CAPÍTULO XI
“De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.”
(Soneto de Separação)
Larissa procurava de todas as formas não revelar suas suspeitas. E o conseguia, como sempre fazem as mulheres quando precisam dissimular algo. Elas riem com facilidade, simulam naturalidade quando a situação é de total desespero, choram, se a situação o exigir, quando têm vontade de rir e enganam um companheiro até enquanto querem. São bobos os homens que pensam traírem às mulheres. Coitados, desde o primeiro momento em que eles se veem enrabichados por outra, elas o sabem. Eles não têm controle sobre seus sentimentos, suas atitudes são denunciadoras do que vai no seu íntimo. Já elas não. Discriminadas desde cedo, são obrigadas a encobrirem seus desânimos diante da vida. Aos domingos, enquanto o pai leva o filho para o estádio, a filha vai para a pia lavar os pratos. Esse desprezo implícito leva-as a criar uma couraça sobre uma alma abalada, que aos poucos se tona resistente como uma rocha. É essa couraça que se vê durante toda sua existência. Quando um casal se separa, por exemplo, quem vai para o bar refletir suas amarguras? O homem. Quem fica em casa preocupada em reedificar o lar, para que os filhos não sofram? A mulher. Quem primeiro reorganiza seu modo de vida sem derramar uma lágrima em público? A mulher. Quem volta para casa, como um cachorro, com o rabo entre as pernas? O homem. Certa vez, caro leitor e cara leitora, um homem de estatura e compleição consideráveis, que mais lembrava o Rambo, contou-me, à beira-mar, onde exibia sua máscula figura, que saíra de casa três vezes, cada uma encantado por uma nova conquista. E em todas as vezes que tornara a casa, a esposa o recebera, com as mãos cheias de perdão (como diria Vinícius de Morais). Até que um dia ela o chamou para uma pizzaria e lá lhe disse que não dava mais, o casamento chegara, enfim, ao fim. Nesse momento eu notei que as lágrimas escorriam pelo rosto do brutamontes, que, de cabeça baixa, arrematou: “Naquele momento eu percebi que não tinha volta, ela falara com convicção e eu senti o chão se abrir sob meus pés. Três meses depois quando eu ainda afogava as mágoas, criadas por mim, entre um copo e outro de cerveja, ela já arquivara seu passado e tomava novo curso... inclusive com um novo companheiro.”.
Foi assim que nossa personagem sem deixar transparecer iniciou e concluiu suas investigações sobre a moça do telefonema misterioso. Apesar da frieza com que conduzira suas ações, não percebeu que Vivi facilitava-lhe a vida. Sempre que estava com Camila, sem que esta notasse, Vivi ligava para Ígor e depois desligava. Isso ocorria sempre que ela sabia da presença de Larissa ao lado do rapaz. Sentindo-se pressionado, Ígor resolveu dar descaminho naquela situação e foi ter com Camila. Era uma tarde em que Larissa não estava no condomínio. Sua vontade por sexo não lhe permitiu que ele deixasse a situação passar em branco. Vivi deu um xeque mate na situação, pedindo para que uma amiga ligasse para Larissa para adiantar sua volta e fazê-la flagrar o rapaz na saída do apartamento da cocote.
Deu-se o desmastreio. Não adiantaram as tentativas de explicações de Ígor. Até porque não havia explicação plausível para a situação. Feito um louco o rapaz lamentava, pedia desculpas e dizia-se vítima de uma armação, ou por intuição ou por defesa, ele o afirmava quase aos gritos. Larissa, engolindo a vontade de chorar, deixou-o a sós e foi para casa. Naquele dia não quis conversa com nada nem com ninguém. Desligou o celular e sucumbiu numa reflexão intensa. Não entendia o namorado por que ele ficara com ela se pretendia ter outra; sabia das necessidades dele e conhecia por alto os caminhos trilhados por Camila, mas a vida da outra nunca lhe interessara, por fim agora estava tudo acabado. Como acreditar nos homens, se aquele era um exemplo de conduta, nunca lhe prometera com palavras não a trair, mas sabia que no seu íntimo fazia essa promessa a si. Não estavam os dois combinados de fazerem a entrega mútua, seria mágico o momento em que ambos se conheceriam de forma completa. Agora estava tudo acabado! E a menina jurava mais uma vez para si que não seria como a mãe. Nesse momento lembrou-se de Vivi, dos olhares que ela lhe dirigia e lembrou-lhe a noite de seu aniversário. Sua cabeça era um mar de confusão. Só tinha uma certeza: não olharia nunca mais nos olhos do ex-namorado, nem jamais confiaria em homem nenhum.
CAPÍTULO XII
“Meus olhos escancarados
De medo e negra friagem
Eram buracos na treva
totalmente impenetrável.”
(Balada Negra)
Para aumentarem ainda mais suas decepções o pai voltara a beber. “É só um pouquinho, quando ele deixa a garagem, a final passar o dia inteiro ouvindo o barulho daquele motor, ninguém é de ferro.” Justificava a mãe. Só que a partir daí ele começou uma nova lengalenga. Insistia que não havia necessidade mais daquela “oficina de salgados”, que estava ganhando bem e em breve compraria um ônibus para no futuro ter sua própria frota. À medida que a insistência aumentava o cheiro de bebida ficava mais forte. Dona Fernanda não sabia mais o que fazer diante da situação. Quando o marido chegava, a primeira coisa de que reclamava era do cheiro de salgado, e começava o falatório:
─ O que as pessoas vão dizer? Que eu não consigo manter minha família. Todos os meus colegas se orgulham de suas mulheres não trabalharem, de chegarem em casa e encontrarem elas limpinhas, cheirosinhas.
E enfiava um discurso machista atrás do outro, até que, quando achava suficiente, que estava conseguindo sensibilizar “os entes queridos”, calava, para não dizer mais palavra. Não tomava banho, como sempre ocorria quando bebia, deitava na rede e roncava à noite toda. Para Larissa era um transtorno perceber que a história da sua mãe não tinha cura e temia que ela cedesse àqueles desvarios. Pensava ainda no pior.
E o pior veio. O pai passou a não mais falar, nem insistir no seu discurso monocórdio. Agora exigia que Dona Fernanda abandonasse os salgados. Insanamente ela tentava argumentar, falando dos compromissos com fornecedores e clientes, que eles viviam desse trabalho. “E se tu perder o emprego, bebendo como tá? Como vou recomeçar tudo outra vez?” Falava mais por desespero do que para dar uma justificativa a ele, mas como na história do lobo e do cordeiro era tudo em vão: não se pode discutir com um desvairado.
Das exigências ele passou às ameaças. Chegava a casa, batendo forte na porta, depois, já no interior, começava a bater com a palma da mão na parede da sala até a cozinha, e ameaçava com voz autoritária:
─ Em breve, se eu continuar a sentir esse cheiro horroroso dentro de casa, esta mão – e mostrava a manzorra espalmada próximo ao rosto da mulher – vai explodir na cara de gente.
Larissa, não cria nas ameaças do pai, mas para não ver as humilhações a que a mãe era submetida, como fazia outrora, evitava estar em casa quando ele chegava. Descia e ia encontrar as colegas, que estavam sempre inventando algo, sob a batuta da maestrina Vivi. Esta, como boa enxadrista, mudara de estratégia. Após o sucesso de seu plano para separar Larissa de Ígor, não mais dirigia a palavra a ela, a não ser o indispensável. Isso fazia com que esta não desconfiasse de sua participação no episódio. Seu plano agora era deixar a menina à vontade no grupo para que ela pudesse então se apaixonar por ela. Ela era realmente a vedete do grupo. Se havia jogo de futebol na quadra lá estava ela, na torcida ou na quadra mandando bem; se era um concurso de dança promovido por alguma empresa de bebida ou pela administração do condomínio, era ela que ganhava, enfim estava presente em tudo. Sua última invenção era transformar o antigo fã clube da dupla Tatu em um grupo de teatro, composto só por mulheres, é claro. As reuniões do grupo eram feitas na mesma sala em que se realizavam as outras, contígua à administração do condomínio. O primeiro trabalho delas foi apresentado em espaço aberto, no meio da quadra, num palco improvisado. Era uma peça da obra de Álvaro de Azevedo, Macário, que trata do encontro da personagem homônima com o diabo. Adivinha quem era o Tinhoso: Vivi. Larissa fora escolhida para ser Macário. Vestidos a caráter as meninas deram um espetáculo, que foi aplaudido por todos os presentes. Ao final foram comemorar na casa da líder do grupo, cuja mãe não se encontrava. Vivi aproveitando-se da alegria do grupo dirigiu-se à Larissa para cumprimentá-la:
─ Nossa, você estava divina. – e, fingindo estar meio sem jeito, abraçou-a de leve. Larissa foi invadida pelo cheiro da outra e ficou meio desorientada, subitamente teve vontade de enlaçá-la, beijá-la, mas se afastou com repulsa de si mesma, por sentir-se fragilizada dessa forma.
Quando chegou a casa, Larissa estranhou que a mãe já tivesse ido dormir. O pai roncava já de boca aberta tresandando a álcool. Durante um bom tempo ela se questionou sobre as últimas sensações que tivera, principalmente quando foi abraçada por Vivi. E pensou como é complicado a gente adolescer. Com efeito, ela estava por fazer quatorze anos e precisava decidir-se pela melhor conduta genérica a seguir, não para dar uma satisfação aos outros, mas por si mesma, para sua satisfação pessoal. Estava na fronteira que leva uma pessoa do sexo feminino ou masculino a fazer sua opção sexual definitiva. Era incrível como ela percebia isso, enquanto outros penam numa crise de identidade desgastante. Sentia-se senhora do seu próprio destino. De um lado estavam os homens, representados pelo pai e pelo ex-namorado, sabia que eles não representavam todos os homens do mundo, mas eram bons estereótipos da raça, sabia por experiências de outrem que não poderia esperar muito deles. Do outro lado estavam as mulheres, representadas pela mãe e por Vivi, além das colegas de quem gostava pelo que tinham de iguais. Sentia pena das mulheres apesar de achá-las forte, uma rocha e essa fortaleza ela sentia dentro de si. Principalmente agora que estava à beira de uma decisão que nortearia toda sua existência. E lembrou os versos do tio Jonas:
Pronta a amar, augusto, a quem aprouver,
Ó impudente luz de dourada beleza.
Ela estava decidida a seguir a risca os versos do tio, amaria a quem quisesse sem pudor, de forma sagrada e só então resolveria sua conduta definitiva.
No dia seguinte antes de sair para a aula, procurou a mãe que estava na pia da cozinha de costas.
─ Tchau, mãe já vou indo.
─ Tchau, minha filha, boa prova.
Larissa achou estranho que a mãe não virasse o rosto para lhe mandar um beijo como sempre fazia, e indagou.
─ Mãe, o que houve? E se dirigiu à dona Fernanda, que tentou esconder o rosto.
─ Deixe-me ver seu rosto, mãe! – Instou, puxando a mãe pelo braço – Meu Deus! O que foi que houve ontem à noite!? – Indagou inquisidora ao ver o rosto de Dona Fernanda, quase que totalmente vermelho e intumescido? – Isso não pode tá acontecendo, meu Deus, ele bate em você e cê ainda tenta encobrir, puta que pariu, isso é demais – nesse momento a menina estava descomposta, as lágrimas desciam-lhe pelo rosto enquanto ela andava de um lado o outro dando palmadas na parede, instintivamente imitando os gestos do pai. A mãe abraçou-se a ela e as duas resvalaram para o chão e ficaram lá um bom tempo, enquanto as lágrimas se misturavam, e só tempo depois os soluços cessaram.
─ Isso não vai mais acontecer, minha filha.
─ Como não vai mais acontecer, se agora é que começou! Antes ele fazia o que fazia, mas não ousava tocar na gente, mas agora que ele começou, isso não vai ter fim. – argumentava a menina alterando novamente o tom da voz.
─ Não vai, minha filha, eu prometo.
Foi com algum esforço que a menina conseguiu se recuperar e adquirir forças para ir à escola, afinal estava na semana de provas finais do segundo bimestre e ela não queria fazer segunda chamada. No ônibus, com a cabeça voltada para fora da janela, com os cabelos esvoaçantes pela ação do vento, ia pensativa. Tinha que encontrar junto com a mãe uma saída para aquela situação. Foi com essas reflexões que ela chegou à escola. Por enquanto tinha que se preocupar com as provas de História e Matemática, agendadas para aquele dia.
Nos dias que se seguiram, Larissa não saía mais de casa depois que retornava da escola. As amigas ligavam para ela chamando-a para os ensaios da próxima peça, mas ela pediu que colocassem outra no seu lugar, “porque eu tô estudando para as prova”. Na verdade ela não queria sair de perto da mãe. Na noite que se seguiu ao da surra, o pai chegou a casa sóbrio, não trocou palavra com ninguém e assim foi dormir. No dia seguinte o mesmo se deu, mas, antes de deitar em sua fétida rede, ele deu boa noite. Larissa sempre que estava a sós com a mãe tentava falar sobre uma solução para o problema familiar, a mãe, entretanto, fugia do assunto e assim terminou a semana. Larissa estava de férias. A mãe após terminar o jantar dirigiu-se à filha:
─ Lissa, cê num vai sair um pouquinho não, filha, suas provas já terminaram e eu acho que vê podia sair um pouquinho.
─ Só se for com você. Que tal? Vamos comer uma pizza.
─ Não, minha filha, acabei de fazer o jantar e daqui a pouco seu pai chega.
Larissa balançou a cabeça com raiva e foi para o quarto. Lá ela pegou seu diário e tentou colocar as últimas impressões que a vida lhe impusera. Nesse momento percebeu a chegada do pai, mesmo que ele o fizesse em silêncio, pois era por demais covarde, por isso temia a união das duas, preferia lidar com a mulher sozinha. A cabeça de Larissa passou a girar a mil. Via os avós, a casa sempre cheia no mês de julho, os almoços regados a muita história, mas a figura do pai não aparecia. Lembrou-se da festa do ABC, era algo irrigado em sua memória, pois lá estavam todos os pais, menos o seu. Num instante descobriu que em nenhum momento de sua vida o pai estivera, talvez só na sua concepção. Foi assim que adormecera. No meio da noite, acordou com sede e foi à cozinha. Estranhou a luz do quarto da mãe acesa, ia bater na porta, mas hesitou ao ouvir barulho, era o rangido da cama e o ofego do pai, que aos poucos foi cessando até o estertor final. Percebeu, então, que ele levantava e se dirigia à porta. Ela correu para o seu quarto sem ser percebida. Entre as idéias que lhe inquietavam o espírito naquele momento estava o pensamento sobre se a mãe também tirara proveito daquela relação.
(continua)
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