terça-feira, 28 de outubro de 2014

CONTO DE RESIGNAÇÃO





Luz que me ilumina o caminho e que me ajuda a seguir
Sol que brilha à noite e a qualquer hora Me fazendo sorrir
Claridade, fonte de amor que me acalma e seduz
                                             Essa luz, Só pode ser Jesus!
(Roberto Carlos)

            Dona Maria José era uma dessas senhoras sofridas. Miúda e com os ombros meio curvados, que indicavam seus dias de dureza, casada com um homem da mesma estirpe, trabalhador sofrido, tinham cinco filhos, três homens e duas mulheres, que vieram como os degraus de uma escada, um atrás do outro. Durante aqueles primeiros vinte anos de vida conjugal, nunca reclamaram das agruras da vida. Dona Mazé, sempre sorrindo, nunca destilou seus momentos de penúria. Católica, era na igreja que, de joelhos, contava seus dias a Deus, como se este não soubesse. Agradecia pela sina, perceptiva que ali estava seu degrau de evolução. Certa vez uma vizinha menos discreta perguntou sobre seu sorriso franco e sua disposição para servir ao próximo. Sem desmanchar o riso dos lábios, inquiriu à outra o que deveria fazer, chorar, se lamuriar e para arrematar:
            – Quem chora, minha filha, baixa a cabeça, verga à terra e perde a coragem de enfrentar os dias que ainda vêm.
            Mas o que ela não sabia era que ainda viriam dias mais nublados, com chinfras de tempestade. Em 1989 seu Chico faleceu subitamente. Era hemofílico o homem. Numa dessas transfusões desastradas a encargo dos hemocentros contraiu micróbios que o mataram de repente. Consternação da família, consternação dos amigos e vizinhos. Dona Mazé com seu xale enxovalhado, seu terço na mão despediu-se do companheiro sem lágrima. Tinha preocupação com o futuro, ele urge, é eterna tormenta. Não para ela, que mesmo conhecendo os improvisos do tempo, sabia que a marcha é árdua e precisa ser retomada.
            A vida se ajeitou. Seu Chico era funcionário público, e a pensão mirrada ainda  dava para a família, agora aumentada pela chegada do neto, sem genro. A filha mais nova, com apenas 15 anos, se enrabichara por um homem casado, que a iludira com a promessa de deixar família. Ficou assim. O homem sumiu com família e tudo. Abandonada, a menina com o filho se ajeitaram no quarto de casal, enquanto Dona Mazé foi dormir no corredor. No outro quarto dormia a Vera, que se preparava para ingressar na faculdade e precisava de um pouco de privacidade. Na sala, os três rapazes, dos quais apenas o mais velho trabalhava de empacotador, dividiam um beliche e um lugar no sofá. Às cinco da manhã, aquela mulher com seu sorriso costumeiro era a primeira a sair da mercearia com as mãos ocupadas de pão e outros itens com que a família manteria o corpo de pé.
            No terceiro ano desta história, um fato novo veio sacudir os ossos magros da nossa amiga: o diagnóstico de hiv soropositivo. Os três filhos também hemofílicos estavam com o vírus da síndrome da imunodeficiência adquirida. Durante toda sua vida os rapazes fizeram transfusões. E mesmo pela ameaça da AIDS, arrombando as portas dos lares brasileiros, entrando por todos os lados, os hemocentros ainda transfundiam sangue sem a devida cautela. Henfil já morrera, e seu irmão Betinho já sabia ser soropositivo, mas os cuidados só viriam na década de 90. O diagnóstico dos rapazes viera no mesmo mês em que a namorada de Júnior, o mais velho, recebera a notícia da gravidez. O rapaz enlouquecera. Logo agora que acabava de receber a promoção no supermercado onde trabalhava. As noites naquela casa eram de sofrimento, de dor. Inconformado, o futuro pai só dormia quando sua mãe lhe dava um calmante. A doença cruel e o desespero o debilitaram rapidamente. Nós, da vizinhança, só soubemos do desastre pouco antes de sua morte, poucos dias antes do nascimento da filha. Dona Mazé mais uma vez segurou com altivez aquela barra pesada que Deus lhe dera, não dava para lamentar, a vida seguia, com dois filhos para tratar. Para sorte, a netinha deu negativo.
            Mas os infortúnios se seguiram. Felipe, teve agravado seu estado de saúde, após um diagnóstico de leptospirose. Não sofreu, pelo menos não demonstrou. Tinha o sangue paciente e conformado da mãe. No dia que foi para hospital pela derradeira vez, sabendo que não voltaria, despediu-se dos mais próximos, com um sorriso magro e  olhos fitos no futuro. Dizem que quando chegou ao hospital não padeceu. Consolou os desolados e desencarnou ciente do dever cumprido. O choro mais uma vez não teve abrigo nos olhos de Dona Mazé. Resignada, buscou a ajuda do poder municipal. Era preciso ajeitar a casa, pois o terceiro neto já vinha a caminho. Era a mensagem de que a vida continua e ali estava ela, disposta a não se dar cabo, a não se entregar.
            E foi com os olhos, agora presos em grossas lentes, com seu sorriso magro e ombros mais curvados que deu a notícia de que a filha mais velha, a Vera, deixara a família para morar com uma dona que trabalhava de cantineira na escola municipal próxima. Eram, agora, apenas ela, o filho com hiv e dois netos, que a outra filha deixara, antes de sumir com um caminhoneiro. A nora fora embora com a netinha. Os dias que se seguiram foram de poucas mais importantes alegrias. Alexandre o único filho que lhe restara se dera bem com os novos tratamentos e sorria por Deus lhe dar mais alguns anos sobre a Terra. A casinha humilde continuou assim. Mas quem passasse por lá e desse uma ligeira olhada para seu interior, veria uma alegre luz que vinha de algum ponto que não se sabia ao certo de onde. Possivelmente essa luz nascia no seio daquela pobre mulher, para se irradiar em forma de alegria e resignação.
(Francisco Alves de Andrade, outubro de 2014)

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

BREVE HOMENAGEM A SEU LUÍS ALVES, NO DIA DOS PAIS




“era ele que erguia casas
onde antes só havia chão
como um pássaro sem asas
ele subia com as casas
que lhe brotavam na mão.”

Neste domingo de agosto
Com maus versos mais de gosto
Quero aqui homenagear
Pra que todos nós possamos
O dia dos Pais comemorar.

Peço que Deus me ajude
Me dê siso e atitude
Pra esses versos desenhar
Pra ser correto e leal
E na métrica não errar.

Quero abraçar os presentes,
Sem esquecer os ausentes
Que aqui todos estão
Netos, sobrinhos e esposas,
Genros, noras, irmãos.

Não deixando de lembrar
A que entre nós não mais está
Nossa mãe do coração
A qual habita agora o céu,
Já ganhou seu galardão.

Quero falar de seu Luís
Árvore de grossa raiz
Nosso querido e velho pai
A ele quero dedicar
O poema que aqui vai.

São fagulhas da vida,
Pois falar toda existência,
Abordar toda sua lida,
É impossível e estou certo
Ninguém fará essa exigência.

*****

‘Inda guardo lembrança,
‘Pesar do tempo que vai,
Veloz cavaleiro andante,
Sem pudor nem bonança,
E eu sendo mero esperante.



Fins de tarde do dia a dia,
Nós sentados na calçada
Esperando prenhes de alegria,
Ansiosos pela passada,
Que logo ao longe se via.

Não havia cena mais bela,
Em filmes do mundo inteiro,
Do que esta simples, singela:
O pai pra casa caminheiro,
Digna das melhores telas.

Quando ele chegava então,
Não tinha arroubos de carinho,
Costumava agir assim não,
Não era esse o seu jeitinho,
Também não havia carão.

Passava, pois, em nossa testa
Sua mão pesada e forte,
Seus olhos eram só bondade
Ao dizer: “Deus te dê sorte,
Fortuna e felicidade!”

Era grande a felicidade,
Uma alegria indescritível,
Vida era então exalada,
Pairava algo indizível,
Logo após sua chegada.

Mamãe punha de castigo,
Se havia travessura,
Aí só a presença do amigo,
Pra nos livrar da clausura,
Pra nos guardar do perigo.

*****

O tempo passa e passará,
Já vão longe esses dias!
O futuro veio e virá,
Temos novas alegrias,
Assim foi e sempre será.






Hoje alegria de verdade,
É vê-lo assim com saúde,
Mesmo de avançada idade,
É homem de severa atitude,
Se houver, pois, necessidade.

Isso só me faz lembrar
Das coisas que nos contava,
Quando um cigarro a fumar,
Contos e ditos narrava,
Ou em versos a recitar.

Eram histórias daqui e d’além,
De suas aventuras vividas
E contos de trancoso também,
As atenções absorvidas,
Fora não havia ninguém.

Nasceu com o dom da poesia,
E nisso fui seu herdeiro,
Mas o orgulho do dia a dia,
Eram as casas que fazia
Na profissão de pedreiro.

De caráter não vi igual,
Age até hoje com justiça,
Cuida de gente e de animal,
Não tem dos outros cobiça,
Cada qual com seu cada qual.

Não se dominou por vício,
Sabe no consciente mandar,
Mas já viveu com desperdício
Querendo, soube parar,
Razão é seu artifício.

Quando jovem curtiu a Lua,
Gostava de farra e mulher,
Deixava-se estar na rua,
Pode pensar quem quiser,
Mas santo nunca foi a sua,

Ao voltar pra sua morada
Encontrava a companheira,
É claro, bem chateada,
Por privações sofridas,
Pelo tempo de bebedeira.


Mas o tempo foi passando
E as futilidades também
O comportamento mudando
Restaram só lembranças
De amigos, momentos de alguém.

****

Peço, a Deus nosso Senhor,
No futuro o galardão
Pra quem vive com louvor
E rogo uma salva de palmas
Pra Seu Luis, nosso paizão.

(Francisco Alves de Andrade)

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

BOM DIA, COMO VAI... SIMPLES ASSIM





           
Todo ser humano precisa de carinho, de atenção. Se Cristo dizia para que amássemos uns aos outros, era porque sabia dessa necessidade humana. Sempre que conhecemos alguém, e se temos um pouco de sensibilidade, notamos sua fragilidade, sua ansiedade por ser amado. Esse amor a que Cristo aludia é um sentimento simples, como a atenção dispensada a alguém, uma palavra de conforto, um aperto de mão, um “tudo bem!”, um elogio, uma validação.
            Há alguns dias, enquanto acompanhava meu filho ao treino da escolinha de futebol, fiquei observando um cidadão conversando com outro, um amigo particular, a respeito de seu cãozinho, na verdade uma cadela,  que desaparecera. Ele falava da tristeza do filho e da filha, e em seu semblante eu percebi que lhe fazia bem ser ouvido, pois além de servir de lenitivo para a sua angústia de não poder resolver esse problema  familiar,  dava-lhe o amparo de que precisava para seguir sua rotina habitual e forças para continuar essa busca.
            Acompanhei sempre esses diálogos à distância. Até que um dia o amigo não veio. Percebi que o homem procurava por ele, imaginando que estava demorando, mas que logo chegaria. De súbito, percebi que o amigo daquele homem não viria e que nele ficaria o vácuo daquela ausência. Resolvi substituí-lo. Aproximei-me do homem e abordei-o sobre se havia encontrado o animal de estimação da família. Informei-lhe que havia escutado seu diálogo há alguns dias a respeito do sumiço do animal. Perguntei-lhe sobre os filhos... O semblante do homem desconhecido se iluminou, seus olhos brilhavam de tal forma que me senti feliz. Ele estava enormemente agradecido pelo fato de eu me importar com seu sofrimento. Em poucas palavras, me pôs a par do que estava acontecendo, e no final, antes de ir embora, me agradeceu com um efusivo aperto de mão.
            Assim todos os dias que nos encontrávamos, ele me chamavas para perto de si e do amigo, que voltou aos encontros rotineiros, e  nos punha a par de como estavam as buscas. Até que um dia a angústia acabou. Ele chegou, cumprimentou o amigo, chamou-me para perto de si, abraçou primeiro o amigo, depois a mim e, enxugando uma lágrima teimosa, contou que havia encontrado a cadelinha e que a família estava novamente completa.
            Depois desse dia, o homem sempre me tratou como amigo, me cumprimenta, pergunta como está minha família, conta sobre suas coisas. Se me encontra no supermercado, vai até mim, mantém um rápido diálogo e me convida para ir a sua casa para um churrasco. Infelizmente adio esse momento por motivos vários, mas um dia o farei, pois creio em que ele faz esse convite, não apenas por cortesia, mas porque me considera de fato seu amigo.   
(Professor Alves, há alguns anos.)