliel e por onde passava buscava-a. Ela devia ter então onze anos e eu não a encontrava, só em setembro é que ela me abria os braços em desespero, e as lágrimas me vinham pela manhã por não poder salvar a mulher da minha vida.
Passava o dia inteiro fora de casa, trazia sempre às costas a mochila da escola, que continha pouco material escolar e mais revistas de cifras, poemas diversos e livros de filosofia, além é claro de duas ou três carteiras de cigarro. Tinha sempre o cuidado de não deixar faltar meus “inseparáveis companheiros”. Mais da metade do dinheiro que meus pais me davam para o lanche e para o transporte era consumida pelo vício. E eles me davam sempre mais do que o necessário, já prevendo isso. Apesar de estudarmos na mesma sala, Ângela fazia questão de só nos vermos fora da escola. E assim à tarde nos encontrávamos e eu me transmudava para o mundo da paixão.
Um dia, Flávio, um dos poucos amigos que tinha no colégio, chegou e me disse que Ângela fazia jogo duplo. Namorava ao mesmo tempo comigo e com um garoto da 3ª série. O chão abriu-se sob meus pés, fiquei desnorteado e esbofeteei meu amigo para depois desaparecer de sua frente. Não podia ser verdade! Ela me amava! À tarde fui enfático com ela e lhe pedi a verdade. Ela negou tudo, disse que o Flávio queria era fazer intriga, que vivia dando em cima dela, que eu não tinha motivos para desconfiar dos seus sentimentos, por fim chorou. Era só o que eu queria e num abrir e fechar de ouvidos cri na sua versão para os fatos.
Mas o pior veio em seguida quando descobri que era tudo verdade. Ela não fazia jogo duplo, fazia jogo triplo, jogo quádruplo e até com um professor da escola ela transava. Soube depois da existência de um tal clube da Ângela, formado por homens de todas as idades que, entre doses de uísque, revezavam a posse de seu corpo. Diante da queda da máscara da mulher que eu amava como louco, eu me desesperei. Mesmo assim, ela continuava negando e eu esperava essa negação para cair em seus braços novamente. Ela era o meu segundo vício. Meu corpo agora dependia do duplo: dela e do cigarro. Faltava-me o terceiro: o álcool. Para enganar a mim mesmo e imaginar que era amado por Ângela e que ela só pertencia a mim, unicamente, comecei a beber. Quando ela saía de meus braços, eu entrava no primeiro bar que encontrava e tomava algumas cervejas. Com o tempo adotei uma espelunca, próximo a minha casa. Lá, enquanto se jogavam cartas, eu bebericava e conversava com um e outro e só tornava a casa quando estava completamente bêbado. O fim de tudo era o amargo na boca semelhante ao jiló, que me levava ao inferno aqui mesmo na terra.
Mas para minha sorte caí doente, gravemente doente. Uma tosse crônica ocupava meu tempo, aos poucos perdi o apetite e comecei a perder peso. Um dia, sem coragem de me levantar, tive um acesso de tosse seguido de sangue e pus, desmaiei no meio da rua. Acordei num hospital, na manhã seguinte, sem lenço e sem documentos, pois haviam roubado minha inseparável mochila. Quando procurei saber onde me encontrava, fiquei surpreso quando me disseram ser o Hospital São José, lugar onde se curam doenças infecto-contagiosas. Pensei estar com AIDS e agradeci a Deus por não ter documentos, só assim meus pais não me encontrariam. Mais tarde o médico me deu o diagnóstico: “Você contraiu uma moléstia causada pela Mycrobacterium tuberculosis, também conhecida como bacilo de Koch.” Era a tuberculose, o mal do século XIX que vitimou Castro Alves, Álvares de Azevedo e quase toda uma gerações de jovens, que agora vinha me salvar.
Foi lá nesse antro de sofrimento e lamento que comecei a entender e a compreender o meu destino.


sábado, 15 de novembro de 2008

DE VIDAS, DE SONHOS, DE RENCONTROS

CAPÍTULO III
“Tudo tem o seu
tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu.”
(Eclesiastes: Tempo para Tudo)


A partir de então o sonho continuou a se repetir setembro após setembro tal qual se revelara da primeira vez quando eu tinha oito anos. Minha vida seguia seu curso natural. No íntimo eu sabia que tudo viria com o tempo. O tempo é meu grande aliado. Nada de bom me veio que não fosse de forma natural, com o tempo. Há quem diga que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Mas eu acredito mais no provérbio que diz que a felicidade é como uma borboleta, se a perseguimos, ela foge de nós; mas se a esperamos, no cumprimento do dever, ela virá pousar em nosso ombro inexoravelmente. Assim não há problema pelo qual eu tenha passado até hoje que o tempo não tenha resolvido. Está claro que não devemos correr atrás de problemas para deixá-los às expensas do tempo. Mas diante de um, por mais grave que pareça, não devemos arrancar os cabelos nem pensar em suicídio. A paciência, a calma e a busca de uma solução adequada é a melhor saída. Lembro-me de que certa vez minha mãe me dera o dinheiro para eu pagar o colégio, e eu o gastei, primeiro um pouquinho, esperando repor essa quantia depois. Mas, com nosso espírito consumista latejando, toquei fogo no restante. Quando me dei conta do ocorrido, fiquei desesperado. “E agora, o que vou fazer?” Perguntava-me atônito, tentando imaginar como agiria minha genitora ao saber que o filho gastara o dinheiro da mensalidade da escola. O que fiz para enganá-la, me envergonha até hoje. Confiando em sua deficiência, destaquei a folha do talão e guardei-a num compartimento escondidinho da minha carteira de cédulas. Ela, que era portadora de miopia, não se esforçaria para ver no canhoto o carimbo da tesouraria da escola. No entanto passei quase todo o dia aperreado para encontrar uma saída. Foi quando de repente me veio a idéia da efemeridade das coisas. Nada dura para sempre, nesta vida tudo é passageiro. O que eu leria posteriormente em filósofos e poetas me era claro como as águas de um rio cristalino. Em Pe. Antônio Vieira, posteriormente eu leria: “O tempo se atreve a colunas de mármore...” Alguém outro também disse: “O futuro será uma eterna tormenta, até que um dia o tempo o torne passado.” E daquele momento em diante, essa idéia passou a me confortar sempre que algum problema tenta me tirar a paz. Até mesmo uma dor de dente, eu a curo com o tempo. Claro está que o problema deverá depois a seu tempo ser eliminado. No caso do dinheiro do pagamento da mensalidade escolar, eu fiz uma caixinha e todos os dias colocava uma ou mais moedas, que pedia a um tio e a meu pai sem dizer para quê. E grande foi minha felicidade, quando no final do ano tinha recuperado quase todo o capital extraviado. E a idéia de que as coisas são fugazes sedimentou-se em mim, pois como disse o profeta: “Passarão céu e terra, só minhas palavras não passarão.”

sábado, 8 de novembro de 2008

CAPÍTULO II

CAPÍTULO II

“Se lembra do jardim, ó maninha,
coberto de flor?
Pois hoje só da erva daninha,
depois que ele chegou.”
(Maninha, Chico Buarque)


Era julho de 1982, portanto quase um ano após a repetição de meu sonho. Nós estávamos de férias na praia de Canoa Quebrada, no Ceará. Nessa época a especulação turística ainda não havia modificado a beleza natural daquele paraíso. Eu jogava futebol com alguns garotos da minha idade, num esforço fenomenal para conter a bola em função da velocidade do vento, esforço esse só justificado pela realização da copa do mundo, evento que transforma um país inteiro em jogadores e técnicos de futebol.
Cansado, esbaforido pelo esforço inútil, sentei-me na areia, à espera de minha mãe, que deveria estar atrás de mim com uma água ou coisa que o valha, quando se aproximou de mim uma garotinha de mais ou menos quatro anos, sentou-se ao meu lado e disse com uma voz de falsete o mais natural possível:
─ Onde você esteve! Eu te procurei por toda parte.
Assustado eu perguntei:
─ Mas quem é você? Eu não conheço você.
─ Conhece sim, eu sou Aliel, sua irmã. Vamos, me leve até nossa mãe, ela deve estar preocupada.
Foi aí que eu percebi a semelhança física da menina com a moça que eu tentara salvar no sonho. Os olhos de um verde fascinante, envoltos por espessa sobrancelha, a boca pequena formando um M e um ar de desamparo que cativava, juntos com uma cabeleira negra contrastando com os olhos, completavam a imagem daquela moça. Como eu me demorei a responder, a menininha começou a choramingar dizendo que eu não queria voltar para casa com ela. Eu percebi então como aquela garotinha precisava de mim, tomei-a então pelo braço e, pela intuição, conduzi-a pela praia. Nesse momento vinha, como louca, correndo, uma mulher que, ao nos ver, abraçou a menina, que era sua filha.
─ Muito obrigada, garoto, por ter encontrado minha filha. – Disse segurando a menininha e fitando meu rosto – ela nunca se afastou da gente, mas hoje sumiu de repente. Ainda bem que apareceu você, meu anjo.
A menina olhou para a mãe e com a mesma naturalidade como se dirigira a mim falou:
─ Mas, Mamãe, eu não lhe disse que ia procurar meu irmão!
─ Desculpe – disse a mãe, voltando-se na minha direção – ela sempre fala nesse irmão que não tem.
Passou a mão no meu rosto, deu-me um beijo e se afastou arrastando com um pouco de violência, pelo braço, a pequena Aliel, que teimosamente andava com a cabeça voltada para mim. Fiquei só, pensando no que havia acontecido. Era realmente tudo muito singular, a familiaridade daquela criança me assustava. Eu tinha apenas dez anos e me deparava com um mistério que me poderia ser revelador ou se tornar por demais doloroso. À minha mente, para me salvar, veio a lembrança de que quando se é filho único, criam-se ilusões de amigos ou irmãos invisíveis. Minha mãe mesma me contara que, quando eu era bem pequeno, passava os dias todos brincando com um amigo, que ninguém via. Contra fatos não há argumentos. E isso me consolou.
Eu ando por uma rua de piçarra e ao longe ouço o marulho, o que me indica estar próximo à praia. Ao contrário das outras vezes, está anoitecendo. Para chegar à praia, é necessário saltar sobre muitas pedras, que formam os diques, vistos nas vezes anteriores. Só que eu não desço. Caminho ao longo do espigão deitado que ladeia toda a praia. Mais à frente sento-me e me ponho a admirar a lua, que surge no além. A praia não existe, a água do mar ocupa toda sua extensão e eu posso tocá-la e brincar com as algas que bóiam. Nesse momento aproxima-se de mim uma mulher, vestida com um roupão marrom e um véu escuro sobre a cabeça. Senta-se à minha frente, retira o véu. É a mesma moça dos outros sonhos. Eu a amo, ela é linda, de uma beleza que não se pode descrever porque ela só é perceptível à luz do coração. Eu miro o seu rosto e no fundo dos seus olhos eu vejo a impossibilidade de ficarmos juntos, algo conspira contra nós, e eu a amo, amo-a tanto que sinto dores, e as lágrimas me correm pelas faces. Ela abraça-me e ficamos assim por um tempo indefinido.
Quando minha mãe me chamou eu já estava acordado e chorava por não ter Aliel ao meu lado. Era ela. A moça do sonho era a mesma garotinha da praia. Eu não sabia explicar o que estava ocorrendo, mas eu sabia que tinha de encontrar aquela menina. A minha existência estava, de uma forma ou de outra, ligada à dela, e isso me parecia inexorável.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

CAPÍTULO I

“ Mas onde se achará a sabedoria?
E onde está o lugar do entendimento?
O homem não conhece o valor dela,
Nem se acha ela na terra dos viventes.”
(Jó: 28, 12 e 13)



Não me lembro bem da primeira vez que tive aquele sonho. Mas sei que era muito pequeno. Talvez tivesse menos de oito anos. As marcas que ele me deixou na época, entretanto, me são lembradas até hoje. Até porque ele se repetiu indefinidamente, até que um dia sumiu; suas lembranças, porém, ficaram registradas, e eu, na rua, chegava a identificar pessoas as quais não conhecia, mas que estavam lá, povoando esses momentos oníricos.
Mas o que na verdade é o sonho, que magia é essa que nos acompanha durante nossa existência e para qual não temos explicação, enquanto seres materiais? É realmente uma incógnita esse estado de espírito. Para alguns é a realização de um desejo. Mas como se pode desejar a morte de um ente querido, como um filho ou os pais? Seria então uma projeção do futuro ou uma memória do passado? Ou será tudo isso, dependendo do estágio de nosso pensamento e de nossa alma? Vamos, pois, ao sonho que me impressionou a infância e que me abriria finalmente as portas da compreensão da existência.
Como havia afirmado anteriormente, à primeira vez que tive esse sonho deveria ter por volta dos oito anos. Até então nenhum sonho me havia chegado com tanta clareza, não que eu me lembre. Esse sim. Posso ainda sentir o cheiro da maresia e a cor do céu. Eu estou numa praia nunca vista antes por mim, a cor da terra é escura e há enormes diques de pedras, e há muitas pedras por toda parte, como se estivéssemos sempre esperando uma invasão do mar. Eu caminho pela praia catando conchas as quais deposito numa sacola feita de couro que trazia à tira colo. Próximo e um pouco além muitas pessoas caminham, pescam ou admiram o mar. De repente ouço um barulho semelhante ao rugido de um leão. Ao levantar a cabeça, vejo uma enorme onda, despontando no horizonte, vindo em direção à praia. Apesar do grande susto, olho em volta para ver se posso fazer algo pelas pessoas, e sem pensar corro na direção de umas crianças que brincam inocentemente e procuro afastá-las para o ponto mais alto possível. Com uma mão transporto algumas delas dali, enquanto com a outra escalo as pedras. Ajo rápido porque a onda se aproxima da praia com uma ira destruidora. Desesperado, vejo uma moça com os cabelos cobertos por um véu marrom tentando subir as pedras, entretanto sua roupa longa a impede de fazê-lo. Com pouco esforço, consigo alcançá-la. Mas é tarde! A onda com sua fúria indescritível nos arremessa contra o rochedo.
E eu acordei, mas não apavorado como quem tem um pesadelo, era como se eu apenas recordasse de um acontecimento de um passado remoto. Afinal, aquilo fora um sonho, não um pesadelo.
Durante os dias que se seguiram, eu não conseguia me livrar da imagem daquela moça. Seu rosto moreno e olhos assustados, no momento em que a peguei nos braços, fitaram meu rosto com um ar de gratidão e isso me abalou os nervos. Aquele rosto não me era estranho, por esse motivo eu o busquei em todas as pessoas adultas que cruzavam o meu caminho, até que cansei e voltei a ser criança. Passados alguns meses não me lembrava mais do sonho.
Não posso afirmar com precisão quanto tempo, mas um ano depois, aproximadamente, o sonho se repetiu. Era o mês de setembro. Depois eu me perguntaria se tinha algo a ver com o mês do meu aniversário, outubro. O certo é que nesse ano e nos outros que viriam o sonho me vinha sempre no mês de setembro. Não era o mesmo sonho ipse image, mas era parecido. Às vezes eu penso ser o mesmo sonho apenas com algumas alterações da minha imaginação, como se eu quisesse refazê-lo para adequá-lo a uma situação contemporânea.
Dessa feita eu não estou na praia, e sim no mar, no entanto o ambiente é o mesmo, a cor do céu, a tez escura das rochas e o verde da água. Eu estou insulado numa pedra, pescando. A minha fisionomia é a mesma da vez anterior. Minha pele escura, curtida pelo sol não contrasta com meus cabelos da mesma cor. Da vez anterior eu não lembrava de meus sentimentos, mas agora eu os tenho bem claros, meus sentidos estão alerta como se meu espírito captasse algo de anormal por acontecer, ou se estivesse ansioso por algo prestes a se realizar. Assim eu ouço o rugido do leão enfurecido, é a onda gigante que desponta no horizonte. Como da outra, vez viro-me para a praia e vejo pessoas correndo, dirijo-me com fortes braçadas até a areia e lá consigo salvar as três crianças, mas meu pensamento está na mulher que eu pretendo desesperadamente tirar do perigo. Desta vez salto para a praia numa busca quase insana daquela minha protegida, vejo-a correndo para mim de braços abertos, mas antes que a abrace a onda nos atinge novamente, sinto, então, uma dor profunda no peito, mas não sei se é dor física ou se é meu coração que dói por falhar novamente na minha missão.
E mais uma vez, como uma imagem de tevê é cortada quando há falta de energia, o sonho se apagou. Eu acordei.
Novamente minha curta existência se transformou numa busca daquele rosto, até que a infância e tudo que a compõem me chamaram novamente à vadiagem, as imagens daquele sonho tornaram-se latentes.






segunda-feira, 27 de outubro de 2008

DE VIDAS, DE SONHOS, DE RENCONTROS

A partir dessa semana, será publicado um romance de nossa autoria. Toda segunda, será úblicado um capítulo desse romance, cujo título provisório é DE SONHOS, DE VIDAS, DE REENCONTROS. Abaixo segue a primeira postagem que é a introdução capítulo.


INTRODUÇÃO

“Beija-me com os beijos de tua boca;
porque melhor é o teu amor do que o vinho.
Suave é o aroma dos teus ungüentos;
como ungüento derramado
é o teu nome.”
(Cânticos: 1 – 2;3)

Como é Veneza? Em uma única palavra: apaixonante. Não existe outra cidade como ela. Não há melhor lugar para se passar uma lua-de-mel. E assim, eu casado com a solidão, de quem há muito havia me separado, resolvi ir até lá. É realmente embriagante andar pelas vielas de Veneza, sente-se o cheiro da Idade Média, pisando-se nas ruas de pedra. Mas a maior atração, com certeza, são os canais. Para minha sorte, cheguei a essa magnífica cidade no primeiro sábado de setembro, e no domingo, debruçado numa das cem janelas do Hotel Carlton e Grand Canal, que estão de frente para o Grande Canal, conforme o nome já sugere, já assisti à Regata Storica. Trata-se de uma competição de gôndolas de diferentes categorias. Nos dias que se seguiram fiz o que todo turista faz, ao lado de sua esposa: fui à praça San Marcos; visitei a Igreja de mesmo nome, depois de encarar uma fila quilométrica; passeei numa gôndola com almofadas em formato de coração, e... cansei. Era mais ou menos o décimo quinto dia em Veneza e minha esposa já me aborrecera. Uma impaciência me percorria as costas e me formigava o cérebro. Precisava urgentemente encontrar alguém para conversar ou pelo menos para observar.
Era uma tarde de sexta-feira quando um casal me chamou a atenção. Eu havia acabado de chegar de uma caminhada pelas verdadeiras ruas de Veneza, que são aquelas onde moram seus habitantes, dir-se-iam ruelas que deixam-nos ver um monte de pontezinhas sobre os inúmeros canais. Estava debruçado na janela do quarto admirando a beleza do Grande Canal, tentando descobrir os mistérios medievais submersos naquelas águas, quando esse casal passou numa gôndola. Era um casal como outro qualquer, entretanto algo, que não sei o quê, chamou-me a atenção, com certeza não foi o fato de ambos serem brasileiros, pois não dava para fazer essa identificação da distância que eu me encontrava deles.
À noite, estava em um restaurante observando as luzes da cidade refletida nas águas, quando os vi novamente. Ele deveria ter uns cinqüenta anos, enquanto ela era um pouco mais jovem. Os dois conversavam, enquanto a mulher com um brilho sapeca no olhar fazia trejeitos para diverti-lo, oferecendo-lhe os lábios umedecidos de vinho. Ele ria e beijava-lhe os lábios, beijava-os não, acarinhava-os com os seus. É esse o verbo que melhor define aquela atitude. Ela, então, molhava novamente os lábios no vinho e ofertava-os a ele, que sorvia o líquido e permanecia alguns segundos, embriagado na beleza do rosto da companheira. De súbito me veio uma idéia: aproximar-me deles e conhecer a magia daquele amor, afinal não é todo dia que vemos um casal com tamanha demonstração de carinho. “Devem ser recém-casados” – pensei. Por outro lado, indagava-me se tinha o direito de interrompê-los, pois se eles estavam ali, tão longe de casa, sozinhos, é porque não queriam companhia. Entretanto, para minha surpresa, foi ele que se aproximou de mim. Enquanto ela saiu, para ir ao toalete, ele levantou e veio até mim:
─ Boa noite! Você é brasileiro, não é? – perguntou-me, passando a mão pelos cabelos grisalhos que também brilhavam sob o reflexo das luzes.
─ Sim – respondi apertando-lhe a mão.
─ Aqui é tão difícil encontrar alguém de casa que, quando o vi, não pude controlar a vontade de falar português, com alguém que não seja lusitano. – justificou-se quase impaciente por eu não convidá-lo a sentar-se. Quando percebi essa minha gafe, prontifiquei-me a fazê-lo.
Logo estávamos familiarizados. Quando sua bela esposa chegou, ele ma apresentou e os três ficamos conversando sobre o Brasil e sobre Fortaleza. Coincidentemente eles também eram da capital alencarina. Por mais que eu me esforçasse, entretanto, não conseguia tirar os olhos de sua adorável senhora. Se os amigos leitores a vissem, com certeza saberiam o motivo. Quando voltei para o hotel levei deles a promessa de no dia seguinte almoçarmos juntos.
No dia seguinte, tínhamos acabado de almoçar, quando Daniel, era esse o nome do homem, virou-se para mim e disse:
─ Senhor Rodrigo, pode ser que o senhor não acredite em reencarnação, mas eu lembro do senhor de alguma vida anterior.
Eu estava estupefato. Afinal não é todo dia que alguém lembra de você de uma outra vida. O mais comum é alguém lembrar de você de algum lugar. Ele então repetiu a afirmação e virando-se para sua bela esposa, como quem casara há poucos dias, disse que a primeira vez que os dois se viram foi numa outra encarnação, há centenas de anos. Diante da minha surpresa ele contou rapidamente sobre seu dom de reconhecer as pessoas com quem vivera ou com quem apenas cruzara em outras vidas. Em seguida com poucas palavras me contou sua história. Eu estava entre surpreendido e impressionado. Aquela era, se não a mais bela, a mais surpreendente história de amor que alguém pode ter vivido. E ela estava ali ao alcance de meus ouvidos. No dia seguinte devolvi o favor. Fui almoçar com meus novos amigos. Levei comigo meu editor de texto portátil e o gravador. Pedi então para que Daniel me contasse sua história de sonhos e encontros. Ele assentiu, mas com uma condição: que, ao escrevê-la, eu o fizesse em primeira pessoa, pois queria que os leitores ouvissem sua voz e os ecos do passado recente e do passado remoto. É claro que eu aceitei essa condição, e, durante uma semana, em pontos diferentes de Veneza, ele me contou a história que vocês lerão a seguir.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

NÃO COMETA ESSE ERRO


A SINA DO ESCARAVELHO

Assim, como humanos seres há,
Que grande poder a si se arrosta,
Existe inseto que também se dá,
Falo do nojento rola-bosta.

Rola-bosta é apenas apelido,
Seu nome verdadeiro é escaravelho,
Como Narciso, o inútil é atrevido,
Coa caca, só descansa ante um espelho.

Vi-o enquanto olhava meu jardim,
Fiquei incrivificado com a criatura
Que desfilava bem perto de mim,
Cara fechada, preso em sua feiúra.

Ostentava tanta empáfia o infeliz,
Que chamou deveras minha atenção,
Resolvi logo ser dele aprendiz,
Para não repetir sua lição.

Duma lorica pesada era preso,
Erguia sua tromba como um falo,
Olhava os colegas com desprezo,
Como em sua cabeça houvesse um halo.

Os insetos menores tinham medo,
Pois não sabiam que, apesar de tudo,
Ele guardava um enorme segredo
Debaixo de seu focinho trombudo.

Por muitos dias perscrutei atento,
Aquele pesado fardo levar,
Aquele ser de penúria e lamento,
De viés aos outros seres olhar.

Eu juro que fiquei com muito dó,
Dele, vestido como um cavaleiro,
Porém levando a vida muito só,
Sem nunca ter momento alvissareiro.

Em surdina, dos insetos ouvi
Que ele tinha sido mais coitado,
Entanto era mais humilde ali,
E a ninguém ele tinha humilhado.

Um dia, deram para ele cuidar,
Porém, uma bosta bem grande e suja,
Que carrega então de lá para cá,
Vigiando como mamãe coruja.

Adora aos pequeninos indagar:
Sabem para que seve esta caca?
Respondem ingênuos: para brincar!
Dando um sorriso frio o babaca,

Mas não sabendo também responder
O que acabara de perguntar,
Sai trombudo a cumprir seu dever,
Sua grande bosta vai empurrar.

Entanto todo mundo tem alguém
Para consigo se preocupar.
Com ele aconteceu também,
Uma amiga havia pra consolar.

Disse-lhe ela: não seja tão sisudo,
Procure uma parceira para o ajudar,
Não seja assim, colega, tão cascudo
Há uma companheira para te amar.

Diante de grande demonstração,
O pobre resolveu pra ela se abrir
Não posso, amiga, dar meu coração,
Às fêmeas de lá tampouco daqui.

Só a você vou dizer a verdade,
Vou segredar o que sempre serei,
Que não se sabe na comunidade,
A verdade, colega, é que sou gay.

Estupefato ao ouvir-lo fiquei,
Diante de tamanha confissão,
Não sabia de nenhum inseto gay,
Sabia até de veado leão.

Mas sua amiga, do rola-bostas,
Era dessas amigas de verdade,
Disse-lhe passando a mão nas costas:
Todos precisam da felicidade.

Para tudo nesta vida tem jeito,
Não se importe meu amigo querido,
Ser boiola não é nenhum defeito,
Por que não arranja você um marido?

Arranje, amigo, um companheiro, então,
Que o ame de fato e ame-o também,
Formando de dois um só coração,
E que os anjos enfim digam amém.

Ele então seguindo esse conselho,
Logo passou com outro a desfilar,
Quando o via ficava vermelho,
E saíam os dois a namorar.

Mas não mudou nada o pobre coitado,
O motivo disso logo direi:
Não se pode amar inseto veado
Por um inseto que também é gay.

Juro sobre a bíblia e ante Deus,
Isso tudo aconteceu no meu jardim,
Passou-se assim perante os olhos meus
Descortinou-se bem perto de mim.
(Professor Alves, 03/08)

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

DÊ UMA CHANCE A PAZ


IMPOSSÍVEL SONHAR
Professor Alves

“Minha mão não tem mais palma!
Dói em reverência! Violência calma!”

Hoje queria escrever um texto no qual fizesse transbordar minha admiração infinda pela humanidade, que levasse aos olhos do leitor lágrimas de felicidade e lhe desse uma vontade enorme de sair às ruas e cumprimentar seus semelhantes. Queria contar uma história, pequena que fosse, mas que narrasse uma atitude digna de uma espécie a qual se orgulha de ser racional, e que servisse de exemplo para toda humanidade, principalmente à que se diz cristã.

Não, hoje eu não queria falar em políticos e seu cinismo indecente, diante da população rota, transida pela falta de tudo que lhes dê uma condição minimamente humana. Hoje eu queria dormir tranqüilo, ter sonhos bons que elevassem meu astral para o dia seguinte.

Queria falar sobre o sorriso das crianças; do amor, verdadeiro, dos anciãos; da ingenuidade dos namorados; da puerícia das cartas de amor; do infinito mistério do beija-flor e da impossibilidade do besouro.

Mas não é possível, depois do que eu presenciei. Uma cena indigna da inteligência humana. Foi um sonho dantesco, porém indigno da Divina Comédia Humana. Numa avenida, há tão pouco tempo calma, porém, já hoje, tumultuada pelo ir e vir dos carros, ironicamente, próximo a uma escola. Após uma pequena colisão, dessas que se vêem a todo instante numa cidade que cresce, sem nenhuma estrutura para dar alicerce a esse crescimento. O proprietário do veículo colidido, de arma em punho humilhava o outro, o vilão daquele sinistro. Enquanto vociferava, ordenando que o outro entrasse no seu veículo e fosse embora, mudava o revólver de mão. Naquele momento, como os cabelos de Sansão, a arma empunhada lhe dava poder, e ele crescia perante o outro, que, humilhado, constrangido, diminuía, apequenava-se diante da superioridade da arma. Não sei quem era maior, se o revólver ou o homem que se escondia por trás dela. Não sei quem era menor, se o homem humilhado ou a sua dignidade. Súbito percebi que a humilhação não era privilégio dele, ela era coletiva Todos que por ali passavam, fechados nos seus escudos de aço, sentiam-se abatidos por aquele homem poderoso e sua arma. Em câmara lenta, (Essa era a velocidade do momento, uma vez que a cena tornava-se infinita como num filme de John Woo), o homem com a moral destroçada entrava em seu carro.

Não vi o desfecho da cena. Não precisava. O desfecho foi a morte do homem, suposto responsável pela colisão. Impossível alguém sair vivo, pelo menos moralmente, depois de passar por aquilo. Infelizmente hoje à noite terei pesadelos.

(Fortaleza, 29/04/08)