segunda-feira, 7 de setembro de 2009

SONETO PARA LARISSA

CAPÍTULO XIII

“Ó vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres,
Que só articulais para emitir conceitos...”
(Carta aos Puros)



Seu aniversário de quatorze anos foi comemorado no interior, na casa dos avós. Na verdade ela não via clima para comemoração, mas a mãe insistiu tanto que ela cedeu. No entanto o argumento mais forte foi a saudade dos avós, que não a viam há quase um ano. Como a mãe não pôde viajar, ela aproveitou uma carona com um tio às vésperas do aniversário, para não deixar a mãe por muito tempo só. Foi assim que aportou em sua cidade totalmente diferente de quando saíra. Os comentários na rua eram um só:
─ Nossa como essa menina tá grande. Dizia uma vizinha da avó.
─ Mas tá uma moça, como cresceu. Espantava-se uma tia-avó.
À noite fora reencontrar na praça da matriz as antigas companheiras. Foi um momento de angustiante constrangimento, pois ninguém ali tinha a ver com ela, e nem ela tinha a ver com alguém, por isso as longas conversas imaginadas por Larissa resumiram-se a alguns monossílabos sem continuidade. Tentavam reiniciar antigos diálogos que logo perdiam seu fio e o silêncio era o senhor na maior do parte do tempo. Conformou-se em sentar à mesa com os avós e alguns tios para ouvir uma música cujos acordes não condiziam com seu espírito jovem, apesar de reflexivo.

De volta a casa, encontrou a mãe cabisbaixa, mais compungida do que quando a deixou. Era que o pai tornara a falar sobre ela deixar os salgados, voltara também a chegar bêbado. A menina resolveu ter uma conversa séria com a mãe.
─ Mãe, você não pode passar a vida assim, você é nova, poderá encontrar alguém que a respeite. Ou não precisará encontrar ninguém. Nós mulheres somos fortes, somos donas de nossos corpos, de nossos sentimentos. Os homens é que são nervosos, pobres coitados, escravos do sexo e de outros vícios. – Nesse momento ela pensou em Ígor e teve saudades – Se você deixar esse homem que se diz seu marido e meu pai, não vai sentir nenhuma falta, cê hoje é independente, não precisa mais ter vergonha do vô nem de ninguém por não ter marido. Nada Pode ser pior do que como está! mãe, pensa.
Foi grande o efeito que essas palavras causaram no espírito de dona Fernanda. Como se ela estivesse esperando alguém mais forte que ela para resolver pela separação definitiva, como se sua fortaleza estivesse fragilizada, precisando de um retoque de concreto para não tombar de vez. E foi assim que pegou uma bolsa e dentro colocou todos os pertences do marido, poucos, pois ele não comprava roupa por não ter o hábito de trocá-las amiúde, colocou-a na sala para que ele a encontrasse logo que entrasse. Quando o marido chegou, ele tirou a blusa para fora da calça e deu aquele suspiro de Hércules após os doze trabalhos, Dona Fernanda, perto da filha para unir suas energias, anunciou sua decisão, apontando para a bolsa no canto da parede. Não esperou muito porque temia que a figura autoritária do marido dominasse seu íntimo e ela acabasse voltando atrás. Ele que se sentia absoluto principalmente naqueles últimos dias, pois sabia que era só uma questão de tempo e teria suas vontades realizadas, quedou-se numa atitude de desespero.
─ Mas pra onde eu vou? Vocês são minha família, eu não tenho mais ninguém no mundo. – E forçou o rosto num espasmo como se fosse se desmanchar em lágrimas que não saíram. Foi Larissa que não atendendo aos apelos da mãe retomou:
─ Que família pai... – Naquele momento sofreou as palavras, é que esse nome travou-lhe a boca com um gosto terrivelmente amargo, há tempos ela não lhe dirigia a palavra e fazê-lo naquelas circunstâncias lhe foi deveras difícil. – Que família pai – continuou – Isto aqui nunca foi uma família, no máximo o que somos são três pessoas dentro de um apartamento, sem nenhuma ou quase nenhuma ligação sentimental, senão medo, vergonha.
─ Não é verdade, minha filha eu... – o facínora tentou continuar o teatro, mas foi interrompido por Dona Fernanda.
─ Não vamos mais discutir. Pegue a bolsa e vá, se houver mais alguma coisa você vem pegar depois.
O homem então se levantou, pegou a bolsa e saiu, pois viu naquela idéia de pegar o restante das coisas uma boa ocasião para voltar a casa. Como tinha uma cópia das chaves, poderia voltar um dia à noite, e saiu. Mãe e filha se abraçaram e ficaram por muito tempo em silêncio.
No dia seguinte, a primeira decisão de dona Fernanda foi trocar as fechaduras da porta e do portão, depois lavou a casa como para desinfetá-la, foi ao cabeleireiro e a manicura, e a filha estava radiante com aquelas atitudes. Agora elas começariam realmente uma nova vida. Larissa agora poderia se preocupar com sua própria vida. É claro que não poderia se desligar da mãe, pois ainda era cedo e tinha medo de uma recaída.




CAPÍTULO XIV

“Ó vós, homens de sigla; ó vós, homens de cifra
Falsos chimangos, calabares, sinicuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.”
(Carata aos Puros)



No entanto só as crônicas de machismo desse condomínio, palco da nossa história, dariam uma biblioteca. Às vezes cômicas outras trágicas, elas vão-se acumulando na memória das pessoas ávidas por algo que lhes preencha o tempo. No geral são motivos de riso nas mesas de bares e de constrangimento para as personagens envolvidas nelas. Vamos a algumas para ilustrar essa nossa narrativa.

Seu Arlindo era um técnico em eletrônica. Um técnico não, perdoem-me, era o técnico em eletrônica. Isso nas décadas de setenta e oitenta. Não havia marca de rádio e tevê que ele não conhecesse a fundo. Vinham pessoas de todo canto da cidade para consultar seus aparelhos com ele. Se você tivesse um aparelho com defeito, fosse Telefunquem, Semp, GE, Panacolor, ele era o cara que iria resolver o problema. Tinha na garagem dois carros, além de uma moto para os passeios solitários. A mulher pouco o via, pois quando ele não estava na oficina só se poderia encontrá-lo nas melhores churrascarias da cidade. Sempre acompanhado de uma “moça” diferente, orgulhava-se de não faltar nada em casa e de ter clientes para financiar suas farras. A mulher apesar de seu humilde trabalho de faxineira do banco Itaú, deveria estar em casa quando ele resolvesse tornar a ela.
E assim seu Arlindo, quarenta anos “bem vividos”, não procurou saber das novidades tecnológicas que estavam chegando ao mercado, tampouco tinha tempo para isso, preocupado com suas carraspanas homéricas regadas a colo de mulher. Os clientes foram rareando sem que ele percebesse os motivos. Gradativamente foi diminuindo seu padrão de vida, mas o vício não lhe permitia que ele se desse conta disso. Até que depois de vender o último objeto fálico, a moto, e sem ter mais clientes que lhe patrocinassem a vida, viu-se, aos sessenta anos, preso no próprio apartamento, assistindo à tevê ao lado da mulher. A oficina não lhe rende nada além de alguns trocados os quais deixa num boteco que há nas proximidades. A mulher com seu humilde salário de faxineira é quem mantém a casa. Essa história é conhecida de todos, mas não serve de lição, pois continua se repetindo dia após dias, e logo são registradas nos anais do condomínio. Nosso amigo Cleiton, referido no episódio da falta de água, sempre atento, registra-as em cordéis que são consumidos aos montes pelos distintos moradores. Que riem e não sabem muitas vezes que serão os próximos a renderem idéias para nosso poeta de plantão.

Vamos a outra história. Reginaldo casou-se e sua primeira empresa foi desencorajar a mulher a trabalhar. Missão cumprida com facilidade, pois, apaixonada e grávida, a mulher compreendeu que sua vida seria cuidar da família. Advindo de uma família machista, pois se criara ouvindo o pai gritar do banheiro, “mulher o sabonete, mulher a toalha, mulher a cueca...” Reginaldo compreendia que o sexo oposto nascera para servir ao homem e não para compartilhar bons e maus momentos com ele.
Aos finais de semana, depois de chegar do trabalho, sentava-se na poltrona e repetia o discurso aprendido com o pai:
─ Helena, traz um uisquinho. – Depois – Helena, uma azeitoninha.
E ia por aí. Entrar na cozinha só se fosse para acompanhar o moço da entrega do gás para vê-lo instalar o botijão. Era feliz por ter sempre à mão as meias e cuecas limpas. A esposa, até onde lhe permitia o conhecimento de prazer, era feliz. Nossa personagem se orgulhava de ser garanhão. Era um pega aqui outro ali que não tinha fim. Se era verdade ou não os amigos nunca iriam saber. Era tanta história, que Sérgio, um homem pacato e fiel, sentiu-se no direito de também dar uma escapadela, mas sentiu-se tão constrangido pela fraqueza que ao chegar a casa, depois do fato consumado, contou tudo para a esposa e pediu-lhe perdão. É, toda regra tem exceção, com exceção de algumas regras.
Um dia Reginaldo cansou da esposa e foi embora de casa, disposto a mar outras que possivelmente o aguardavam de braços abertos e prontas a satisfazerem seus ímpetos bestiais. Foi por essa época que veio morar nesse emaranhado de pedra e cal, nesse mundo de pessoas igualmente diferentes, nessa promiscuidade de seres e de idéias que chamamos condomínio. Foi aqui que conheceu Marielva, uma mulher cujo nome não saía da boca das matildes e cujos lábios não tinham dono, eram de quem lhe aprouvesse. A paixão tira o juízo de qualquer um e o amor sucumbe todos os sentidos. Apaixonado pelo corpo e pela alma da desajuizada, nosso amigo submeteu-se aos caprichos da amásia, e hoje quando ela chega, tarde da noite, não se sabe de onde, a comida está quente dentro ainda do microondas e ele dorme ao lado de uma garrafa de uísque e uma foto da amada. A vida é assim: um eterno toma lá da cá, aqui se faz aqui se paga.

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