quinta-feira, 2 de julho de 2009

REFLEXÃO SOBRE ÉTICA

REFLEXÃO SOBRE éTICA

Certa vez um aluno chegou-se a mim e perguntou sobre a questão da crase facultativa. Depois de devidamente esclarecido, ele me disse que sua professora tinha considerado incorreta uma questão sobre pronome possessivo e o uso do acento grave. Eu o aconselhei a falar com ela, que com certeza se enganara e, assim, reveria sua posição. Fiquei então pensando como a professora ficaria feliz por seu aluno ter aprendido as regras do uso do sinal de crase, inclusive os casos facultativos!
Entretanto a professora passou-lhe uma descompostura, conseguiu que ele fosse suspenso por desacato e ainda por cima acusou-me de não ter ética profissional. Fiquei então pensando o que é ética. Eu sou assim, conheço um monte de coisas que ninguém sabe e desconheço aquilo que é lugar comum. Fui então pesquisar sobre o assunto. Li um monte de coisas a respeito, mas nada me foi elucidador. Vi várias definições de filósofos, sociólogos, psicólogos, e nada. Depois compreendi que esses caras não sabem nada e pensam que sabem tudo.
Resolvi, pois, ver isso na prática. Decidi acompanhar jornais e revistas que trazem notícias sobre as atitudes dos seres humanos mais éticos. Analisei posturas de políticos e sua insaciável fome de poder; atitudes de pessoas ligadas à lei, muitos vendendo sua alma ao diabo por uma quantia em dinheiro, para, ao morrer, deixar aos herdeiros de suas misérias morais; pessoas comuns e profissionais diversos negando aos clientes o direito de ser verdadeiramente beneficiados com seu trabalho...
Depois de algum tempo, compreendi finalmente o que é ética (nego-me a usar inicial maiúscula) e o que é ter ética. ética é a arte de conviver com a raça humana. Sim porque lidar na selva, por exemplo, com leões famintos, hienas carniceiras, sol causticante e lutar pela sobrevivência é fichinha diante da difícil convivência com a volúpia humana. Ter ética é mentir e deixar mentir. Se não quiser mentir, não o faça, mas não impeça que outros mintam. Roubar e deixar roubar. Não quer roubar? Não precisa, mas o que você tem com o roubo dos outros? Burle a lei, transforme o princípio da publicidade da gestão pública em atos secretos. Não quer? Deixe para seu colega no senado que ele gosta. Se você quer ser responsável no seu trabalho, problema seu, mas querer que outros sejam também! Pô já é faltar muito com a ética. Ser desonesto é uma dádiva do indivíduo ético. Feche os olhos, você não tem nada a ver com isso, ou então tenha: junte-se a eles. A traição e a ingratidão são talvez a maior virtude das pessoas éticas, seja em casa, no trabalho ou com os amigos, depois é só dizer que foi necessário, abraçar os seus e está tudo novo.
Depois de chegar a essas conclusões, fique feliz por, como disse a professora mencionada, não ter ética, pois sendo assim não faço nenhum mal a sociedade. Mas depois fiquei triste por saber que a grande massa humana está sob a regência dos detentores dessa alta virtude.
(Professor Alves)

terça-feira, 30 de junho de 2009

PARA UMA CRIANÇA DE OITO ANOS

PARA ISABELE, NO SEU ANIVERSÁRIO DE OITO ANOS


Isabele, hoje que você está comemorando seus oito anos, tenho algumas palavras para você. Primeiro queria dizer-lhe que me esforcei para fazer um poema bem bonito, que você lesse e ficasse com orgulho e dissesse para suas amigas: “Vejam só o que meu padrinho fez para mim!!” Mas não deu. Talvez minha já parca inspiração tenha se intimidado diante desse momento tão grandioso. Sim porque fazer OITO anos é o momento mais significativo da nossa existência. Afinal aos oito anos já estamos em um décimo da vida. Casimiro de Abreu fez seu mais belo poema em homenagem aos seus oito anos. Ou (a inspiração) tenha se inibido diante de sua beleza e de sua esperta sapiência.
Segundo, queria deixar meus sinceros votos de felicidade, e dizer-lhe que para ser feliz não é preciso muito esforço. É suficiente, para isso, que não envelheça por dentro, é preciso manter eterna a criança que nos habita aos oito anos de idade. É preciso que mantenha acesa a inocência desse momento, mesmo que depois o mundo se descortine com suas maldades e perversidades. Feche os olhos e os ouvidos a tudo isso e os mantenha anchos para as coisas boas, para as coisas simples, para a bondade humana. Admire o voo das borboletas, mas não deixe de torcer pela sorte da lagarta; ilumine-se nos raios de sol, mas não deixe de refletir o mundo por entre os pingos da chuva; deixe seus lábios sempre abertos em pétalas de sorriso, mas sem edificá-lo na amargura alheia. Não esqueça o mais importante: cultive amigos! Amigos de verdade, que estejam com você em todos os momentos, como naquela história do homem e do peixinho (lembra?). Tenha-os em abundância, como o jardineiro às flores, como o avaro ao dinheiro. Quando crescer, escolha uma profissão que lhe dê um mundo de conforto, mas que seja útil ao semelhante; que lhe dê prazer em realizá-la, mas também que apraza aos outros, principalmente aos mais necessitados.
Desculpe-me pela ausência da poesia. Sei que ela um dia virá, fomentada no sorriso que baila em seus lábios e na inocência que rodeia seu ser. Não será digna de uma publicação, mas espero que traga consigo uma boa dose de pureza e sabedoria.

Professor Alves

sexta-feira, 19 de junho de 2009

ESSE É O PRINCIPEZINHO

NOTAS DAS AVENTURAS DO PEQUENO PRÍNCIPE


O principezinho, depois de deixar seu pequeno planeta, chega a um outro não muito maior. Lá encontra o monarca absoluto e mantém com ele um diálogo, do qual subscrevo o seguinte trecho:

O principezinho, depois de deixar seu pequeno planeta, chega a um outro não muito maior. Lá encontra o monarca absoluto e mantém com ele um diálogo, do qual subscrevo o seguinte trecho:

“ ─ Majestade... sobre quem é que reinais?
─ Sobre tudo, respondeu o rei, com uma grande simplicidade.
─ Sobre tudo?
O rei com um gesto discreto, designou seu planeta, os outros, e também as estrelas.
─ Sobre tudo isso... respondeu o rei.
Pois ele não era apenas um monarca absoluto, era também um monarca universal.
─ E as estrelas vos obedecem?
─ Sem dúvida, disse o rei. Obedecem prontamente. Eu não tolero indisciplina.
Um tal poder maravilhou o principezinho. Se ele fosse detentor do mesmo, teria podido assistir, não a quarenta e quatro, mas a setenta e dois, ou mesmo a cem, ou mesmo a duzentos pores-do-sol no mesmo dia, sem precisar sequer afastar a cadeira! E como se sentisse um pouco triste à lembrança do seu pequeno planeta abandonado, ousou solicitar do rei uma graça:
─ Eu desejava ver um pôr-do-sol... Fazei-me esse favor. Ordenai ao sol que se ponha...
─ Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor a outra como uma borboleta, ou escrever uma tragédia, ou transformar-se em gaivota, e o general não executasse a ordem recebida, quem – ele ou eu – estaria errado?
─ Vós, respondeu com firmeza o principezinho.
─ Exato. É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar, replicou o rei. A autoridade repousa sobre a razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance ao mar, farão todos revolução. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis.
─ E meu pôr-do-sol? Lembrou o principezinho, que nunca esquecia a pergunta que houvesse formulado.
─ Teu pôr-do-sol, tu o terás. Eu o exigirei. Mas eu esperarei, na minha ciência de governo, que as condições sejam favoráveis.”
(O Pequeno Príncipe, Exupéry. tradução de dom Marcos Barbosa, Agir, 39ª edição, pp. 38 à 40)

Observemos que apesar de toda a autoridade nosso rei é sábio. Entende que as pessoas não são aquilo que queremos que elas sejam, nem as situações estão sempre favoráveis à nossa vontade. É preciso que haja condições para que tenhamos o que desejamos com tanta impaciência. É preciso esperar o momento adequado e que nossas vontades, sonhos sejam razoáveis.


quarta-feira, 17 de junho de 2009

A MORTA

Hoje tive um sonho interessante. Sonhei que estava em sala de aula falando para nossos alunos sobre um dos mais interessantes contos que já li: A Morta, do escritor francês Guy de Maupassant. Lembrei-me também de uma pessoa muito importante para mim e que é, como eu, apaixonada por esse conto. Transcrevo-o abaixo para deleite de algum visitante desafortunado.
A Morta

Eu a amara perdidamente! Por que amamos? É realmente estranho ver no mundo apenas um ser, ter no espírito um único pensamento, no coração um úni­co desejo e na boca um único nome: um nome que ascende ininterruptamente, que sobe das profundezas da alma como a água de uma fonte, que ascende aos lábios, e que dizemos, repetimos, murmuramos o tem­po todo, por toda parte, como uma prece.
Não vou contar a nossa história. O amor só tem uma história, sempre a mesma. Encontrei-a e amei-a. Eis tudo. E vivi durante um ano na sua ternura, nos seus braços, nas suas carícias, no seu olhar, nos seus vestidos, na sua voz, envolvido, preso, acorrentado a tudo que vinha dela, de maneira tão absoluta que nem sabia mais se era dia ou noite, se estava morto ou vivo, na velha Terra ou em outro lugar qualquer.
E depois ela morreu. Como? Não sei, não sei mais.
Voltou toda molhada, nutria noite de chuva, e, no dia seguinte, tossia. Tossiu durante cerca de uma semana e ficou de cama.
O que aconteceu? Não sei mais.
Médicos chegavam, receitavam, retiravam-se. Traziam remédios; uma mulher obrigava-a a tomá-los. Tinha as mãos quentes, a testa ardente e úmida, o olhar brilhante e triste. Falava-lhe, ela me respondia. O que dissemos um ao outro? Não sei mais. Esqueci tudo, tudo, tudo! Ela morreu, lembro-me muito bem do seu leve suspiro, tão fraco, o último. A enfermeira excla­mou: "Ah! Compreendi, compreendi!"
Não soube de mais nada. Nada. vi um padre que falou assim: "Sua amante." Tive a impressão de que a insultava. Já que estava morta, ninguém mais tinha o direito de saber que fora minha amante. Expulsei-o. Veio outro que foi muito bondoso, muito terno. Cho­rei quando me falou dela.
Consultaram-me sobre mil coisas relacionadas com o enterro. Não sei mais. Contudo, lembro-me muito bem do caixão, do ruído das marteladas quando a enterraram lá dentro. Ah! meu Deus!
Ela foi enterrada! Enterrada! Ela! Naquele bu­raco! Algumas pessoas tinham vindo, amigas. Cami­nhei durante muito tempo pelas ruas. Depois voltei para a casa. No dia seguinte, parti para uma viagem.

Ontem, regressei a Paris.
Quando revi o meu quarto, o nosso quarto, a nossa cama, os nossos móveis, toda essa casa onde ficara tudo o que resta da vida de um ser depois da sua morte, o desgosto apoderou-se de mim novamente, de uma forma tão violenta que quase abri a janela para atirar-me à rua. Não podendo mais permanecer no meio daqueles objetos, daquelas paredes que a tinham encerrado, abrigado, e que deviam conservar em suas fendas imperceptíveis milhares de átomos seus, da sua carne e da sua respiração, peguei meu chapéu para sair. De súbito, ao atingir a porta, passei diante do grande espelho que ela mandara colocar no vestíbulo para mirar-se, dos pés à cabeça, todos os dias antes de sair, para ver se toda a sua toalete lhe ia bem, se estava correta e elegante, das botinas ao chapéu.
E parei, de chofre, diante desse espelho que tan­tas vezes a refletira. Tantas, tantas vezes, que também deveria ter guardado a sua imagem.
Fiquei lá, de pé, trêmulo, os olhos fixos no vidro liso, profundo, vazio, mas que a contivera toda, que a possuíra tanto quanto eu, tanto quanto o meu olhar apaixonado. Tive a impressão de que amava aquele espelho - toquei-o - estava frio! Ah! recordação! recordação! Espelho doloroso, espelho ardente, espelho vivo, espelho horrível, que inflige todas as torturas! Felizes os homens cujo coração, como um espelho onde os reflexos deslizam e se apagam, esquece tudo o que conteve, tudo o que passou à sua frente, tudo o que se contemplou e mirou na sua feição, no seu amor! Como sofro! Saí e, involuntariamente, sem saber, sem que­rer, dirigi-me ao cemitério. Encontrei seu túmulo, um túmulo singelo, uma cruz de mármore com algumas palavras: "Ela amou, foi amada, e morreu."
Lá estava ela, embaixo, apodrecendo! Que hor­ror! Eu soluçava, a fronte no chão.
Fiquei lá por muito tempo, muito tempo. Depois, percebi que a noite se aproximava. Então, um desejo estranho, louco, um desejo de amante desesperado apoderou-se de mim. Resolvi passar a noite junto dela, a última noite, chorando no seu túmulo. Mas me ve­riam, me expulsariam. Que fazer? Fui esperto. Levan­tei-me e comecei a vagar pela cidade dos desaparecidos. Vagava, vagava. Como é pequena essa cidade ao lado da outra, daquela em que vivemos! Precisamos de casas altas, de ruas, de tanto espaço, para as quatro gerações que vêem a luz ao mesmo tempo, que bebem a água das fontes, o vinho das vinhas e comem o pão das planícies.
E para todas as gerações dos mortos, para toda a série de homens que chegaram até nós, quase nada, um terreno apenas, quase nada! A terra os toma de volta, o esquecimento os apaga. Adeus!
Na extremidade do cemitério habitado, avistei subitamente o cemitério abandonado, onde os velhos defuntos acabam de misturar-se à terra, onde as pró­prias cruzes apodrecem, e onde amanhã serão coloca­dos os últimos que chegarem. Está cheio de rosas silvestres, de ciprestes negros e vigorosos, um jardim triste e soberbo alimentado com carne humana.
Estava só, completamente só. Agachei-me perto de uma árvore verde. Escondi-me completamente en­tre os galhos grossos e escuros.
E esperei, agarrado ao tronco como um náufra­go aos destroços.
Quando a noite ficou escura, bem escura, dei­xei o meu abrigo e comecei a caminhar de mansinho, com passos lentos e surdos, por essa terra repleta de mortos.
Vaguei durante muito, muito tempo. Não a en­contrava. Braços estendidos, olhos abertos, esbarran­do nos túmulos com as mãos, com os pés, com os joe­­lhos, com o peito, e até com a cabeça, eu vagava sem encontrá-la. Tocava, tateava como um cego que pro­cura o caminho, apalpava pedras, cruzes, grades de ferro, coroas de vidro, coroas de flores murchas! Lia nomes com os dedos, passando-os sobre as letras. Que noite! Que noite! Não a encontrava!
Não havia lua! Que noite! Sentia medo, um medo horrível, nesses caminhos estreitos entre duas filas de túmulos! Túmulos! Túmulos! Túmulos. Sempre túmulos! À direita, à esquerda, à frente, à minha volta, por toda parte, túmulos! Sentei-me num deles, pois não podia mais caminhar, de tal forma meus joelhos se dobravam. Ouvia meu coração bater! E também ouvia outra coisa! O quê? Um rumor confuso, indefinível! Viria esse ruído do meu cérebro desvairado, da noite impenetrável, ou da terra misteriosa, da terra semeada de cadáveres humanos? Olhei à minha volta!
Quanto tempo fiquei ali? Não sei. Estava parali­sado de terror, alucinado de pavor, prestes a gritar, pres­tes a morrer.
E, de súbito, tive a impressão de que a laje de mármore onde estava sentado se movia. Realmente, ela se movia, como se a estivessem levantando. Com um salto, precipitei-me para o túmulo vizinho e vi, sim, vi erguer-se verticalmente a laje que acabara de dei­xar; e o morto apareceu, um esqueleto nu que empur­rava a lápide com as costas encurvadas. Eu via, via muito bem, embora a escuridão fosse profunda. Pude ler sobre a cruz:
"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinquenta e um anos de idade. Amava os seus, foi honesto e bom, e morreu na paz do Senhor."
O morto também lia o que estava escrito no seu túmulo. Depois, apanhou uma pedra no chão, uma pedrinha pontiaguda, e começou a raspar cuidadosamente o que lá estava. Apagou tudo, lentamente, con­templando com seus olhos vazios o lugar onde ainda há pouco existiam letras gravadas; e, com a ponta do osso que fora seu indicador, escreveu com letras lumi­nosas, como essas linhas que traçamos com a ponta de um fósforo:
"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinquenta e um anos de idade. Apressou com maus tratos a mor­te do pai de quem desejava herdar, torturou a mulher, atormentou os filhos, enganou os vizinhos, roubou sempre que pode e morreu miseravelmente."
Quando acabou de escrever, o morto contemplou sua obra, imóvel. E, voltando-me, notei que todos os túmulos estavam abertos, que todos os cadáveres os tinham abandonado, que todos tinham apagado as mentiras inscritas pelos parentes na pedra funerária, para aí restabelecerem a verdade.
E eu via que todos tinham sido carrascos dos parentes, vingativos, desonestos, hipócritas, mentirosos, pérfidos, caluniadores, invejosos, que tinham rou­bado, enganado, cometido todos os atos vergonhosos, abomináveis, esses bons pais, essas esposas fiéis, es­ses filhos devotados, essas moças castas, esses comerciantes probos, esses homens e mulheres ditos irrepreensíveis.
Escreviam todos ao mesmo tempo, no limiar da sua morada eterna, a cruel, terrível e santa verdade que todo mundo ignora ou finge ignorar nesta Terra.
Imaginei que também ela devia ter escrito a verdade no seu túmulo. E agora já sem medo, correndo por entre os caixões entreabertos, por entre os cadáve­res, por entre os esqueletos, fui em sua direção, certo de que logo a encontraria.
Reconheci-a de longe, sem ver o rosto envolto no sudário.
E sobre a cruz de mármore onde há pouco lera:
"Ela amou, foi amada, e morreu", divisei:
"Tendo saído, um dia, para enganar seu amante, resfriou-se sob a chuva, e morreu”.

Parece que me encontraram inanimado, ao nas­cer do dia, junto a uma sepultura.
(31 de maio de 1887)
com as devidas adaptações para nova ortografia.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO XXII
“Nascemos um para o outro dessa argila
de que foram feitas as criaturas raras”
(Raul de Leôni)



Desde então tornamos-nos inseparáveis, aliel e eu. Não havia lugar que eu fosse que ela não estivesse ao meu lado. Passeávamos juntos, íamos às compras um ao lado do outro, levávamos os filhos para o mesmo passeio. Até que, a despeito do que as pessoas poderiam vir a comentar, Aliel mudou-se para nossa casa, como se dela tivesse saído para fazer um passeio. O nosso amor finalmente desabrochou como as pétalas de uma rosa ansiosas por verem a luz do sol. Nadiel e Leila ganharam uma mãe e um pai, e os quatro formamos uma família feliz. As lembranças do passado foram guardadas no fundo do nosso consciente e tacitamente sem palavras fizemos um acordo de nele não tocar. Aliel continuou a fazer seu curso de Turismo e sempre que podia aparecia no hospital para me ajudar apesar das reclamações dos colegas. Eu ria do modo como ela invadia as enfermarias cantarolando algo para animar os pacientes, tomando-lhes a pressão, acariciando um e outro sem nenhum receio de contaminação. Quando um médico perguntava por que ela não fazia um curso de enfermagem, ela respondia que não, “basta um em casa ter a obrigação de não viver lá”, fazia um muxoxo e saía para olhar outro doente.
Em outros momentos, ficava em casa cuidando de nossos filhos. Dava a eles toda a atenção possível. Era esfuziante quando brincava com eles, inventando-lhes desenhos, contando-lhes histórias ou fazendo-os rir com mungangos. Quando estávamos juntos, eu não conseguia fazer outra coisa senão mirar sua beleza e, como as crianças, rir dos suas brincadeiras pueris. Por outro lado nunca reclamava de minhas ausências, quando eu virava plantão após plantão sem descanso. Quando eu voltava para casa, dessa muitas vezes inúteis batalhas contra a morte, ela estava me esperando e passava horas velando meu sono.
E assim o tempo passou como uma flecha. Nunca mais fui atormentado por sonhos de outras vidas. Vez por outra reconhecia alguém de uma outra existência ou tinha um leve transe em que revia uma cena de encarnações anteriores, mas nada que me molestasse ou que fosse de grande relevância. Uma noite sonhei com Ernani. No sonho ele era uma criança e estava vestido com um uniforme escolar. Aproximou-se de mim, abraçou-me e me chamou de pai. No dia seguinte, ao chegar do hospital, Aliel me deu a feliz notícia de que estávamos esperando um bebê. Eu chorei, pois agora entendia o significado daquele sonho: Ernani viveria na pele de nosso filho.

EPÍLOGO
“Se este mundo é um demônio
nós somos dele uma parte
e se a vida é só um sonho
que seja um sonho de arte.”
(Fagner/Brandão)

No meu aniversário de cinquenta anos, pedi um presente a Aliel: que ela casasse comigo. É que nos faltara tempo para ter uma lua-de-mel. Ela riu muito antes concordar. A cerimônia foi simples, com poucos amigos e familiares. No dia seguinte partimos para Veneza, um sonho de criança. Depois vim a saber que Aliel também sempre sonhara conhecer a cidade mais romântica do mundo.
No décimo dia nessa maravilhosa cidade, estávamos num restaurante à noite, enquanto eu me embriagava com as brincadeiras de minha amada esposa, vislumbrei a fisionomia de um brasileiro. Seu ar impaciente diante do reflexo das luzes no canal me chamou a atenção. Ele me era familiar, de onde eu o conhecia? Não, não era de onde, mas de que vida! Como sempre, fiquei apenas com a certeza de que era alguém conhecido. Quando Aliel saiu para ir ao toalete, dirigi-me até ele e mantivemos um rápido diálogo, para logo nos familiarizarmos. Ele também era de Fortaleza e isso foi motivo para longa conversa. Quando soube que o Sr. Rodrigo, era esse seu nome, era escritor tive a idéia de lhe contar nossa história para que ele a romanceasse. Algumas vezes eu mesmo tentara fazê-lo, mas meu talento para a literatura era o de leitor, por isso desisti. Nosso novo amigo, encantado por Aliel (impossível, Sr. Rodrigo, alguém não ficar encantado por ela), durante uma semana ouviu de mim essa história de sonhos e de encontros.


FIM

quarta-feira, 3 de junho de 2009

CAPÍTULO XX
“Todo vale será aterrado, e nivelado todos os montes e outeiros; os caminhos tortuosos serão retificados, e os escabrosos, aplanados.”
(Lucas: 3 – 5)

Quando despertei desse transe, estava na enfermaria do cemitério. Ao meu lado, Aliel, vestida de preto, me sorria e com seu habitual jeito brejeiro me falou:
─ Pensei que você também ia me deixar.
Depois de alguns minutos, mais recuperado, contei a ela o que havia ocorrido, ao que ela, meneando a cabeça, disse:
─ Imaginei que houvesse sido isso mesmo, é tanto que, por incrível que pareça, fui eu que acalmei os demais sobre seu estado.
Sua voz era pausada, calma. Soava como se tivesse além de palavras um enorme sentimento de revolta contra o destino, contra tudo que conspirava para que sua existência não fosse normal. Desde quando ela tivera direito a um tempo longo de descanso espiritual, de serenidade, para realmente edificar seu ser. Em quantas de suas mais de cinqüenta vidas estivera plena? Que lhe lembrasse nenhuma. Será que alguém o seria, seria possível aqui na terra, com todas as suas contradições, alguém atingir essa plenitude? Talvez pensasse também em mim, em minha desventura. Pois não éramos os dois desventurados? No entanto não estava o destino conspirando para que ficássemos juntos? Mas Será que se deveria agradecer a esse Senhor tão onipotente por decidir sobre os caminhos de seres tão frágeis, assim de forma tão desgraçada? O certo é que deveríamos nos conformar com Ele. Enquanto ela passava a mão em meus cabelos, uma lágrima caiu sobre mim, e nela pude ler mais interrogações que vinham de sua alma angustiada: “e se ele queria realmente nos juntar, e para tanto abrira uma ferida tão grande no peito de muita gente, pois nem nós nem nossas famílias seriamos os mesmos depois do que ocorrera, nossos filhos um dia saberiam o que havia acontecido de fato, e o que pensariam, não seria esse esforço para nos unir apenas mais uma de suas armadilhas urdida para depois nos destruir novamente, física e moralmente, como o fomos agora?”
Nossas vidas aos poucos ganharam novos rumos, ganharam uma nova rotina. Agora eu era pai e mãe de Leila. Enquanto me desdobrava em cuidados para com meus pacientes, pensava em várias formas de educá-la, dar a ela o carinho de mãe. Ah! Como ela sentia a falta da voz materna! Acordava durante a noite e, por mais que eu me esforçasse, não conseguia fazer com que parasse de chorar, às vezes ela adormecia de cansaço e eu ficava velando aquele ser tão carente do amor de mãe.
Para aliel a vida também não era fácil. Uma criatura que teve na infância a pena de ser torturada por imagens de outras vidas enquanto a mãe sempre censurando-a, certa de que ela era louca. Ela sentia agora um grande desespero pela perda do marido, que talvez tenha sido seu verdadeiro pai, porque soubera compreendê-la e reeducá-la. Naquele momento ela era uma mulher saudável, entretanto frágil e fragilizada. Nas vezes que fui visitá-la e levar sua afilhada para lhe pedir a bênção, encontrei os pais fazendo-lhe companhia. Havia, no entanto, certo desconforto entre ela e eles. Quando me via, A pobrezinha abria um sorriso de gratidão como se dissesse “obrigado por ter vindo, por me tirar desse constrangimento compulsório”. Em breve eles se iam e nós podíamos, às vezes em silêncio, confrontar nossas dores. Eu brincava com Nadiel, e Aliel se encantava com o riso espontâneo de Leila. Em outros momentos, deixávamos os dois brincando e nos dispúnhamos a uma partida de xadrez. Ficávamos a mirar as peças e a pensar em tudo que nos rodeava. Às vezes erguíamos os olhos um para o outro, como se quiséssemos dizer algo, mas as circunstâncias nos impediam. Outras vezes, íamos juntos ao centro espírita, depois a uma pizzaria ou coisa que o valha.
CAPÍTULO XXI
“Minha alma de sonhar-te anda perdida,
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois se tu és já toda minha vida!”
(Florbela Espanca)

Uma vez Aliel me surpreendeu. Era um sábado à tarde, eu estava atendendo um paciente quando a enfermeira me chamou para atender ao telefone. Apesar de o celular já ser quase moda, em 1997, nós médico éramos proibidos de usá-los dentro do hospital, como minha vida toda era dentro dele, eu nunca pensei sequer em comprar um. Só depois, pelos idos de 2002, é que a vida tornou-se impossível sem eles. Ao atender ao telefone, surpreendi-me com a voz de Aliel do outro lado da linha. Ela, com sua voz jovial, me perguntou se eu não queria dançar. A princípio eu não entendi, estava meio atônito. E ela percebendo meu embaraço, tratou de explicar:
─ Olha, eu tomei a liberdade de vir à sua casa e liberar a Marlene durante o dia para que ela venha à noite, pra gente sair um pouco. Ou você não quer?
Pensei um pouco, ainda surpreso com suas palavras. Naquele momento imaginei Aliel tomando conta das duas crianças. A casa devia estar uma bagunça só. Tive ímpetos de correr para casa para presenciar aquela cena, mas me contive. Como me demorei em responder, ela brincou:
─ Alô! Tem alguém aí? – ao que eu respondi:
─ Sim, claro, é que você me pegou de surpresa. Quando terminar o expediente eu vou para casa e a gente resolve.
─ Certo, mas eu quero dançar. Ouviu? – respondeu ela.
O restante da tarde se arrastou a passos de tartaruga, enquanto eu imaginava a cena pela qual eu esperava, mesmo que fosse de brincadeirinha. De súbito tive remorso daquelas idéias, mas algo mais forte do que eu me dizia “deixa de ser tolo, se o destino assim quis, que assim seja”. E me lembrei de uma frase lida ou ouvida em algum lugar: “É incrível a força que as coisas parecem ter quando precisam acontecer.” Repassei como num filme todo o meu passado, refleti sobre o de Aliel e concluí que não devemos ter medo de ser felizes, pelo menos por alguns instantes. Essa é a eternidade de que nos fala o poeta Vinícius de Morais: “Mas que seja infinito enquanto dure!” Era isso! O que eu realmente tinha medo era de sofrer mais uma vez, eu tinha medo da desilusão. Ademais eu nunca tive certeza dos sentimentos de Aliel, por isso temia um golpe mais forte. De repente as idéias me vieram cristalinas como as águas de uma lagoa azul: “vamos agir de forma espontânea, sem forçar o momento, deixar que nossos seres se encontrem de fato”. Pensando nisso, balancei a cabeça para espantar as minhocas que se enrolavam em meu cérebro e fui atender a um paciente.
Quando cheguei a casa, encontrei uma cena merecedora de um quadro. as crianças batiam palmas compassadamente ao som de uma música infantil cantada por Aliel que as rodeava, fazendo os movimentos que eram imitados por elas. Ao lado Marlene se deleitava, com a cena, formando o pano de fundo do quadro uma desarrumação completa: livros de histórias infantis pelo chão, papéis rasgados, tesouras, tubo de cola derramando o líquido pelo chão. A única coisa que estava organizada era a cabeça das crianças. Aliel estava suada com toda aquela trabalheira. Difícil foi fazer com que os pequenos lhe deixassem sair para tomar banho. Reclamavam a toda hora que queriam dançar, bater palmas, mas devido o adiantado da hora e a prática da Marlene eles se renderam ao cansaço e dormiram, ambos no sofá, tomando a mamadeira.
Quando por fim aquela bagunça saiu de minha retina, fui-me aprontar. Aliel demorou uma hora e meia para fazê-lo, enquanto eu tentava distrair a impaciência folheando sem ver uma e outra revista. Finalmente pudemos sair. Estava uma noite linda. A lua branca parecia nos premiar com sua luz imensa e amarela. Eu respirei o ar da noite, mirei as estrelas. Como é bela a noite! Infelizmente devido ao corre-corre do dia não vemos a noite, só sua negritude; assim como não admiramos o dia, só sentimos a luz e o calor do sol. As pessoas seriam, com certeza, melhores e bem mais felizes se vivessem mais o sol e menos o dia; a lua e a noite, menos a escuridão. Eu estava feliz, e Aliel possuía um sorriso de menino que acabou de inventar uma brincadeira, mas que não pode contar para os colegas.
Fomos à Praia de Iracema (Ah! que saudades!), depois a um restaurante para jantar. Por fim realizamos o desejo de minha companheira: dançamos. Fomos a um bar-restaurante e lá ficamos por muito tempo, nossos corpos se confrangeram e por toda a noite dançamos como se nunca tivéssemos feito outra coisa na vida. Embalado pela música e pelo perfume de Aliel não vi o tempo passar. Durante todo esse tempo, não falamos senão alguns monossílabos. Era que não havia necessidade, a música falava por nós, enquanto nossos corpos e nossas almas respondiam à altura. Até que em determinado momento eu a beijei. E ficamos assim, por um tempo que os relógios não marcam. O cheiro da boca de Aliel se confundiu com a maresia e com o cheiro de Ranjicniami: foi o beijo de uma eternidade.
Já era madrugada quando saímos do bar, mas aliel não estava satisfeita. Queria ver o nascer do sol. Voltamos para a praia e lá ficamos esperando o sol surgir com toda sua magnitude apolínea. Aliel dormiu no meu colo e não viu o espetáculo de Hélio. Eu assistia a tudo quando de súbito me vi em uma outra época bem remota. Eu era um menininho negro e estava aguardando o mesmo espetáculo do Sol, quando passou por mim um grupo de homens vestidos de lorica, trazendo à cabeça um elmo e na mão uma lança. Próximo ao líder do grupo, um indivíduo de pele curtida trajando uniforme civil, dizia algo como “dar-lhe-ei um beijo no rosto e vocês o reconhecerão”. Os olhos dele brilhavam, preso à sua cintura estava um saquinho de onde, com o movimento rápido dos pés por entre o chão pedregoso, tilintavam umas moedas que lá estavam. O homem ao seu lado ainda perguntou: “Tens certeza de que ele reagirá?” ao que ele respondeu: “Ele não deixará que o levem a termo.” O sol naquele momento nascia, mas sua luz era opaca, triste. Aliel como uma borboleta espanejou em meus braços. Eu acordei. Estivera dormindo? Aliel também despertou de seu sono e reclamou por eu não tê-la acordado para ver o nascer do sol. Fomos tomar café numa merendeira que já abrira suas portas. Depois fomos para casa. Naquele dia eu tinha plantão a partir de uma da tarde, por isso dormi feito uma pedra. Quando acordei, Aliel já tinha ido para casa, entretive-me um pouco brincando com Leila e fui para o hospital, onde me esperava uma legião de enfermos, para quem deveria dedicar toda a minha atenção.