Falar de tristeza como se falasse de alegria foi, com certeza, a maior característica de Charlie Chapplin.Esse vídeo diz tudo, nessa versão inconteste de Djavan
Trata-se de textos escritos a partir de experiências com pessoas, jovens e/ou adultas, para levar à reflexão sobre alguns aspectos da vida, como política, literatura, História, Felicidade. DEIXE UM COMENTÁRIO
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
domingo, 27 de setembro de 2009
VERSOS DE NATAL (PARA BRUNINHA, ANTES DO NASCIMENTO)
VERSOS DE NATAL
(Para Bruna, que em breve estará no meio de nós)
Despertará p’ra o ruído do mundo,
E a pequena beleza sem parelha
Terá de todos o apreço profundo.
Os deuses do Olimpo descerão
E os anjos do céu soarão trombetas
E felizes os homens dançarão,
Sob o zodíaco e luzes de cometas.
Os três magos a ti oferecerão
Ouro, metal que rege o universo,
Insenso e mirra ainda te trarão,
E eu te dou estes simples versos.
Teus pequenos olhos nada verão
Só os vultos ainda confusos, ledos,
Dos que por sobre ti se curvarão
Com sorrisos recobertos de medos.
Entanto teu pequenino sorriso
Iluminará a esperança que falta,
E todos sorrirão ante o viso,
Que os versos deste bardo não exalta.
Será assim, Bruna, teu nascimento,
Quando lágrimas de felicidade,
Do mundo em crise, como lenimento,
Encherão os corações de bondade.
Assim “O nascimento de uma criança” –
Alguém a máxima lembrará –
“Mostra-nos de Deus a bonança,
E nos diz que o mundo continuará”.
E logo a areia da praia sentirá
Do teu lindo pezinho a leveza
E a brancura da espuma virá,
Qual vassala, saldar a realeza.
De todos despertará a imaginação
Histórias das mentes em bloco
Para alegrar-te encantadas surgirão
E das câmaras terás todo o foco.
E ainda na praia ante o turbilhão,
Verás barcos que vão longe já
Teus pequenos dedos os apontarão
Velas ao vento, imenso, imenso mar.
Após ouvir-se-ão doces palavrinhas
“Papá, mamã”, e outras prenhes de candura,
E o teu mundo rirá ante tua vozinha,
Mas a lente te dirá “a vida é dura!”
Porém seguirás na vida a encantar
Com leituras, risos ternos e beijos;
Axé, forró e hinos a entoar,
Sem que as faces enrubesçam de pejo.
(Professor Alves, Outubro de 2008)
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
TODO DIA É DIA DOS NAMORADOS
ORAÇÃO DOS NAMORADOS
ELE:
Oh! Deus, permiti, pois, que esta que está
Ao meu lado permaneça sempre aqui,
Que seu sorriso me dê o que me dá:
Segurança e denodo pra seguir.
E quando em breve estivermos unidos,
Assim pelas leis dos homens casados,
Então pelas leis divinas ungidos,
Nossos corpos, fortemente, atados,
Eu terei tempo de mudar o mundo,
Pois saberei de sua eterna amizade
E contarei com seu amor oriundo
De uma relação feita de verdade.
E assim, num futuro não tão distante,
Contaremos às novas gerações
O quanto foi bom vivermos amantes
E termos unidos os dois corações.
ELA:
Oh! Deus, fazei que este moço que está
Ao meu lado, de minha alma amado,
Continue, como agora, a me amar,
Sereno, amigo e sempre denodado.
E um dia quando estivermos casados,
Eu, amparada no seu lindo braço,
Seus firmes passos pelos meus guiados,
Nós dois unidos sem nenhum embaraço,
Eu terei força pra enfrentar a vida,
Pois saberei de sua grande amizade
E poderei, por seu riso impelida,
Vencer na vida sem temeridade.
E quando a velhice chegar, sem dor,
Diremos a todos, de boa vontade,
Como foi lindo e vero o nosso amor
E quão grande nossa felicidade.
OS DOIS:
Amém!
DECRETO PROIBITIVO
Está decretado a partir deste dia
A proibição a qualquer tipo de doença
Enquanto se estiver amando,
Para o bem do amor e da alegria..
Indisposição, nem pensar, jamais,
Pois deixa os beijos e os abraços lassos,
Tosse só se for acesso de desejo,
Para que se dê, no outro, muitos amassos.
Conjuntivite, aí é de morrer!
Como se vai o ser amado mirar?!
Dengue! Pior. Essa é que não,
Queremos dengo e gestos de amar.
Pneumonia é ruim demais.
Imagine não poder suspirar.
Enxaqueca, ai, eu não quero dormir!
A não ser são, para com ela sonhar.
Sai asma, bronquite, rouquidão,
Sífilis, tuberculose, gastrite,
Mal-do-século, malária,
Hipertensão, coqueluche, faringite.
Vêm com tudo disposição e bem-estar.
Quando se ama se precisa de saúde,
Fortuna, sorte e felicidade,
Amor o dia inteiro, constante, amiúde...
SONETO DO BEIJO
(Porque beijar é bom demais)
Por que fechamos os olhos ao beijar?
Grande mistério para os que não amam
Mas está claro aos que se apaixonam:
Quem ama só o ente amado quer mirar.
Quando os lábios começam a se tocar,
As pálpebras lentamente se apagam,
Os corações rapidamente acalmam,
É a magia do amor a se manifestar.
Os sinos tocam, do alto caem lírios,
O resto são flores, sonhos, delírios
O balé das mãos que se tocam no ar...
Logo a respiração fica ofegante,
Inicia-se a revolução pujante,
Inicia-se por fim o ato de amar!!!
DESTINO
Homem e mulher, a que se destinam
Para o entrelaçamento amoroso,
Para o riso farto depois do gozo,
A união cheirando à fresca resina.
Antes no varandim, as mãos unidas,
A lua fitando mesmo sem vê-la,
Ou no barzinho, ouvindo estrela,
Só este pensamento une duas vidas.
Na favela, caatinga ou mansão,
Sem pejo, enigma nem mistério,
Homem e mulher, lúbricos, se olham.
O amor, o sexo movem uma nação.
Que digo! Galáxias inteiras se amam!
E nisso não há nenhum despautério.
SONETO ANTICIÚME
“O ciúme é a véspera do fracasso
E o fracasso provoca o desamor.”
(Alceu Valença)
Quem bem ao seu amado quiser
Das garras do ciúme fugirá.
É um sentimento demoníaco!
E só em torpes corações é que está.
Quantas vidas p’rele foram ceifadas...
E dizem com lágrimas a rolar:
─ Foi por amor, meu Cristo, que eu matei.
Punidos, os pecados vão purgar.
Uns dizem sem as palavras medir:
─ O ciúme é que é o tempero do Amor.
Que burrice! Se ele só traz a dor!
Por isso, amantes que estes versos lêem,
Desfaçam-se rápido desse inferno,
E vivam um grande amor, sincero, eterno.
SONETO DA RELAÇÃO
(Baseado na crônica de Rubens Alves)
A questão é mera e não requer cola:
Seu enlace é tênis ou frescobol?
Não pode ser do tipo futebol,
Porque envolve dois seres e uma bola.
Se tênis, meus pêsames, é mortal!
Se frescobol, parabéns, é brinquedo.
Se tênis, nele reina ódio e segredo!
Se frescobol, parceria total.
Pois se joga tênis pra derrotar.
Seu erro é a alegria do companheiro,
Já que a ação preferida é cortar.
Frescobol é jogo de cooperar.
Aqui, dialoga-se o tempo inteiro,
Logo, felicidade é acertar.
DIÁLOGO DA VIDA INTEIRA
A existência inteira é um diálogo!
Neste, entre seres, por demais franco,
Há um jovem afogueado a discutir
Com um velho já de cabelo branco.
O jovem, elétrico, agita os braços.
Assim, não pára um minuto sentado.
O velho, a cismar, com um sorriso brando,
Fita o chão, antes, por ele riscado.
O jovem, rebelde, é uma fogueira,
De chama, sensação e atitude.
O ancião, observando, logo pensa:
“Assim já fui, na minha juventude”
O jovem diz, entre riso nervoso:
─ Para mim, tudo tem que ser agora!
O velho ouve para depois falar:
─ O abraço o beijo, tudo tem sua hora.
Para o jovem, o gozo dessa vida
Precisa rápido se realizar.
O ancião, fitando a teia do tempo,
Diz: ─ Até isso, filho, pode esperar.
Os dois, cansados dessa brigaria,
Abraçam-se, e para casa se vão,
Porque a casa deles dois é a mesma,
É um prédio chamado coração
Amor é o nome do sábio, paciente,
quieto e tranqüilo ancião.
O outro, que atiça os sentimentos,
Atende por este nome: Paixão.
AMOR E POESIA
Fazer versos é como fazer amor.
Em atos ambos, a pressa tem que ser desprezada,
O cuidado, inexoravelmente, enaltecido.
O ser amado como o papel cuidadosamente
Sonhado
Festejado
Mirado.
Ela te dá o prazer do gozo dia após dia
Ele a alegria de não te repetires.
Cada palavra é um beijo,
Cada verso uma carícia,
E paulatinamente o poema se vai construindo,
E calmamente os corpos se constringindo.
Até o momento máximo da poesia realizada (o poema),
Até o sublime êxtase do líquido jorrado (e recebido).
Examina teu poema...
Contempla tua amada...
E,
Sem te preocupares com a resposta de Pessoa,
Pergunta-te se vale a pena amar qualquer uma,
Indaga-te se o poema não tem hora.
Fazer verso é como fazer amor.
TEXTÍCULOS
DIAS DOS NAMORADOS
Quando o sol do dia doze brilhar,
Ah! Meu amor, para você, beijos mil
À tarde, abraços loucos vão te apertar,
À noite, cala-te boca, é segredo, Psiu!.
FADO
Vi teu nome
No pára-brisa do tempo
E descobri
Que o nosso destino
Veio com o vento
Nas asas da criação.
QUARTO CRESCENTE
Vi-te um dia
Não sei por quê
Veio-me a alegria
Travestida de você!
PROJETO PEDAGÓGICO
Quer conhecer o projeto pedagógico mais arrojado do planeta Terra? Então leia o romance Assassinato em Gil Vicente, cuja publicação iniciaremos neste blog, no dia 09/10/2009.
terça-feira, 8 de setembro de 2009
SONETO PARA LARISSA
CAPÍTULO XV
“Como, dentro do mar, libérrimos, os polvos
No líquido luar tateiam a coisa a vir
Assim, dentro do ar, meus lentos dedos loucos
Passeiam no teu corpo a te buscar-te a ti.”
(O Mergulhador)
Voltemos à nossa narrativa principal. Nossos leitores e leitoras, mais estas que aqueles, devem estar ansiosos por saber o que aconteceu, quais foram as decisões de nossa figura principal. Pois bem. Como diz o provérbio “Com a sabedoria edifica-se a casa, e pela inteligência ela se firma.”. Foi de forma inconsciente, seguindo esse dito bíblico, que Larissa resolveu edificar sua personalidade, pois o prazer, conforme nos informa Eclesiastes “também é vaidade e correr atrás do tempo”. Uma noite, enquanto o sono não vinha, ela pôs-se a refletir sobre que rumo daria a sua vida e sua orientação sexual, pois depois de muitos acontecimentos ela percebia-se perfeitamente dona de si. O sexo, o gênero, a decisão de quem amar era um detalhe na sua vida. Ela tinha a mãe com quem compartilhar boa parte de seu tempo. Sabia que ter ou não um namorado ou uma namorada não devia ser um objetivo de vida, tinha de ser uma consequência. Dever-se-ia permitir conhecer pessoas. Lembrou então de Clarinha que vivia paquerando, ficando com um aqui outro ali e não se decidia por nenhum ou nenhum se decidia por ela. Na escola também era assim. Com qualquer uma colega com quem conversasse, notava a ansiedade por encontrar alguém, deixavam a própria existência em segundo plano, como ocorreu com Jaqueline. Por falar nela, onde andaria? Teria aprendido a lição? Teria cometido outro desatino como aquele? É! A vida é cruel principalmente com quem não avalia o preço que pode pagar por uma atitude impensada. Não! Definitivamente ela seguiria os conselhos do tio Jonas. Namoraria a quem lhe aprouvesse, sem tornar isso um objetivo de vida, sorriria para as pessoas, deixaria o silêncio aos mortos e as gargalhadas aos bobos. Esses novos conselhos do tio ela os encontrara certa vez, quando ela e a mãe visitavam Lúcia, viúva do tio. Ela (Larissa), que era curiosa e adorava se isolar para ler qualquer coisa que lhe caísse nas mãos, foi presenteada pela tia com uma caixa, na qual estavam os escritos diversos do tio Jonas. Foi com grande alegria e entusiasmo que explorou aquela floresta virgem de idéias e papéis, e para seu susto lá estava um outro poema escrito para ela:
APOLOGIA À CANÇÃO DO MUNDO
(para Larissa no seu aniversário de quatorze anos)
Desconfia do silêncio
Sorri, bate palmas, faze barulho
O silêncio é tão insuportável que deu origem ao som
Como à luz a escuridão
O silêncio está sempre carregado de mistério, de sombra
(Mas sempre não é todo dia)
Não te iludas
Quando a cidade dorme, não dorme
É nesse silêncio profundo que amantes se dão
Revira-se pelas camas, e redes, e chãos, em busca de se achar
Não te iludas com o silêncio
Foi silenciosamente com três beijos que Judas cumpriu sua sina
Foi no silêncio de Ouro Preto que se confidenciou e se coseu uma nova bandeira
(ainda que tarde)
Foi nesse mesmo silêncio que um tal Joaquim a traiu.
Foi também em silêncio, que os vermes roeram as frias carnes de Machado, Augusto...
E foi no silêncio da asfixia química que o holocausto se consumou
Não te iludas.
Cultua um só tipo de silêncio: o benéfico
O silêncio do ler:
É nos mínimos intervalos entre as palavras que se descobre o mundo
Que se vislumbra a fantasia, e a realidade...
O silêncio do escrever:
É no correr da caneta ou das teclas que damos asas ao silêncio da imaginação
Que se recria o pensamento.
Mesmo quando amares, não o faças em silêncio.
Desconfia do silêncio
Sorri, bate palmas, faze barulho
Deixa o silêncio aos mortos e as gargalhadas aos bobos.
(Julho de 2000)
O que mais a surpreendia era que fora escrito à mesma época do anterior, mas tinha como subtítulo “Para Larissa, no seu aniversário de quatorze anos”. Como o tio adivinhara há quatro anos como ela estaria se sentindo agora? Sabia que ele tinha uma percepção de mundo e um conhecimento de gente impressionantes. Isso com certeza, aliado ao fato de conhecer a irmã, Dona Fernanda e o marido desta, além do seu conhecimento de astrologia, possivelmente lhe tenha facilitado muito imaginar a confusão que iria na cabeça da sobrinha quando chegasse a essa idade.
Foi por esse tempo que Larissa voltou novamente a procurar a turma. Sabia de suas futilidades, de suas infantilidades, mas tinha de respeitá-las mesmo assim. Foi então que descobriu que Ígor tinha viajado. Havia passado no concurso para fuzileiro naval e estava em Natal, de onde só retornaria no final de ano para visitar a família. Ela ficou surpresa com a notícia:
─ Nossa que bom, era o que ele tanto queria.
A notícia lhe foi dada por Vivi, que agora via nisso uma oportunidade de ouro para se acercar novamente da menina. Para o grupo a novidade, no entanto, era o retorno de Larissa.
─ Puxa vida que legal. – Bordoneou Clarinha. – Agora o grupo está completo.
Para desespero de Vivi, Larissa não lhe deu espaço. Por mais que ela procurasse ficar junto dela, a menina se mostrava amadurecida e, mesmo sem descartá-la, escorregava-lhe pelas mãos, deixando-a apreensiva, ansiosa por tê-la, sentir-lhe o cheiro e saciar seus instintos.
Passara pouco tempo, pouco mais de quatro meses, mas na adolescência o tempo urge, passa numa velocidade estonteante e com ela a inocência e a ingenuidade de suas vítimas. Como diria Gregório de Matos, não aguarde que o tempo transforme essa flor, essa beleza em terra, em pó, em cinza, em sombra, em nada. Assim amadureceu Larissa nesses quatro meses, em que praticamente ficou em casa cuidando para que a mãe não sofresse uma recaída, apesar de não ter sido necessária essa atitude. Ela também precisava refletir sobre si mesma e o que lhe aguardava o futuro. Então quando ela voltou ao seio da turma não era mais uma menininha de quatorze anos, era uma moça com a mesma idade. Em Vivi o tempo também causara mudanças. Ela não mais escondia das pessoas suas preferências sexuais, tampouco sua personalidade forte era desconhecida, a ponto de causar certo mal estar nas mães de algumas garotas cujas casas ela frequentava, e cujo temperamento frosô era estimulado. Agora sua liberdade de certa forma estava cerceada, sua pessoa já era motivo de expectativa por parte das matildes e dos matildes de plantão, por isso ela buscava outros grupos mais acolhedores, cuja orientação condissesse com a sua. É a lei da existência, que reúne os seres em agrupamentos iguais. E era exatamente o conhecimento instintivo dessa lei que a abespinhava e fazia crescer a vontade de trazer a filha de Dona Fernanda para jogar no seu time. A percepção da mudança ocorrida na menina e o controle que esta tinha sobre si desnorteavam-na, e ela partiu para o ataque. De distantes tentativas passou ao assédio.
Certa vez, era quase madrugada quando Larissa recebeu uma ligação pelo celular:
─ Oi, Lissa, sou eu sua loirinha.
─ Quem? Perguntou Larissa meio atordoada.
─ Eu, gatinha, Vivi. – respondeu ela com a voz de cadela no cio – Desculpe ligar a essa hora, mas é que estou morrendo de saudades de seus beijos, morrendo de tesão. Que tal a gente se encontrar amanhã. Só mais uma vez. Eu juro que se você não me quiser, se meu corpo não for a sua praia eu não te procuro mais.
─ Tá legal, eu te encontro amanhã na tua casa, depois do almoço, tá bom? – respondeu Larissa e desligou o telefone.
Vivi estava deslumbrada. “Nossa não pensava que iria ser tão fácil, agora ela será minha.” E deitou, tentando dormir, mas a ansiedade por ficar frente a frente com a dona dos seus desejos lhe tirou o sono, e só quando o sol já mostrava sua claridade pelas frestas da janela ela pregou olho.
Durante toda manhã Larissa permaneceu concentrada em como deveria agir diante da loira, que lhe despertava sentimentos ambíguos. Estava também ansiosa, mas sua ansiedade era controlada pelos sentidos, em nenhum momento deixou escapar o auto controle. Terminado o almoço não deixou de notar na roupa que a mãe usava. E comentou.
─ Que bom, mãe, te ver de roupa nova dentro de casa. Bom sinal.
─ Ah, você notou, é que minhas roupas de casa estão muito velhas e eu estou colocando algumas novas na baia. – Respondeu a mãe como se se quisesse desculpar. Para ela era difícil toda aquela mudança, mas ela aos poucos estava se acostumando e até pensava em entrar numa academia para melhorar a forma. Para Dona Fernanda e para qualquer pessoa de sua idade, o tempo passa rápido, mas as mudanças, devido aos hábitos enraizados, não ocorrem na mesma proporção. Mas, afinal, o tempo tudo cura, tudo digere, como diria Vieira.
Eram duas da tarde quando Larissa chegou ao apartamento de Vivi. A demora se deu porque ficou embromando pelo caminho para evitar as vistas da maledicência. Mal apertou a campainha, a outra já estava à porta, com um xorte minúsculo e uma blusa fina, quase transparente que lhe deixava ver os mamilos, e foi com um sorriso meio nervoso nos lábios que disse:
─ Entra minha rainha, eu já não aguentava de vontade de te ver.
Larissa, sem dizer palavra, mas mantendo um meio sorriso nos lábios grossos que a tornava mais sensual ainda aos olhos da outra, entrou e sondou o ambiente, enquanto, ao seu pé, Vivi era toda prestativa. O ambiente estava a caráter. Janelas fechadas, aparelho de ar condicionado ligado, uma garrafa de vinho dentro de um recipiente com gelo e na tela da tevê um DVD da dupla russa, Tatu, com legenda em português. A música e os gestos das duas cantoras não podiam ser mais sugestivos para o momento:
"O que você vê é o que você tem, uma garota sem arrependimentos, eu não sou ideal – Sou absurdamente quieta, sou só uma garota imperfeita, eu estou acima desse mundo perfeito, sou só uma garota imperfeita"
A anfitriã encheu um copo de vinho e o ofereceu a amiga. Que o recusou para sua apreensão:
─ Que foi meu bem, não quer, o vinho vai deixar você mais leve.
Larissa passou a mão pelo rosto da loira, cheirou-lhe o cabelo e começou falando com uma voz que surpreendeu a outra, que estava acostumada a comandar suas reuniões particulares.
─ Você sabia que é a mulher mais espetacular que já conheci? É sim, eu gosto muito de você. Pra dizer a verdade eu tremo quando estou perto de você. Mas de uns dias pra cá eu tive de enfrentar alguns problemas em casa. Eu e minha mãe passamos por uma barra muito pesada, meu pai saiu de casa. Essas coisas. Cê deve tá sabendo, né. Eu também não tô preparada pra nenhum tipo de relação. Eu quero resolver umas coisas pra depois pensar nisso. Vamos deixar que as coisas aconteçam normalmente, sem forçar. Eu vim aqui porque acho que tinha de falar pra você, afinal você é uma pessoa legal...
─ Mas, Lissa, eu não quero ser legal, por favor, me chame de qualquer coisa mas nunca diga que eu sou legal. Isso me soa falso. Me chama de vagabunda, ordinária, mas não me trata assim. Se você quer ficar com esses caras que não têm nada na cabeça, só pensam em comer a gente e dizerem piada besta, fica, mas não me chama de legal, tá. – falou meio descomposta a loira.
─ Desculpe, eu não queria ofender. É que eu acho você demais, muito interessante, mas eu não tô preparada para nenhum tipo de relação. No fundo eu achei até bom ter flagrado o Ígor com aquela moça, agora eu tô livre. Eu vou deixar o tempo passar. No fundo eu acredito em destino, eu acho que as coisas vêm ao seu tempo.
─ Gata, mas naquele dia foi maravilhoso... – interrompeu novamente Vivi num último recurso. Mas antes que continuasse, a outra contratacou.
─ Eu sei, mas eu tava meio bêbada, depois as sensações não foram legais. Deixa eu te dizer uma coisa. Tudo nessa vida se resolve com o tempo, se a gente... sei lá... tiver de ficar juntas, isso vai acontecer, mas agora eu não quero, não sinto vontade. Desculpa tá!?
─ Suas palavras eram tão firmes e tão sinceras que a outra não tinha o que dizer. Assim ela deu um selinho, terno, em Vivi e saiu.
Na rua ela se sentia vitoriosa, fez aquilo que deveria ser feito da melhor maneira, no fundo ela admirava a amiga, mas não a ponto de seguir seu caminho. Ela faria o seu próprio. No momento certo ela guinaria à esquerda ou à direita, até porque saber o que é certo e errado é apenas uma questão de referencial Seguiria seu coração. Por isso sentia-se livre como um pássaro cujas asas estavam presas nos galhos de uma árvore e agora estivesse livre para alçar o melhor vôo de sua vida. Assim ela poderia fazer parte novamente do grupo do condomínio, já estava se envolvendo em outros na escola, sem dever nada a ninguém, sem baixar os olhos ou fechar os ouvidos a ninguém. Nesse momento lembraram-lhe os último versos do soneto legado pelo tio Jonas.
Terás, tu, sempre essa eternal leveza
Posto sejas fixa imagem surgida
Em virgem terra, ares de passarinho.
E foi para casa resolver um outro problema: estudar para as provas bimestrais que se aproximavam.
CAPÍTULO XVI
“Quando chegares e eu te vir chorando
Te tanto te esperar, que te direi?
E da angústia de amar-te, te esperando
Reencontrada, como te amarei?”
(Soneto de Véspera)
Era semana de provas finais. Larissa havia repassado a matéria das avaliações do dia seguinte. Sentindo-se cansada, resolveu desopilar. Ligou o computador, acessou a internet e entrou numa sala de bate papo, antes escolhera um pseudônimo engraçado: descaroçadora. Ficou por algum tempo teclando com um e outro. Às vezes ria das besteiras que alguém escrevia, noutras se chateava com baboseiras mais irritantes. Quando um nome lhe chamou a atenção: Ígor Mariner. O internauta havia acabado de entrar na sala e:
─ (Ígor Mariner para todo mundo) Oi, alguém quer tc comigo?
─ (Descaroçadora fala para Ígor) Oi, de onde vc é?
─ Sou de Fortal, mas tc de Natal, tô morrendo de saudades de lá, e vc tc de onde?
─ Coincidência, sou de Fortal e tc de Fortal. O que vc faz.
─ Sou fuzileiro naval e vc.
...
...
...
Larissa não tinha mais dúvida, era ele. Nossa aquilo era que se podia chamar coincidência. Passara o dia todo pensando no rapaz e agora ali estava ele, a alguns megabites de distância. Lembrou-se então de uma frase que encontrara entre os guardados do tio Jonas: “É incrível a força que as coisas parecem ter, quando precisam acontecer.” Ela estava radiante, mas manteve a calma e teclou com o ex-namorado durante algum tempo. Antes de se despedir combinou de encontrá-lo no dia seguinte na mesma sala.
No dia seguinte, na mesma hora lá estava ela teclando com Ígor:
─ (Ígor Mariner fala para Descaroçadora) E aí vc boa prova?
─ (Descaroçadora para Ígor Mariner) Fiz, eu estudo, ñ tô a fim de ficar de recupera.
─ Tá certo, aqui a gt estuda d+ tb.
O papo já estava esfriando quando o rapaz:
─ E aí vc tem namorado?
─ Ñ. E vc?
A conversa tomou esse rumo e esquentou novamente. Ele contou-lhe a história de seu namoro e do final angustiante que teve. Revelou sua fraqueza, mas também levantou uma suspeita em Larissa:
─ Sabe, (teclou ele) no fundo eu acho que caí numa armadilha.
E revelou à menina suas desconfianças sobre Vivi ter armado uma para cima dele. Isso deixou Larissa aparvalhada, “caramba, fazia sentido o que o amigo de bate papo lhe contava a ela, que na verdade tinha sido a grande vítima da história, ou a grande vilã, pois não custava nada ter dado uma chance ao rapaz, que sempre revelara bom caráter.” Ela teve em determinados momentos ímpetos de revelar-lhe sua identidade e pedir-lhe desculpas pelo que deixou acontecer. No entanto tinha medo de piorar ainda mais as coisas, sabia que as conversas virtuais são impessoais demais, a distância que separam as pessoas nada tem de reais. Mesmo quando se conhecem, esse tipo de diálogo não deixa transparente o verdadeiro laço que podem uni-las. Portanto teria de esperar o final do ano para tirar realmente aquela história a limpo, resolver sua vida. Se ele a perdoasse, muito bem, caso contrário, tudo bem também. Não iria se desgastar à toa, descobrira, outrossim, em sua curta existência, que as oportunidades existem e que temos apenas que saber administrá-las. Foi assim que ela suportou o lento passar dos últimos dias de novembro e a primeira semana de dezembro, data em que combinaram se encontrar, para se conhecerem.
Era sexta-feira, final de tarde quando ela se dirigia à casa de Clarinha para emprestar-lhe uns livros, a fim de que a amiga estudasse para a recuperação. Ao virar a esquina, deu de cara com Ígor. A aceleração do seu coração chegou a mil, a ponto de ela pensar que ele fosse parar. Ele por sua vez também teve uma descarga emocional, ficou lívido. Ela jamais imaginaria que sua reação fosse tão forte, e foi com voz trêmula que o cumprimentou:
─ Oi, tudo bem?
─ Tudo bem, e você?
─ Legal... fiquei feliz quando soube de sua viagem... cê queria tanto... chegou quando.
─ Hoje...
─ Cê tá mais bonito do que antes. – Disse ela quase sem se conter, ao que ele respondeu:
─ Obrigado, cê também tá muito bonita, eu... deixa pra lá, eu vou ali nos meninos, tchau. – Disse retirando-se para a calçada onde estavam os colegas de sempre.
O encontro entre os dois estava marcado para dali a dois dias e foi com grande apreensão que ela aguardou o tempo passar. Às vezes pensava se não seria mais correto ligar para o rapaz e contar que ela era a descaroçadora, mas ria da situação e resolveu esperar.
O shopping estava cheio como em toda época natalina, pessoas transitando de um lado para o outro com sacolas e mais sacolas, gringos brancos dos olhos azuis e estaturas enormes por todo lado, era um espetáculo de cor e de gêneros. Ao chegar à praça de alimentação, de longe ela viu o ex-namorado, de costas. Aproximou-se lentamente, pediu licença e sentou. Ele é claro tomou um susto, não sabia se pedia para ela se retirar ou sentar. Foi preciso que ela se apresentasse.
─ Prazer, sou a Descaroçadora.
Ígor tomou o maior susto de toda sua vida e desabou numa gargalhada que ela não sabia se desaparecia dali, se o esbofeteava ou se ria também. A última opção foi espontânea e os dois ficaram rindo e olhando-se até que ela pegou a palavra e lhe contou tudo pelo que passara até agora e finalizou:
─ Quando eu te encontrei naquele dia de forma virtual eu fiquei pensando na coincidência e lembrei de uma frase que vi uma vez nas coisas do tio. Era assim: “É incrível a força que as coisas parecem ter, quando precisam acontecer.” E eu pensei “caramba como a internet é pequena.” E u pensei também que seria possível que a gente voltasse a namorar, sei lá... – Apesar da aparente tranquilidade da voz, as mãos por baixo da mesa suavam devido ao atrito, daí o motivo pelo qual as palavras se repetiam num discurso que se realizava mais com os olhos do que verbalmente.
Foi compreendendo que as desculpas e afirmativas não teriam fim nem se completariam, que as palavras se repetiriam infinitamente, que Ígor tomou-lhe as mãos, umedecendo as suas e a beijou, enquanto os olhos de ambos se fechavam.
Que coisa boa é o beijo, principalmente quando ele ocorre entre duas pessoas cujo desejo de se encontrar é mútuo, quando há reciprocidade de sentimento. Mas por que fechamos os olhos ao beijar?
SONETO DO BEIJO
Por que fechamos os olhos ao beijar?
É um grande mistério para os que não amam
Mas a resposta é óbvia aos que se apaixonam:
Quem ama só o ente amado quer mirar.
Quando os lábios começam a se tocar,
As pálpebras lentamente se apagam
Os corações rapidamente se acalmam
É a magia do amor a se manifestar.
O resto são sonhos, delírios,
É a respiração que se torna ofegante
O balé das mãos que se tocam no ar.
Os sinos tocam, chovem lírios,
Inicia-se a revolução pujante
Inicia-se por fim o ato de amar.
E assim a poesia, que é um estado de espírito que leva a Deus, se fez para aqueles dois seres, afastados pela inconsequência, pela incúria e unidos pelo sublime, pelo amor.
EPÍLOGO
“Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos
[salvar.”
Passou-se um ano. Eram 25 dezembro de 2005, quando Larissa chegou a casa com o namorado. Havia murmúrio lá por dentro, vozes baixas. Ela estranhou e foi até o quarto de onde vinham os sussurros, o namorado a acompanhou. Lá estava a mãe sentada na cama com um bebê de poucos dias de nascido. Era linda a menininha que esperneava com os olhos vivos e uma mamadeira na boca. Ela sugava quase com violência o bico, como reclamando por um seio de verdade. Dona Fernanda tinha os olhos umedecidos. Diante da perplexidade, da filha ela murmurou:
─ É nosso presente de natal, enviado por Deus. Seu nome será Cristiane, em homenagem a Cristo. Ela veio para mudar toda a história dessa casa e quem sabe mudar a história da humanidade. E as lágrimas vieram aos olhos de Larissa e do namorado.
Depois Larissa ficou sabendo que a menina era filha do pai com a atual ex-mulher. Esta chamava-se Lourdes e, não suportando as irresponsabilidades do companheiro, resolvera ir embora, abandoná-lo. Mas como estava grávida não pôde fazê-lo antes. Assim esperou a filha vir ao mundo para concretizar seu plano. Enviara uma carta à dona Fernanda, pedindo-lhe que não saísse de casa durante o dia de natal, pois “Deus estará enviando um lindo presente para você”. Assim realizou seu plano, certa de que a ex-mulher do companheiro juntamente com a filha, por tê-lo suportado por tanto tempo, teriam amor e carinho para educar aquele minúsculo ser. O pai, quando percebeu a ausência da amante e da filha recém nascida, deu graças a Deus, por saber que Lourdes lhe havia tirado mais um peso das costas, pois no seu íntimo egoísta, o que havia de humano lhe dizia que a atual companheira, por ser mulher, cuidaria bem da filha. E nunca soube o que acontecera na verdade. Já Dona Fernanda e Larissa souberam por terceiros a história da pequena Cristiane e souberam amá-la, como se ela tivesse saído das próprias entranhas.
FIM
“Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos
[salvar.”
Passou-se um ano. Eram 25 dezembro de 2005, quando Larissa chegou a casa com o namorado. Havia murmúrio lá por dentro, vozes baixas. Ela estranhou e foi até o quarto de onde vinham os sussurros, o namorado a acompanhou. Lá estava a mãe sentada na cama com um bebê de poucos dias de nascido. Era linda a menininha que esperneava com os olhos vivos e uma mamadeira na boca. Ela sugava quase com violência o bico, como reclamando por um seio de verdade. Dona Fernanda tinha os olhos umedecidos. Diante da perplexidade, da filha ela murmurou:
─ É nosso presente de natal, enviado por Deus. Seu nome será Cristiane, em homenagem a Cristo. Ela veio para mudar toda a história dessa casa e quem sabe mudar a história da humanidade. E as lágrimas vieram aos olhos de Larissa e do namorado.
Depois Larissa ficou sabendo que a menina era filha do pai com a atual ex-mulher. Esta chamava-se Lourdes e, não suportando as irresponsabilidades do companheiro, resolvera ir embora, abandoná-lo. Mas como estava grávida não pôde fazê-lo antes. Assim esperou a filha vir ao mundo para concretizar seu plano. Enviara uma carta à dona Fernanda, pedindo-lhe que não saísse de casa durante o dia de natal, pois “Deus estará enviando um lindo presente para você”. Assim realizou seu plano, certa de que a ex-mulher do companheiro juntamente com a filha, por tê-lo suportado por tanto tempo, teriam amor e carinho para educar aquele minúsculo ser. O pai, quando percebeu a ausência da amante e da filha recém nascida, deu graças a Deus, por saber que Lourdes lhe havia tirado mais um peso das costas, pois no seu íntimo egoísta, o que havia de humano lhe dizia que a atual companheira, por ser mulher, cuidaria bem da filha. E nunca soube o que acontecera na verdade. Já Dona Fernanda e Larissa souberam por terceiros a história da pequena Cristiane e souberam amá-la, como se ela tivesse saído das próprias entranhas.
FIM
segunda-feira, 7 de setembro de 2009
SONETO PARA LARISSA
CAPÍTULO XIII
“Ó vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres,
Que só articulais para emitir conceitos...”
(Carta aos Puros)
Seu aniversário de quatorze anos foi comemorado no interior, na casa dos avós. Na verdade ela não via clima para comemoração, mas a mãe insistiu tanto que ela cedeu. No entanto o argumento mais forte foi a saudade dos avós, que não a viam há quase um ano. Como a mãe não pôde viajar, ela aproveitou uma carona com um tio às vésperas do aniversário, para não deixar a mãe por muito tempo só. Foi assim que aportou em sua cidade totalmente diferente de quando saíra. Os comentários na rua eram um só:
─ Nossa como essa menina tá grande. Dizia uma vizinha da avó.
─ Mas tá uma moça, como cresceu. Espantava-se uma tia-avó.
À noite fora reencontrar na praça da matriz as antigas companheiras. Foi um momento de angustiante constrangimento, pois ninguém ali tinha a ver com ela, e nem ela tinha a ver com alguém, por isso as longas conversas imaginadas por Larissa resumiram-se a alguns monossílabos sem continuidade. Tentavam reiniciar antigos diálogos que logo perdiam seu fio e o silêncio era o senhor na maior do parte do tempo. Conformou-se em sentar à mesa com os avós e alguns tios para ouvir uma música cujos acordes não condiziam com seu espírito jovem, apesar de reflexivo.
De volta a casa, encontrou a mãe cabisbaixa, mais compungida do que quando a deixou. Era que o pai tornara a falar sobre ela deixar os salgados, voltara também a chegar bêbado. A menina resolveu ter uma conversa séria com a mãe.
─ Mãe, você não pode passar a vida assim, você é nova, poderá encontrar alguém que a respeite. Ou não precisará encontrar ninguém. Nós mulheres somos fortes, somos donas de nossos corpos, de nossos sentimentos. Os homens é que são nervosos, pobres coitados, escravos do sexo e de outros vícios. – Nesse momento ela pensou em Ígor e teve saudades – Se você deixar esse homem que se diz seu marido e meu pai, não vai sentir nenhuma falta, cê hoje é independente, não precisa mais ter vergonha do vô nem de ninguém por não ter marido. Nada Pode ser pior do que como está! mãe, pensa.
Foi grande o efeito que essas palavras causaram no espírito de dona Fernanda. Como se ela estivesse esperando alguém mais forte que ela para resolver pela separação definitiva, como se sua fortaleza estivesse fragilizada, precisando de um retoque de concreto para não tombar de vez. E foi assim que pegou uma bolsa e dentro colocou todos os pertences do marido, poucos, pois ele não comprava roupa por não ter o hábito de trocá-las amiúde, colocou-a na sala para que ele a encontrasse logo que entrasse. Quando o marido chegou, ele tirou a blusa para fora da calça e deu aquele suspiro de Hércules após os doze trabalhos, Dona Fernanda, perto da filha para unir suas energias, anunciou sua decisão, apontando para a bolsa no canto da parede. Não esperou muito porque temia que a figura autoritária do marido dominasse seu íntimo e ela acabasse voltando atrás. Ele que se sentia absoluto principalmente naqueles últimos dias, pois sabia que era só uma questão de tempo e teria suas vontades realizadas, quedou-se numa atitude de desespero.
─ Mas pra onde eu vou? Vocês são minha família, eu não tenho mais ninguém no mundo. – E forçou o rosto num espasmo como se fosse se desmanchar em lágrimas que não saíram. Foi Larissa que não atendendo aos apelos da mãe retomou:
─ Que família pai... – Naquele momento sofreou as palavras, é que esse nome travou-lhe a boca com um gosto terrivelmente amargo, há tempos ela não lhe dirigia a palavra e fazê-lo naquelas circunstâncias lhe foi deveras difícil. – Que família pai – continuou – Isto aqui nunca foi uma família, no máximo o que somos são três pessoas dentro de um apartamento, sem nenhuma ou quase nenhuma ligação sentimental, senão medo, vergonha.
─ Não é verdade, minha filha eu... – o facínora tentou continuar o teatro, mas foi interrompido por Dona Fernanda.
─ Não vamos mais discutir. Pegue a bolsa e vá, se houver mais alguma coisa você vem pegar depois.
O homem então se levantou, pegou a bolsa e saiu, pois viu naquela idéia de pegar o restante das coisas uma boa ocasião para voltar a casa. Como tinha uma cópia das chaves, poderia voltar um dia à noite, e saiu. Mãe e filha se abraçaram e ficaram por muito tempo em silêncio.
No dia seguinte, a primeira decisão de dona Fernanda foi trocar as fechaduras da porta e do portão, depois lavou a casa como para desinfetá-la, foi ao cabeleireiro e a manicura, e a filha estava radiante com aquelas atitudes. Agora elas começariam realmente uma nova vida. Larissa agora poderia se preocupar com sua própria vida. É claro que não poderia se desligar da mãe, pois ainda era cedo e tinha medo de uma recaída.
CAPÍTULO XIV
“Ó vós, homens de sigla; ó vós, homens de cifra
Falsos chimangos, calabares, sinicuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.”
(Carata aos Puros)
No entanto só as crônicas de machismo desse condomínio, palco da nossa história, dariam uma biblioteca. Às vezes cômicas outras trágicas, elas vão-se acumulando na memória das pessoas ávidas por algo que lhes preencha o tempo. No geral são motivos de riso nas mesas de bares e de constrangimento para as personagens envolvidas nelas. Vamos a algumas para ilustrar essa nossa narrativa.
Seu Arlindo era um técnico em eletrônica. Um técnico não, perdoem-me, era o técnico em eletrônica. Isso nas décadas de setenta e oitenta. Não havia marca de rádio e tevê que ele não conhecesse a fundo. Vinham pessoas de todo canto da cidade para consultar seus aparelhos com ele. Se você tivesse um aparelho com defeito, fosse Telefunquem, Semp, GE, Panacolor, ele era o cara que iria resolver o problema. Tinha na garagem dois carros, além de uma moto para os passeios solitários. A mulher pouco o via, pois quando ele não estava na oficina só se poderia encontrá-lo nas melhores churrascarias da cidade. Sempre acompanhado de uma “moça” diferente, orgulhava-se de não faltar nada em casa e de ter clientes para financiar suas farras. A mulher apesar de seu humilde trabalho de faxineira do banco Itaú, deveria estar em casa quando ele resolvesse tornar a ela.
E assim seu Arlindo, quarenta anos “bem vividos”, não procurou saber das novidades tecnológicas que estavam chegando ao mercado, tampouco tinha tempo para isso, preocupado com suas carraspanas homéricas regadas a colo de mulher. Os clientes foram rareando sem que ele percebesse os motivos. Gradativamente foi diminuindo seu padrão de vida, mas o vício não lhe permitia que ele se desse conta disso. Até que depois de vender o último objeto fálico, a moto, e sem ter mais clientes que lhe patrocinassem a vida, viu-se, aos sessenta anos, preso no próprio apartamento, assistindo à tevê ao lado da mulher. A oficina não lhe rende nada além de alguns trocados os quais deixa num boteco que há nas proximidades. A mulher com seu humilde salário de faxineira é quem mantém a casa. Essa história é conhecida de todos, mas não serve de lição, pois continua se repetindo dia após dias, e logo são registradas nos anais do condomínio. Nosso amigo Cleiton, referido no episódio da falta de água, sempre atento, registra-as em cordéis que são consumidos aos montes pelos distintos moradores. Que riem e não sabem muitas vezes que serão os próximos a renderem idéias para nosso poeta de plantão.
Vamos a outra história. Reginaldo casou-se e sua primeira empresa foi desencorajar a mulher a trabalhar. Missão cumprida com facilidade, pois, apaixonada e grávida, a mulher compreendeu que sua vida seria cuidar da família. Advindo de uma família machista, pois se criara ouvindo o pai gritar do banheiro, “mulher o sabonete, mulher a toalha, mulher a cueca...” Reginaldo compreendia que o sexo oposto nascera para servir ao homem e não para compartilhar bons e maus momentos com ele.
Aos finais de semana, depois de chegar do trabalho, sentava-se na poltrona e repetia o discurso aprendido com o pai:
─ Helena, traz um uisquinho. – Depois – Helena, uma azeitoninha.
E ia por aí. Entrar na cozinha só se fosse para acompanhar o moço da entrega do gás para vê-lo instalar o botijão. Era feliz por ter sempre à mão as meias e cuecas limpas. A esposa, até onde lhe permitia o conhecimento de prazer, era feliz. Nossa personagem se orgulhava de ser garanhão. Era um pega aqui outro ali que não tinha fim. Se era verdade ou não os amigos nunca iriam saber. Era tanta história, que Sérgio, um homem pacato e fiel, sentiu-se no direito de também dar uma escapadela, mas sentiu-se tão constrangido pela fraqueza que ao chegar a casa, depois do fato consumado, contou tudo para a esposa e pediu-lhe perdão. É, toda regra tem exceção, com exceção de algumas regras.
Um dia Reginaldo cansou da esposa e foi embora de casa, disposto a mar outras que possivelmente o aguardavam de braços abertos e prontas a satisfazerem seus ímpetos bestiais. Foi por essa época que veio morar nesse emaranhado de pedra e cal, nesse mundo de pessoas igualmente diferentes, nessa promiscuidade de seres e de idéias que chamamos condomínio. Foi aqui que conheceu Marielva, uma mulher cujo nome não saía da boca das matildes e cujos lábios não tinham dono, eram de quem lhe aprouvesse. A paixão tira o juízo de qualquer um e o amor sucumbe todos os sentidos. Apaixonado pelo corpo e pela alma da desajuizada, nosso amigo submeteu-se aos caprichos da amásia, e hoje quando ela chega, tarde da noite, não se sabe de onde, a comida está quente dentro ainda do microondas e ele dorme ao lado de uma garrafa de uísque e uma foto da amada. A vida é assim: um eterno toma lá da cá, aqui se faz aqui se paga.
“Ó vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres,
Que só articulais para emitir conceitos...”
(Carta aos Puros)
Seu aniversário de quatorze anos foi comemorado no interior, na casa dos avós. Na verdade ela não via clima para comemoração, mas a mãe insistiu tanto que ela cedeu. No entanto o argumento mais forte foi a saudade dos avós, que não a viam há quase um ano. Como a mãe não pôde viajar, ela aproveitou uma carona com um tio às vésperas do aniversário, para não deixar a mãe por muito tempo só. Foi assim que aportou em sua cidade totalmente diferente de quando saíra. Os comentários na rua eram um só:
─ Nossa como essa menina tá grande. Dizia uma vizinha da avó.
─ Mas tá uma moça, como cresceu. Espantava-se uma tia-avó.
À noite fora reencontrar na praça da matriz as antigas companheiras. Foi um momento de angustiante constrangimento, pois ninguém ali tinha a ver com ela, e nem ela tinha a ver com alguém, por isso as longas conversas imaginadas por Larissa resumiram-se a alguns monossílabos sem continuidade. Tentavam reiniciar antigos diálogos que logo perdiam seu fio e o silêncio era o senhor na maior do parte do tempo. Conformou-se em sentar à mesa com os avós e alguns tios para ouvir uma música cujos acordes não condiziam com seu espírito jovem, apesar de reflexivo.
De volta a casa, encontrou a mãe cabisbaixa, mais compungida do que quando a deixou. Era que o pai tornara a falar sobre ela deixar os salgados, voltara também a chegar bêbado. A menina resolveu ter uma conversa séria com a mãe.
─ Mãe, você não pode passar a vida assim, você é nova, poderá encontrar alguém que a respeite. Ou não precisará encontrar ninguém. Nós mulheres somos fortes, somos donas de nossos corpos, de nossos sentimentos. Os homens é que são nervosos, pobres coitados, escravos do sexo e de outros vícios. – Nesse momento ela pensou em Ígor e teve saudades – Se você deixar esse homem que se diz seu marido e meu pai, não vai sentir nenhuma falta, cê hoje é independente, não precisa mais ter vergonha do vô nem de ninguém por não ter marido. Nada Pode ser pior do que como está! mãe, pensa.
Foi grande o efeito que essas palavras causaram no espírito de dona Fernanda. Como se ela estivesse esperando alguém mais forte que ela para resolver pela separação definitiva, como se sua fortaleza estivesse fragilizada, precisando de um retoque de concreto para não tombar de vez. E foi assim que pegou uma bolsa e dentro colocou todos os pertences do marido, poucos, pois ele não comprava roupa por não ter o hábito de trocá-las amiúde, colocou-a na sala para que ele a encontrasse logo que entrasse. Quando o marido chegou, ele tirou a blusa para fora da calça e deu aquele suspiro de Hércules após os doze trabalhos, Dona Fernanda, perto da filha para unir suas energias, anunciou sua decisão, apontando para a bolsa no canto da parede. Não esperou muito porque temia que a figura autoritária do marido dominasse seu íntimo e ela acabasse voltando atrás. Ele que se sentia absoluto principalmente naqueles últimos dias, pois sabia que era só uma questão de tempo e teria suas vontades realizadas, quedou-se numa atitude de desespero.
─ Mas pra onde eu vou? Vocês são minha família, eu não tenho mais ninguém no mundo. – E forçou o rosto num espasmo como se fosse se desmanchar em lágrimas que não saíram. Foi Larissa que não atendendo aos apelos da mãe retomou:
─ Que família pai... – Naquele momento sofreou as palavras, é que esse nome travou-lhe a boca com um gosto terrivelmente amargo, há tempos ela não lhe dirigia a palavra e fazê-lo naquelas circunstâncias lhe foi deveras difícil. – Que família pai – continuou – Isto aqui nunca foi uma família, no máximo o que somos são três pessoas dentro de um apartamento, sem nenhuma ou quase nenhuma ligação sentimental, senão medo, vergonha.
─ Não é verdade, minha filha eu... – o facínora tentou continuar o teatro, mas foi interrompido por Dona Fernanda.
─ Não vamos mais discutir. Pegue a bolsa e vá, se houver mais alguma coisa você vem pegar depois.
O homem então se levantou, pegou a bolsa e saiu, pois viu naquela idéia de pegar o restante das coisas uma boa ocasião para voltar a casa. Como tinha uma cópia das chaves, poderia voltar um dia à noite, e saiu. Mãe e filha se abraçaram e ficaram por muito tempo em silêncio.
No dia seguinte, a primeira decisão de dona Fernanda foi trocar as fechaduras da porta e do portão, depois lavou a casa como para desinfetá-la, foi ao cabeleireiro e a manicura, e a filha estava radiante com aquelas atitudes. Agora elas começariam realmente uma nova vida. Larissa agora poderia se preocupar com sua própria vida. É claro que não poderia se desligar da mãe, pois ainda era cedo e tinha medo de uma recaída.
CAPÍTULO XIV
“Ó vós, homens de sigla; ó vós, homens de cifra
Falsos chimangos, calabares, sinicuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.”
(Carata aos Puros)
No entanto só as crônicas de machismo desse condomínio, palco da nossa história, dariam uma biblioteca. Às vezes cômicas outras trágicas, elas vão-se acumulando na memória das pessoas ávidas por algo que lhes preencha o tempo. No geral são motivos de riso nas mesas de bares e de constrangimento para as personagens envolvidas nelas. Vamos a algumas para ilustrar essa nossa narrativa.
Seu Arlindo era um técnico em eletrônica. Um técnico não, perdoem-me, era o técnico em eletrônica. Isso nas décadas de setenta e oitenta. Não havia marca de rádio e tevê que ele não conhecesse a fundo. Vinham pessoas de todo canto da cidade para consultar seus aparelhos com ele. Se você tivesse um aparelho com defeito, fosse Telefunquem, Semp, GE, Panacolor, ele era o cara que iria resolver o problema. Tinha na garagem dois carros, além de uma moto para os passeios solitários. A mulher pouco o via, pois quando ele não estava na oficina só se poderia encontrá-lo nas melhores churrascarias da cidade. Sempre acompanhado de uma “moça” diferente, orgulhava-se de não faltar nada em casa e de ter clientes para financiar suas farras. A mulher apesar de seu humilde trabalho de faxineira do banco Itaú, deveria estar em casa quando ele resolvesse tornar a ela.
E assim seu Arlindo, quarenta anos “bem vividos”, não procurou saber das novidades tecnológicas que estavam chegando ao mercado, tampouco tinha tempo para isso, preocupado com suas carraspanas homéricas regadas a colo de mulher. Os clientes foram rareando sem que ele percebesse os motivos. Gradativamente foi diminuindo seu padrão de vida, mas o vício não lhe permitia que ele se desse conta disso. Até que depois de vender o último objeto fálico, a moto, e sem ter mais clientes que lhe patrocinassem a vida, viu-se, aos sessenta anos, preso no próprio apartamento, assistindo à tevê ao lado da mulher. A oficina não lhe rende nada além de alguns trocados os quais deixa num boteco que há nas proximidades. A mulher com seu humilde salário de faxineira é quem mantém a casa. Essa história é conhecida de todos, mas não serve de lição, pois continua se repetindo dia após dias, e logo são registradas nos anais do condomínio. Nosso amigo Cleiton, referido no episódio da falta de água, sempre atento, registra-as em cordéis que são consumidos aos montes pelos distintos moradores. Que riem e não sabem muitas vezes que serão os próximos a renderem idéias para nosso poeta de plantão.
Vamos a outra história. Reginaldo casou-se e sua primeira empresa foi desencorajar a mulher a trabalhar. Missão cumprida com facilidade, pois, apaixonada e grávida, a mulher compreendeu que sua vida seria cuidar da família. Advindo de uma família machista, pois se criara ouvindo o pai gritar do banheiro, “mulher o sabonete, mulher a toalha, mulher a cueca...” Reginaldo compreendia que o sexo oposto nascera para servir ao homem e não para compartilhar bons e maus momentos com ele.
Aos finais de semana, depois de chegar do trabalho, sentava-se na poltrona e repetia o discurso aprendido com o pai:
─ Helena, traz um uisquinho. – Depois – Helena, uma azeitoninha.
E ia por aí. Entrar na cozinha só se fosse para acompanhar o moço da entrega do gás para vê-lo instalar o botijão. Era feliz por ter sempre à mão as meias e cuecas limpas. A esposa, até onde lhe permitia o conhecimento de prazer, era feliz. Nossa personagem se orgulhava de ser garanhão. Era um pega aqui outro ali que não tinha fim. Se era verdade ou não os amigos nunca iriam saber. Era tanta história, que Sérgio, um homem pacato e fiel, sentiu-se no direito de também dar uma escapadela, mas sentiu-se tão constrangido pela fraqueza que ao chegar a casa, depois do fato consumado, contou tudo para a esposa e pediu-lhe perdão. É, toda regra tem exceção, com exceção de algumas regras.
Um dia Reginaldo cansou da esposa e foi embora de casa, disposto a mar outras que possivelmente o aguardavam de braços abertos e prontas a satisfazerem seus ímpetos bestiais. Foi por essa época que veio morar nesse emaranhado de pedra e cal, nesse mundo de pessoas igualmente diferentes, nessa promiscuidade de seres e de idéias que chamamos condomínio. Foi aqui que conheceu Marielva, uma mulher cujo nome não saía da boca das matildes e cujos lábios não tinham dono, eram de quem lhe aprouvesse. A paixão tira o juízo de qualquer um e o amor sucumbe todos os sentidos. Apaixonado pelo corpo e pela alma da desajuizada, nosso amigo submeteu-se aos caprichos da amásia, e hoje quando ela chega, tarde da noite, não se sabe de onde, a comida está quente dentro ainda do microondas e ele dorme ao lado de uma garrafa de uísque e uma foto da amada. A vida é assim: um eterno toma lá da cá, aqui se faz aqui se paga.
terça-feira, 1 de setembro de 2009
SONETO PARA LARISSA
CAPÍTULO XI
“De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.”
(Soneto de Separação)
Larissa procurava de todas as formas não revelar suas suspeitas. E o conseguia, como sempre fazem as mulheres quando precisam dissimular algo. Elas riem com facilidade, simulam naturalidade quando a situação é de total desespero, choram, se a situação o exigir, quando têm vontade de rir e enganam um companheiro até enquanto querem. São bobos os homens que pensam traírem às mulheres. Coitados, desde o primeiro momento em que eles se veem enrabichados por outra, elas o sabem. Eles não têm controle sobre seus sentimentos, suas atitudes são denunciadoras do que vai no seu íntimo. Já elas não. Discriminadas desde cedo, são obrigadas a encobrirem seus desânimos diante da vida. Aos domingos, enquanto o pai leva o filho para o estádio, a filha vai para a pia lavar os pratos. Esse desprezo implícito leva-as a criar uma couraça sobre uma alma abalada, que aos poucos se tona resistente como uma rocha. É essa couraça que se vê durante toda sua existência. Quando um casal se separa, por exemplo, quem vai para o bar refletir suas amarguras? O homem. Quem fica em casa preocupada em reedificar o lar, para que os filhos não sofram? A mulher. Quem primeiro reorganiza seu modo de vida sem derramar uma lágrima em público? A mulher. Quem volta para casa, como um cachorro, com o rabo entre as pernas? O homem. Certa vez, caro leitor e cara leitora, um homem de estatura e compleição consideráveis, que mais lembrava o Rambo, contou-me, à beira-mar, onde exibia sua máscula figura, que saíra de casa três vezes, cada uma encantado por uma nova conquista. E em todas as vezes que tornara a casa, a esposa o recebera, com as mãos cheias de perdão (como diria Vinícius de Morais). Até que um dia ela o chamou para uma pizzaria e lá lhe disse que não dava mais, o casamento chegara, enfim, ao fim. Nesse momento eu notei que as lágrimas escorriam pelo rosto do brutamontes, que, de cabeça baixa, arrematou: “Naquele momento eu percebi que não tinha volta, ela falara com convicção e eu senti o chão se abrir sob meus pés. Três meses depois quando eu ainda afogava as mágoas, criadas por mim, entre um copo e outro de cerveja, ela já arquivara seu passado e tomava novo curso... inclusive com um novo companheiro.”.
Foi assim que nossa personagem sem deixar transparecer iniciou e concluiu suas investigações sobre a moça do telefonema misterioso. Apesar da frieza com que conduzira suas ações, não percebeu que Vivi facilitava-lhe a vida. Sempre que estava com Camila, sem que esta notasse, Vivi ligava para Ígor e depois desligava. Isso ocorria sempre que ela sabia da presença de Larissa ao lado do rapaz. Sentindo-se pressionado, Ígor resolveu dar descaminho naquela situação e foi ter com Camila. Era uma tarde em que Larissa não estava no condomínio. Sua vontade por sexo não lhe permitiu que ele deixasse a situação passar em branco. Vivi deu um xeque mate na situação, pedindo para que uma amiga ligasse para Larissa para adiantar sua volta e fazê-la flagrar o rapaz na saída do apartamento da cocote.
Deu-se o desmastreio. Não adiantaram as tentativas de explicações de Ígor. Até porque não havia explicação plausível para a situação. Feito um louco o rapaz lamentava, pedia desculpas e dizia-se vítima de uma armação, ou por intuição ou por defesa, ele o afirmava quase aos gritos. Larissa, engolindo a vontade de chorar, deixou-o a sós e foi para casa. Naquele dia não quis conversa com nada nem com ninguém. Desligou o celular e sucumbiu numa reflexão intensa. Não entendia o namorado por que ele ficara com ela se pretendia ter outra; sabia das necessidades dele e conhecia por alto os caminhos trilhados por Camila, mas a vida da outra nunca lhe interessara, por fim agora estava tudo acabado. Como acreditar nos homens, se aquele era um exemplo de conduta, nunca lhe prometera com palavras não a trair, mas sabia que no seu íntimo fazia essa promessa a si. Não estavam os dois combinados de fazerem a entrega mútua, seria mágico o momento em que ambos se conheceriam de forma completa. Agora estava tudo acabado! E a menina jurava mais uma vez para si que não seria como a mãe. Nesse momento lembrou-se de Vivi, dos olhares que ela lhe dirigia e lembrou-lhe a noite de seu aniversário. Sua cabeça era um mar de confusão. Só tinha uma certeza: não olharia nunca mais nos olhos do ex-namorado, nem jamais confiaria em homem nenhum.
CAPÍTULO XII
“Meus olhos escancarados
De medo e negra friagem
Eram buracos na treva
totalmente impenetrável.”
(Balada Negra)
Para aumentarem ainda mais suas decepções o pai voltara a beber. “É só um pouquinho, quando ele deixa a garagem, a final passar o dia inteiro ouvindo o barulho daquele motor, ninguém é de ferro.” Justificava a mãe. Só que a partir daí ele começou uma nova lengalenga. Insistia que não havia necessidade mais daquela “oficina de salgados”, que estava ganhando bem e em breve compraria um ônibus para no futuro ter sua própria frota. À medida que a insistência aumentava o cheiro de bebida ficava mais forte. Dona Fernanda não sabia mais o que fazer diante da situação. Quando o marido chegava, a primeira coisa de que reclamava era do cheiro de salgado, e começava o falatório:
─ O que as pessoas vão dizer? Que eu não consigo manter minha família. Todos os meus colegas se orgulham de suas mulheres não trabalharem, de chegarem em casa e encontrarem elas limpinhas, cheirosinhas.
E enfiava um discurso machista atrás do outro, até que, quando achava suficiente, que estava conseguindo sensibilizar “os entes queridos”, calava, para não dizer mais palavra. Não tomava banho, como sempre ocorria quando bebia, deitava na rede e roncava à noite toda. Para Larissa era um transtorno perceber que a história da sua mãe não tinha cura e temia que ela cedesse àqueles desvarios. Pensava ainda no pior.
E o pior veio. O pai passou a não mais falar, nem insistir no seu discurso monocórdio. Agora exigia que Dona Fernanda abandonasse os salgados. Insanamente ela tentava argumentar, falando dos compromissos com fornecedores e clientes, que eles viviam desse trabalho. “E se tu perder o emprego, bebendo como tá? Como vou recomeçar tudo outra vez?” Falava mais por desespero do que para dar uma justificativa a ele, mas como na história do lobo e do cordeiro era tudo em vão: não se pode discutir com um desvairado.
Das exigências ele passou às ameaças. Chegava a casa, batendo forte na porta, depois, já no interior, começava a bater com a palma da mão na parede da sala até a cozinha, e ameaçava com voz autoritária:
─ Em breve, se eu continuar a sentir esse cheiro horroroso dentro de casa, esta mão – e mostrava a manzorra espalmada próximo ao rosto da mulher – vai explodir na cara de gente.
Larissa, não cria nas ameaças do pai, mas para não ver as humilhações a que a mãe era submetida, como fazia outrora, evitava estar em casa quando ele chegava. Descia e ia encontrar as colegas, que estavam sempre inventando algo, sob a batuta da maestrina Vivi. Esta, como boa enxadrista, mudara de estratégia. Após o sucesso de seu plano para separar Larissa de Ígor, não mais dirigia a palavra a ela, a não ser o indispensável. Isso fazia com que esta não desconfiasse de sua participação no episódio. Seu plano agora era deixar a menina à vontade no grupo para que ela pudesse então se apaixonar por ela. Ela era realmente a vedete do grupo. Se havia jogo de futebol na quadra lá estava ela, na torcida ou na quadra mandando bem; se era um concurso de dança promovido por alguma empresa de bebida ou pela administração do condomínio, era ela que ganhava, enfim estava presente em tudo. Sua última invenção era transformar o antigo fã clube da dupla Tatu em um grupo de teatro, composto só por mulheres, é claro. As reuniões do grupo eram feitas na mesma sala em que se realizavam as outras, contígua à administração do condomínio. O primeiro trabalho delas foi apresentado em espaço aberto, no meio da quadra, num palco improvisado. Era uma peça da obra de Álvaro de Azevedo, Macário, que trata do encontro da personagem homônima com o diabo. Adivinha quem era o Tinhoso: Vivi. Larissa fora escolhida para ser Macário. Vestidos a caráter as meninas deram um espetáculo, que foi aplaudido por todos os presentes. Ao final foram comemorar na casa da líder do grupo, cuja mãe não se encontrava. Vivi aproveitando-se da alegria do grupo dirigiu-se à Larissa para cumprimentá-la:
─ Nossa, você estava divina. – e, fingindo estar meio sem jeito, abraçou-a de leve. Larissa foi invadida pelo cheiro da outra e ficou meio desorientada, subitamente teve vontade de enlaçá-la, beijá-la, mas se afastou com repulsa de si mesma, por sentir-se fragilizada dessa forma.
Quando chegou a casa, Larissa estranhou que a mãe já tivesse ido dormir. O pai roncava já de boca aberta tresandando a álcool. Durante um bom tempo ela se questionou sobre as últimas sensações que tivera, principalmente quando foi abraçada por Vivi. E pensou como é complicado a gente adolescer. Com efeito, ela estava por fazer quatorze anos e precisava decidir-se pela melhor conduta genérica a seguir, não para dar uma satisfação aos outros, mas por si mesma, para sua satisfação pessoal. Estava na fronteira que leva uma pessoa do sexo feminino ou masculino a fazer sua opção sexual definitiva. Era incrível como ela percebia isso, enquanto outros penam numa crise de identidade desgastante. Sentia-se senhora do seu próprio destino. De um lado estavam os homens, representados pelo pai e pelo ex-namorado, sabia que eles não representavam todos os homens do mundo, mas eram bons estereótipos da raça, sabia por experiências de outrem que não poderia esperar muito deles. Do outro lado estavam as mulheres, representadas pela mãe e por Vivi, além das colegas de quem gostava pelo que tinham de iguais. Sentia pena das mulheres apesar de achá-las forte, uma rocha e essa fortaleza ela sentia dentro de si. Principalmente agora que estava à beira de uma decisão que nortearia toda sua existência. E lembrou os versos do tio Jonas:
Pronta a amar, augusto, a quem aprouver,
Ó impudente luz de dourada beleza.
Ela estava decidida a seguir a risca os versos do tio, amaria a quem quisesse sem pudor, de forma sagrada e só então resolveria sua conduta definitiva.
No dia seguinte antes de sair para a aula, procurou a mãe que estava na pia da cozinha de costas.
─ Tchau, mãe já vou indo.
─ Tchau, minha filha, boa prova.
Larissa achou estranho que a mãe não virasse o rosto para lhe mandar um beijo como sempre fazia, e indagou.
─ Mãe, o que houve? E se dirigiu à dona Fernanda, que tentou esconder o rosto.
─ Deixe-me ver seu rosto, mãe! – Instou, puxando a mãe pelo braço – Meu Deus! O que foi que houve ontem à noite!? – Indagou inquisidora ao ver o rosto de Dona Fernanda, quase que totalmente vermelho e intumescido? – Isso não pode tá acontecendo, meu Deus, ele bate em você e cê ainda tenta encobrir, puta que pariu, isso é demais – nesse momento a menina estava descomposta, as lágrimas desciam-lhe pelo rosto enquanto ela andava de um lado o outro dando palmadas na parede, instintivamente imitando os gestos do pai. A mãe abraçou-se a ela e as duas resvalaram para o chão e ficaram lá um bom tempo, enquanto as lágrimas se misturavam, e só tempo depois os soluços cessaram.
─ Isso não vai mais acontecer, minha filha.
─ Como não vai mais acontecer, se agora é que começou! Antes ele fazia o que fazia, mas não ousava tocar na gente, mas agora que ele começou, isso não vai ter fim. – argumentava a menina alterando novamente o tom da voz.
─ Não vai, minha filha, eu prometo.
Foi com algum esforço que a menina conseguiu se recuperar e adquirir forças para ir à escola, afinal estava na semana de provas finais do segundo bimestre e ela não queria fazer segunda chamada. No ônibus, com a cabeça voltada para fora da janela, com os cabelos esvoaçantes pela ação do vento, ia pensativa. Tinha que encontrar junto com a mãe uma saída para aquela situação. Foi com essas reflexões que ela chegou à escola. Por enquanto tinha que se preocupar com as provas de História e Matemática, agendadas para aquele dia.
Nos dias que se seguiram, Larissa não saía mais de casa depois que retornava da escola. As amigas ligavam para ela chamando-a para os ensaios da próxima peça, mas ela pediu que colocassem outra no seu lugar, “porque eu tô estudando para as prova”. Na verdade ela não queria sair de perto da mãe. Na noite que se seguiu ao da surra, o pai chegou a casa sóbrio, não trocou palavra com ninguém e assim foi dormir. No dia seguinte o mesmo se deu, mas, antes de deitar em sua fétida rede, ele deu boa noite. Larissa sempre que estava a sós com a mãe tentava falar sobre uma solução para o problema familiar, a mãe, entretanto, fugia do assunto e assim terminou a semana. Larissa estava de férias. A mãe após terminar o jantar dirigiu-se à filha:
─ Lissa, cê num vai sair um pouquinho não, filha, suas provas já terminaram e eu acho que vê podia sair um pouquinho.
─ Só se for com você. Que tal? Vamos comer uma pizza.
─ Não, minha filha, acabei de fazer o jantar e daqui a pouco seu pai chega.
Larissa balançou a cabeça com raiva e foi para o quarto. Lá ela pegou seu diário e tentou colocar as últimas impressões que a vida lhe impusera. Nesse momento percebeu a chegada do pai, mesmo que ele o fizesse em silêncio, pois era por demais covarde, por isso temia a união das duas, preferia lidar com a mulher sozinha. A cabeça de Larissa passou a girar a mil. Via os avós, a casa sempre cheia no mês de julho, os almoços regados a muita história, mas a figura do pai não aparecia. Lembrou-se da festa do ABC, era algo irrigado em sua memória, pois lá estavam todos os pais, menos o seu. Num instante descobriu que em nenhum momento de sua vida o pai estivera, talvez só na sua concepção. Foi assim que adormecera. No meio da noite, acordou com sede e foi à cozinha. Estranhou a luz do quarto da mãe acesa, ia bater na porta, mas hesitou ao ouvir barulho, era o rangido da cama e o ofego do pai, que aos poucos foi cessando até o estertor final. Percebeu, então, que ele levantava e se dirigia à porta. Ela correu para o seu quarto sem ser percebida. Entre as idéias que lhe inquietavam o espírito naquele momento estava o pensamento sobre se a mãe também tirara proveito daquela relação.
(continua)
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