segunda-feira, 13 de abril de 2009

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO XVI
“A encarnação é necessária ao duplo progresso moral e intelectual do espírito(...). a vida social é a pedra de toque das boas ou más qualidades.”
(Alan Kardec)

As aulas na faculdade se iniciaram no começo de fevereiro, portanto nesse mês não tive tempo para nada. Era mais ou menos pelo dia vinte quando Ernani me telefonou para dizer que o tal psiquiatra americano já estava em Fortaleza e que marcara o início das sessões de regressão para o sábado. Nos dois dias que antecederam a essa data eu me desdobrei para não deixar nenhuma atividade acadêmica para esse final de semana. Dessa forma sábado chegou, e nos reunimos na casa de Ernani para a já famigerada sessão. O médico explicou os procedimentos a serem executados e os problemas que poderiam ocorrer. Disse que mesmo nunca tendo presenciado ou tido notícias de efeitos negativos nos pacientes, era possível que eles ocorressem. Por isso o marido de Aliel teve de assinar um termo de compromisso, que foi guardado metodicamente pelo homem que se chamava Bob, apelido de Robert. Ele ainda perguntou a Aliel sobre seus traumas, suas fobias. Ela fez referência ao medo de tomar comprimido, “pois eles sempre ficam atravessados na garganta.” E colocou as duas mãos no pescoço e pôs a língua pra fora, fingindo estar sendo enforcada. Todos riram de sua atitude. Disse por fim um pouco séria sobre o principal motivo de estarmos ali, que era sua obsessão em achar que muitas pessoas as quais nunca vira parecerem-lhe familiares.
Depois dessa conversa que se deu de forma bem descontraída, o homem ligou o gravador e, em seguida, levou Aliel ao estado de hipnose. Aos poucos ela foi relatando o que via. Como se assistisse a um filme de trás pra frente. Chegou a idade de cinco anos e nos relatou alguns maus tratos infligidos pela mãe, que numa tentativa de mostrar às pessoas que a filha era normal, dava-lhe beliscões por baixo das mesas ou bicava suas pernas com a ponta da sandália. Nesses momentos Aliel parecia estar consciente e não hipnotizada, demonstrou bastante tristeza ao se referir aos fatos. Depois ela encolheu-se toda e ficou em posição fetal e pôs o dedo médio na boca. Aos poucos foi-se estirando novamente e em seus lábios apareceu um breve sorriso, que desapareceu dando lugar a uma expressão séria. E começou a falar:
“Eu ando por uma rua estreita, iluminada à luz de lampiões. Eu sou um homem, estou vestindo um terno azul, trago um chapéu na cabeça e tenho uma enorme barba. Entro por uma porta estreita e vejo meus camaradas, que me esperam. Estão todos taciturnos, preocupados. Todos me chamam de “o Escolhido” e também atendem por pseudônimos análogos. Há o Redentor, o Pensador e outros. O lugar onde me encontro é um espécie de bar e alguns gritam alto em espanhol “ ¿En este bar no hay nadie para servirnos?” E riem sem muita explicação. Do interior aparece uma mulher atarracada com algumas garrafas de vinho que distribui pelas mesas. Ao passar por nós ela diz algo como “Éste es vino de la medianoche”. É um código secreto. Agora eu me lembro, somos todos seguidores de Simon Bolívar e temos um plano de nos unirmos ao seu exército em Caracas. Entretanto há um mal estar, entre o grupo. Temos que esperar a meia-noite. Temos que aguardar com naturalidade para não despertar suspeitas nos outros freqüentadores do ambiente. Um dos camaradas retira do paletó um jogo de cartas e jogamos, outros bebem, mas pouco, mesmo assim a tensão não passa. Agora a porta se abre com violência e homens fardados e armados com carabinas entram no salão. Todos vamos presos. Fomos traídos pela taberneira que vai mostrando ao chefe dos fardados quem faz parte do grupo e quem não faz. Ficamos então sabendo que Simon já está refugiado em um país vizinho. Os soldados se aproximam de nós e com suas adagas cortam-nos a garganta. É grande o transtorno dos outros colegas vendo nossos corpos estrebucharem pelo chão coberto de sangue...”
Nesse instante Aliel tornou-se ofegante, com grande dificuldade de respirar. Ela por algumas vezes levou a mão em direção ao pescoço, mas seu ofego foi diminuindo, seu rosto se iluminando. Ela nos contou que fora levada por uma luz e que permaneceu nela um tempo que julgava infinito. Depois começou a espernear como fazem os bebês e nos narrou mais uma de suas vidas. Nesta ela era uma religiosa em missão de caridade numa comunidade pobre no sul da áfrica. Lá sua grande inimiga era a fome que consigo trazia toda sorte de moléstias físicas e morais, narrou-nos seu sofrimento ao ver o semblante da miséria estampada nos olhos e corpos daquelas criaturas desgraçadas. Contou-nos também de sua morte aos oitenta anos rodeada pelas pessoas que tanto ajudara, uma morte, como ela mesma descreveu, feliz.
Nos dias que se seguiram, as sessões se repetiram. Esse trabalho durou exatamente dez meses e aliel regrediu a mais de cinqüenta encarnações. Umas sem grande importância, outras contribuíram de forma decisiva para que ela e nós entendêssemos todos os males que a afligiam, todas suas angústias e temores foram desvendados nessas regressões. Entretanto para mim a mais significativa foi quando ela regrediu há aproximadamente mil anos e se viu como Ranjicniami. Nesse período eu estudava fora de horário e até de madrugada para não perder essas sessões, que depois eram cuidadosamente analisadas por nós e pelo psiquiatra, e das fitas eram tiradas, com o consentimento do casal, cópias, para, segundo ele, quando tivesse coragem, publicar um livro com essas experiências e assim enfrentar a comunidade cientifica.
Foi possivelmente, não lembro bem, na décima quinta sessão que Aliel lembrou pela primeira sua vida como Ranjicniami. Falou do nascimento, da infância, das ameaças do pai, das angústias, do medo que todos na ilha tinham das ondas gigantes. Na segunda vez ela relatou o nosso encontro e novamente lembrou seu nascimento e as ameaças do pai. Foi com grande aflição que, em uma outra sessão, relatou nossa morte causada pelas ondas gigantes que nos arremessaram contra as pedras. Às vezes ela passava inúmeras sessões sem lembrar dessa encarnação, seu ser se voltava para momentos sem grande importância como brincadeiras de infância ou simples discussões familiares. Depois ela voltava a lembrar-se de quando era Miciane e eu Daniel. E já nas últimas reuniões ela só regredia a duas vidas: como Ranjicniami e como Miciane. Essas duas existências de aliel eram os elos que nos ligavam, formavam aquilo que antes era o mistério de nossas vidas. Nós nos amávamos de duas formas diferentes, mas que se completavam. Eu a amava e a protegia enquanto ela era Miciane, e a amava, queria-lhe como um louco enquanto Ranjicniami. Entretanto não pude concluir aquilo que poderíamos chamar de nossa missão. Há mil anos fomos arrebatados pelas águas do oceano e tivemos nosso destino interrompido. Como seu irmão, coincidentemente com o mesmo nome que tenho agora, Daniel, não pude protegê-la das maldades perpetradas pela nossa tia, pois morri precocemente em um acidente de trem. Agora era diferente. Nesta vida tínhamos toda a oportunidade de nos realizarmos, de concluirmos aquilo que talvez seja o motivo de nossa estada aqui na terra: amarmos um ao outro em toda sua plenitude. Somos almas gêmeas que precisamos nos completar, somos as metades da laranja separadas pelo fio da faca do destino e que precisamos nos unir para que nossas almas tenham finalmente paz.
No mês de novembro, encerraram-se as reuniões. O americano deu seu trabalho por concluído. As vidas de Aliel haviam sido dissecadas, se havia uma ou outra que não vieram à tona eram sem grande importância. O próprio médico fez referência ao fato de o mistério de nossas existências estar na análise dessas duas vidas. Ernani sabia disso, mas sabia também que seu destino não o havia colocado diante de aliel por acaso, inclusive ele aparecia mais em suas outras vidas do que eu, era sempre seu pai, amigo, avô, confidente. Ele sabia da importância de seu papel na consecução do destino da esposa. Ele a amava e não abriria mão de seu amor. Ela compreendia agora todo o carinho que nutria pelo marido, com quem se dava muito bem. E isso é amor. Além do mais, conhecia seus compromissos como pessoa socialmente comprometida, não podia abdicar de seu matrimônio. Além de tudo isso, havia entre todos nós o Destino como mediador, diante do que foi visto durante todo esse tempo, nós sabíamos que infringir as suas leis era quebrar uma corrente que fora elada há milhões de anos e que, portanto, não havia nada que pudesse ser feito. Tudo devia continuar como estava: Aliel casada e amando seu marido; eu amando-a e respeitando sua condição; Ernani amando a mulher e sendo amada por ela, sendo meu amigo e crendo na minha fidelidade. Só uma coisa mudara, aliás duas: a cura definitiva de todos os males que acometiam Aliel e a nossa compreensão de tudo o que nos cercava. E só uma coisa não sabíamos: em que teias o futuro, que enreda destinos silenciosamente, nos iria jogar.







CAPÍTULO XVII
“Nasce o sol e não dura mais que um dia,
Depois da luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.”
( Gregório de Matos)


E assim o tempo passou. A faculdade absorveu todos os meus dias e parte de minhas noites. O tempo que me sobrava, quase nenhum, era dedicado a uma visita e outra a Aliel e seu marido. Ela passara, depois das sessões, por uma mudança impressionante. Tornara-se mais adulta, mais cônscia de sua existência material e mais ligada à sua realidade espiritual. Cursava Turismo na Escola Técnica e em seus momentos livres, dedicava-se a atividades beneficentes, como voluntária em uma creche na periferia e a fazer visitas periódicas a hospitais e presídios. Uma vez por mês passou a participar das reuniões no Centro Espírita Paulo e Estevão, no qual se tornou referência entre os colegas. Uma vez por outra eu ia junto. As reuniões e a consciência definitiva da existência desse mundo paralelo me confortavam e me alegravam. Entretanto o que eu esperava que acontecesse comigo não aconteceu. Eu esperava que a partir dali eu me transformasse num médium, psicógrafo ou coisa parecida, mas nada disso se deu, eu era apenas mais um freqüentante do Centro. Certa vez o regente da sessão percebeu meu desapontamento, chamou-me ao jardim e me disse:
─ O mundo dos espíritos ainda nos é muito inacessível, meu caro Daniel. É preciso muita paciência para compreendê-lo. O próprio Chico Xavier disse em determinado momento que não tinha conhecimento total de sua missão, que era apenas um instrumento nas mãos divinas. Por isso algumas vezes se pegava chorando, não de tristeza, mas por falta de compreensão, carência desse entendimento pleno. Possivelmente, apesar de tudo por que passou e vivenciou, as visões de encarnações passadas, a consciência que você tem de tudo isso, não esteja pronto ainda para assumir uma missão abstrata, espiritual. Sua missão ainda é entre os mortais, entre os vivos e não entre os espíritos.
Ele tinha razão! O meu trabalho agora era entre os vivos ou pelo menos entre os quase vivos. Devido às boas notas eu fora convidado a fazer um estágio no Hospital São José, estando ainda a três anos do final do curso, nossa como o tempo voa! Coincidentemente o mesmo hospital no qual me curei do mal-do-século XIX. Lá estava agora eu como médico residente. Lá, deparei-me novamente com a humanidade em frangalhos. Homens e mulheres mutilados pelas enfermidades mais cruéis que existem, a AIDS, Tuberculose, Meningite, entre outras. O pior é que a maioria das pessoas que lá chegavam além da moléstia que os derrotavam paulatinamente havia ainda a derrocada moral. Eles chegavam, em grande parte, com o moral tão em baixa que muitas vezes a morte antecipava sua chegada. A AIDS e a Tuberculose eram as piores na medida em que os pacientes na maioria das vezes eram os principais culpados pela sua estada ali e não há nada mais punitivo do que a culpa. Os gays e prostitutas compunham a maioria dos doentes de AIDS e outras DSTs. Quando a gente se aproximava deles sentia em seus semblantes quase um pedido de desculpas: “desculpa, eu não sabia o que estava fazendo, não me preveni como devia, foi a queda moral que me levou ao álcool, às drogas e ao completo descuido”. Entretanto quando a gente tentava um diálogo para confortá-los, o que ouvíamos eram palavras de insulto. No fundo se eles não davam fim a própria existência era por falta de coragem e não de vontade. Daí o nosso trabalho vinha em dobro, pois além de lutarmos pela cura daqueles indivíduos, tínhamos que resgatar a auto-estima deles, tirá-los do fundo do poço no qual haviam caído e sozinhos não tinham como sair. Nesse momento eu me lembrava de Wellington e de suas palavras sobre culpa. E as compreendia à medida que via certa resignação naqueles que não tinham culpa pela sua condição, o que não ocorria com os outros. Compreendia minha missão entre os vivos. E dia e noite estava ao lado deles, trocando fraudas, aplicando soros, medindo temperatura e conversando, contando minhas experiências de vidas passadas. Levava livros para eles, quando não podiam ler, eu mesmo o fazia em voz alta para que todos pudessem compartilhar os enredos, que deveriam ter conhecido na infância, mas que não puderam porque em muitos casos esse período foi-lhes roubado ou adulterado em proveito de outrem. Aliel passou também a freqüentar uma vez por semana o hospital, e eu ficava feliz por vê-la, pois era bom tê-la junto a mim.
Certa vez o diretor do hospital me chamou a sala dele e por muito tempo me falou da energia que os jovens têm da disposição que lhe é peculiar, e do idealismo que rege suas ações. Depois falou que com o tempo esse dinamismo se vai e trabalha-se com menos fervor. Tudo isso para me falar a respeito do risco que eu estaria correndo me envolvendo tanto com os pacientes. Eu me lembrei de um professor da faculdade que já deveria estar aposentado, entretanto o trabalhava com o mesmo interesse de quando iniciara no magistério, e refleti que é sempre assim: aqueles que não trabalham com amor, não importa em que área, sempre justificam a falta de compromisso, a ausência de denodo para enfrentar os desafios da profissão utilizando o argumentos da idade e da experiência. Pobres mortais não sabem que escolheram a área de atuação errada, seja médico, professor, padre e que estão ocupando o lugar de alguém que, com certeza, realizariam melhor a atividade.
Era sábado à noite e eu estava de plantão quando fui chamado para realizar os procedimentos iniciais de uma paciente recém chegada Como era praxe minha, não observei o nome que estava no formulário. Preferia perguntar ao enfermo para poder iniciar um diálogo enquanto fazia os procedimentos iniciais. Ao chegar à porta vislumbrei exânime sobre o leito, com a respiração por um fio, o corpo de Ângela. Sim, aquela que fora responsável pela minha estada ali, que quase me levara à cidade proibida, estava agora no meu lugar. Foi então que olhei o formulário e constatei o diagnóstico: Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; situação da moléstia: estado avançado. Mais do que depressa, realizamos todos os procedimentos necessários e quando o titular me pediu que cuidasse de outros pacientes, que Ângela ficaria sob seus cuidados, quase me desesperei. Felizmente ele compreendeu, bom homem, sem que eu falasse, que aquele caso era particular e me deixou cuidar dela. À noite toda não preguei olho e nem o tirei dela, depois de administrado o medicamento que fazia milagre entre os aidéticos. Consultava a todo instante sua temperatura, enxugava-lhe o suor do rosto e ouvi pela madrugada seus delírios. Eram sons monocórdios, misturados a risos e intercalados por ofegos. Já era dia quando fui convencido pela enfermeira a me retirar para casa. Ângela estava fora de perigo, pelo menos por enquanto.
À tarde, depois de assentadas cinco horas de sono, banho, barba feita e boa alimentação, retornei ao palco de desespero para me defrontar com Ângela. Quando cheguei ao quarto, fiquei sabendo que a minha paciente já estava conversando e sentando. Já havia almoçado normalmente junto com os outros. Fui então ter com ela. Encontrei-a sentada de costas para a porta, aproximei-me dela e falei:
─ Oi, está se sentindo melhor?
Ela quase saltou da cama ao reconhecer minha voz, mas logo recuperou o ar habitual e, como se nada de anormal estivesse acontecendo, falou:
─ Oi, que bom te ver!
Eu já esperava por aquela frase, ri por dentro e continuei:
─ Que bom que você está aqui – mas percebi a gafe e consertei – que bom que posso cuidar de você, apesar de preferir não fazê-lo.
Ela também riu por dentro, ao perceber que quanto mais eu tentasse corrigir, mais eu me complicaria. Deu-me a mão que eu solenemente beijei. Alguns pacientes me olharam, eles não entendiam como eu tinha coragem de colocar meus lábios naquela pele enfeitada pelos sarcomas de kaposi, pois eles tinham aprendido com a própria experiência e indiferença com que são tratados, que aidéticos são a escória, ainda existe o preconceito de que a AIDS é doença de veado, de prostituta, de macaco. Ângela, então, pediu para que eu sentasse ao seu lado para me contar sua história, a qual eu já sabia ser mentira. “Ela jamais me contará a verdade, quem sabe um dia aprenda a ser franca e resolva falar sobre o que acontece e não o que ela quer ou acha que acontece.” – pensei. Entretanto ao mover os lábios para me fazer seu relato, baixou a cabeça e me falou de seus desatinos, suas incoerências. Contou-me de sua alma inquieta e de seu vazio interior, o qual quanto mais tentava preencher, mais oco lhe parecia. Falou-me do que houve em seu passado recente, de suas orgias desenfreadas, da troca de parceiros como se fosse uma muda de roupa. Quando alguém falava para que ela se prevenisse de doenças como a AIDS ela ria, “pois não cria que isso pudesse acontecer comigo”. Em determinado momento de sua narração, ergueu os olhos para mim, e eles estavam cheios de lágrimas. Falou-me a verdade sobre o nosso relacionamento e me pediu desculpas por me ter feito passar por tudo pelo qual eu passei. Em seguida, abraçou-se a mim e soluçou. Eu lhe prometi que ela não iria morrer, que eu faria tudo para que logo ela estivesse boa.
Nos dias que se seguiram, chegou um grande lote de um novo medicamento que substituiria o AZT e assim alegrar aqueles que conviviam com a síndrome, se antes com o AZT eles tinham pouca sobrevida, agora eles poderiam comemorar o retorno a uma vida normal. Era o coquetel anti-retrovirais que reduz até 99 por centos dos vírus no organismo e deixa a doença sob controle, apesar de não eliminá-la, pois o 1 por cento que fica, se não observado e domesticado, pode destruir o paciente. Durante o período em que Ângela esteve no hospital, eu ia visitá-la com freqüência e ia percebendo a mudança física, os sarcomas já haviam desaparecido e o peso recuperado. Mas me impressionava mais sua mudança psicológica. Ela cuidava dos pacientes, confortava-os, coisa que ela não faria em outros tempos, dado o seu egoísmo. É incrível o poder de uma adversidade! Quanto orgulho já foi ralo abaixo após um grande sufoco imposto pela vida. Nesse momento eu abandono o hospital e as mudanças ocorridas em Ângela, para narrar um outro caso de transformação.
Era uma sexta-feira e Ernani havia me pedido para acompanhar Aliel à inauguração de uma instituição beneficente, que ocorreria no Centro Espírita Paula e Estevão. Eu fora, é claro, com todo prazer. Tratava-se de uma organização irlandesa que estava fundando sua sede aqui no Ceará. Seu objetivo era trabalhar junto às escolas públicas de periferia, para fomentar a consciência política e criar pessoas politicamente alfabetizadas para inibir a compra de votos e ações análogas, por parte de políticos inescrupulosos. Ao sair por volta de dez da noite, um fato me chamou a atenção: um carro estava parado numa esquina e um homem servia sopa em diversos pratos descartáveis a uma porção de gente faminta. Eram jovens, crianças, velhos e envelhecidos. O fato em si não me era totalmente estranho, pois existem muitos registros de pessoas que praticam essa atividade de compaixão ao próximo necessitado. O que me despertou o interesse pela cena era seu protagonista: Pedro César. Era exatamente ele, o homem que, rico, menoscabara os amigos e até familiares; pobre, fora desprezado por todos e se arrependera. Peguei Aliel pelo braço e me aproximei do grupo. O homem, reconhecendo-me, falou em tom jocoso:
─ Vai dois pratos de sopa aí, meu?
─ Por que não? Se é dado com amor!
Ele riu e me estendeu, sob os olhares ciumentos dos famintos, dois pratos, um para mim outro para Aliel, que lutava por entender o que estava acontecendo. Depois de todos os “clientes” com os pratos nas mãos se afastarem para saborear a refeição, a qual para muitos era a única do dia, ele me apertou a mão e disse:
─ Pois é parceiro, a vida me deu uma nova chance.
E em poucas palavras me contou sobre os últimos acontecimentos de sua vida. Falou-me do emprego que havia conseguido, sua rápida ascensão, as economias que fizera, as privações pelas quais passara e a aposta ao montar uma pequena lanchonete, que logo se transformara numa rede de restaurantes. Agora estava bem, não apenas porque recuperara seu padrão financeiro de antes, mas porque recupera o carinho e a amizade daqueles que desdenhara. Contou-me com ar compungido que não tivera, ao visitar a terra natal, pudor de ir ter com os eis amigos, apertar-lhes a mão e lhes pedir desculpas. Falou-me também, sem grande alarde, sobre o que estava fazendo ali e de como isso o alegrava. Contou-me ainda que casara e tivera um filho agora com um ano de idade, a quem ensinaria todas as lições que aprendera a custo. Eu fiquei muito feliz e saí satisfeito em saber que a humanidade tem jeito. Naquela noite dormi tranqüilo e imaginando um mundo melhor em que todos tenham direito a ser feliz, um mundo em que as pessoas, numa imensa corrente, não permitam que ninguém passe privações tão básicas quanto o direito à alimentação.

terça-feira, 31 de março de 2009

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS CAPÍTULOS XIV E XV

CAPÍTULO XIV

“A mulher sábia edifica a sua casa,
mas a insensata,
com as próprias mãos a derriba.”
(Provérbios: 14 – 1)

Depois desse dia ela me telefonava sempre e passamos a nos encontrar. Eu ansiava por beijá-la, abraçá-la, mas ela sempre se esgueirava e me mostrava a aliança em sua mão. Brincava, ria. Depois me tratava como quem trata um irmão para depois dizer que me amava. Eu jamais forcei nenhuma barra por saber que ela estava muito confusa. Era como se ela estivesse vivendo várias vidas ao mesmo tempo. A aliel que me amava era Ranjicniami, a minha irmã era Miciane, e deveria haver muitas outras que se misturavam numa só. E ela sofria por tudo isso. Eu sempre evitava falar na mãe por notar certa indiferença dela com relação aos pais. Possivelmente ela deva ter se tornado arredia depois de quase ter sido obrigada a casar. Entretanto o respeito e o carinho que nutria pelo marido eram algo muito próximo do amor. Às vezes ficava embevecido com seus encantos e perdia a noção do tempo. Quando dava por mim já era hora de voltar para a faculdade e para os órgãos embebidos no formol. Beijava-a na testa ou no rosto e saía correndo ansiando por vê-la novamente.
Um dia quem me ligou foi o marido, convidando-me para almoçar no domingo em sua casa. Ansiei barbaridade para que esse dia chegasse. No domingo, então lá estava eu, sentado à beira da piscina ao lado de Aliel e de seu marido, conversando sobre Medicina, pacientes e hospitais, e ele me dizia:
─ Meu rapaz, você terá uma vida um tanto corrida. Tenho muitos amigos e amigas médicas. E aqueles mais comprometidos passam semanas sem ver suas esposas, ou seus maridos, ou seus companheiros, não importa. Quando não estamos nos consultórios, estamos nos plantões, quando não estamos nem em um nem em outro, estamos em algum congresso. É complicado, é complicado. – Falava enquanto sorvia o uísque do copo.
Essas reuniões se repetiram algumas vezes, e quando não falávamos da profissão ou da faculdade, jogávamos e brincávamos algo inventado por Aliel. Numa tarde ele me chamou a um canto para me confidenciar:
─ Meu caro, Daniel, estou um pouco preocupado com sua amiga. Aos poucos vou percebendo que Aliel está ficando mais confusa sobre quem é. Eu falei com alguns colegas sobre o caso dela, mas parece-me que suas experiências são de outrem, ou seja, eles não fizeram nenhuma regressão em ninguém. Entretanto, meu jovem, eu entrei em contato com um colega norte-americano e ele me disse que estará visitando o Brasil em fevereiro, quer dizer, daqui a três meses. Ele falou que virá ao Ceará e, se eu quiser, ele fará um exercício de regressão em Aliel. Esperemos, pois, até lá. – arrematou com sua voz pausada
Sempre que estava ao seu lado, principalmente perto de aliel, eu ficava meio que intimidado, afinal ele era médico famoso, era mais velho, rico. Naquele dia, no entanto, eu lhe falei:
─ Oh, Dr. Ernani...
─ Que é isso, meu caro, chame a mim de Ernani, aliás, você é de casa e em breve será meu colega.
─ Obrigado. – agradeci – Ernani, enquanto isso nós poderíamos levar Aliel à casa onde ela morava quando encarnada em Miciane... – e lhe expus a experiência tida na antiga mansão.
Ele mostrou-se deveras interessado, e combinamos que dali a oito dias iríamos até ao casarão abandonado. Nesse momento fomos surpreendidos por Aliel que chegou por trás e com seu jeito brejeiro:
─ Quem cochicha o rabo espicha! Eu já tô ficando com ciúmes!
E assim a tarde declinou.








CAPÍTULO XV
“Mas, ai! cedo fugiste! Da soidade
Hoje te imploro, desse amor tão fundo,
Uma idéia, uma queixa, uma saudade.”
(Fagundes Varela)


O carro parou em frente ao casarão. Como não havia ali lugar para estacionar, demos a volta no quarteirão, até que numa rua transversal paramos. Enquanto Ernani fazia a manobra no carro eu, sentado no banco de trás observava a reação de Aliel. Era explícita sua admiração ao ver a mansão, onde morara em outra vida. Quando descemos do automóvel ela meio apreensiva indagou:
─ Ernani, aonde vamos de fato?
Em poucas palavras ele contou-lhe sobre o que eu lhe havia contado sobre a casa e de nossa decisão de irmos até lá e finalizou:
─ Não se preocupe, minha deusa, – era assim que ele a tratava – se você não se sentir bem e quiser sair é só falar.
Não foi difícil transpor o portão. Ernani havia providenciado um chaveiro competente, outrossim, um moleque havia feito um caminho para evitarmos os carrapichos, coisa de gente prevenida, que pensa em tudo. Já no interior da casa, procurei vestígios do homem que antes dormia ali. Não havia nada que identificasse presença humana. Com certeza César devia ter alugado a tal quitinete. Minha atenção então se voltou para Aliel, que até então não havia dado uma única palavra. Seus olhos percorriam a extensão das paredes descascadas, das janelas despedaçadas. Detinham-se em um ponto para em seguida virar-se para outro. Ernani e eu apenas a seguíamos. Ela então mudou de expressão e, firme, dirigiu-se a um dos aposentos como se lá esperasse encontrar alguém ou algo. Adentrou um dos quartos, parou, sentou-se, colocou a cabeça entre as pernas, fechou os olhos e entoou uma melodia. Dr. Ernani aproximou-se dela, pediu para eu ligar o gravador e com a intuição gerada pela experiência da profissão perguntou-lhe:
─ O que você vê, quem você é?
A voz de Aliel era sumidinha, igual a que eu ouvi durante meu transe quando estivera ali:
─ Eu tô brincando com meus primos, mas eu num gosto deles. Eles me assustam com histórias de monstros. Eu tenho cinco anos. É meu aniversário. Todos estão presentes menos Daniel, que é meu irmão. Ele foi viajar e eu estou muito triste pela falta dele. – De repente esboçou um meio sorriso e continuou – Eu estou brincando na praia, meu irmão está cuidando de mim, mas eu caio num buraco e quase me afogo, felizmente Daniel me socorre, me tira nos braços e faz respiração boca a boca. Ele além de meu irmão é meu amigo, meu anjo da guarda. Minha mãe está morta, deitada no meio da sala dentro de um caixão, eu estou chorando muito e Daniel me conforta. O cemitério é grande, há muitas árvores e para onde se olha se vêem túmulos, túmulos, túmulos. Nós não temos pai, ele morreu numa tentativa de assalto. Agora também não temos mãe. Chove muito e eu tenho medo, me escondo na cozinha, os trovões parece sacudirem a casa e os relâmpagos clareiam a casa de instante a instante. Daniel vem e me abraça e eu pergunto por mamãe, agora ele é quem chora. Nós perdemos a casa. Vieram os homens, tivemos que deixá-la. Nós vamos morar na casa da titia. Meus primos não me deixam em paz, arengam a toda hora. Agora eu sou uma menininha grande e lavo roupa na casa de minha tia, sinto muita angústia. Enquanto esfrego a roupa minhas lágrimas caem sobre a espuma do sabão, sinto saudades de Daniel. Ele não existe mais, foi colhido pelo trem. Eu lembro do alvoroço quando um dos meus primos chegou correndo e dando a notícia, corremos todos para lá, eu no caminho rezava para que fosse tudo um engano, não era Daniel, não podia ser meu irmãozinho, porque logo com ele, mas era, apesar do estrago feito pela locomotiva, eu pude reconhecê-lo. Eu estou na igreja. A meu lado o noivo. Mas eu não tô feliz. Alguma coisa me entristece muito, acho que não posso casar com ele, ele é mau, ele bate em mim. Não... Eu tenho uma idéia sinistra. Eu estou no banheiro de uma casa imensa. Agora eu lembro que minha tia, para se ver livre de mim resolveu me casar com esse homem. Ela é minha mãe... Eu tenho nas mãos um copo nele há veneno e eu o sorvo de uma vez só, minha cabeça começa a rodar e minha barriga dói muito, como se tivesse uma batedeira em meu interior... eu tô morrendo, a respiração está faltando... uma luz...
Olhei apreensivo para Ernani, aliel estava morrendo. Ele a sacolejou enquanto chamava:
─ Aliel, acorde, por favor, minha deusa.
Ela despertou do transe e, após recuperar a respiração, fitou nós dois, como se não soubesse o que houve, nem o que viu, na verdade não o sabia. Quando chegamos a casa do casal, voltamos a fita e os três ouvimos a gravação. Enquanto a fita girava aliel se abraçava a mim. Ao final ela estava com um semblante sereno, calmo, como quem finalmente acorda de um terrível pesadelo. Ela então falou com uma voz chorosa:
─ Então nós fomos irmãos em outra vida, né seu Daniel!
Eu sorri, não sabia o que pensar. Por que eu nunca me lembrei do episódio do trem? Agora estava explicado o pavor que eu tenho dessas máquinas, elas me enregelam a espinha. E eu ouvi a voz de Aliel ainda agarrada a mim:
─ E quando foi isso? – Ao que Dr. Ernani respondeu:
─ Aquela casa foi construída no começo do século XIX. Depois foi adquirida, já no final desse século, por uma família recém chegada de São Paulo, uma família de brasão italiano que negociava com café. – olhando para mim e para Aliel – sua família, como Miciane e Daniel. Depois da morte do patriarca, em 1917, a mãe suicidou-se e a casa foi transferida para o banco onde estava penhorada. Hoje é propriedade da caixa Econômica e, se tudo der certo, em breve será nossa.
Aliel o abraçou, e eu me despedi.
Nos dias que se seguiram, estive envolvido com os estudos e não pude atender aos apelos de Aliel, minha amada, a mulher que me estava destinada, e de seu marido, agora meu amigo. Como essa vida é complicada! Como diria Ernani. Pensei. Antes minha cabeça girava em torno de um mistério imenso o qual me traria o destino romântico digno de um folhetim barato. Até que conheci Wellington, um indivíduo cuja mãe me disse ser um espírito evoluído, e ele o era. Ele me falara de alguém que precisava de mim, Aliel, de alguém que me queria fazer sofrer, Ângela. E tudo isso se descortinou com tanta urgência que não vejo nenhum mistério. Foi o tempo mais uma vez dando mostras de que ele é inexorável, de que tudo se dissolve com ele, basta-nos espera e agir no momento ideal. Em um dos telefonemas que Ernani me deu, falou-me que Aliel estava bem melhor, visitou os pais e estava bem mais serena, até pedira a ele para voltar a estudar, pois precisava ter uma profissão para ser útil a alguém. Ela também me telefonava e numa de nossas conversa falou-me que estava preparada para a próxima regressão, que ocorreria em fevereiro, quando o especialista americano viesse. Ernani tinha medo de que algo desse errado. Eu prometia que assim que me livrasse das avaliações finais retornaria a encontrá-los.
Assim que cumpri minhas últimas atividades anuais na faculdade, fui visitar Aliel. A saudade era imensa, apesar do curto tempo. Mas quando se ama, quer-se estar perto da mulher amada a toda hora, e alguns dias sem vê-la parecem uma eternidade, por isso qualquer minuto perto é bom demais, o amor só aumenta. Chegando à sua casa, pedi para a moça que me atendeu para que não me anunciasse, pois queria fazer uma surpresa. Entretanto surpreso fiquei eu ao vê-la rodeada de livros. Por alguns instantes fiquei embebido admirando aquela cena: os livros dispostos sobre a mesa, sem nenhuma arrumação ou algo que indicasse critério de colocação, ela com os dois punhos cerrados debaixo do queixo numa atitude de jogador de xadrez que imagina uma estratégia para dar xeque mate no adversário. Em outro plano, quero dizer, quem visse a cena por um ângulo mais ampliado, que me enquadrasse, com certeza acharia patético a minha atitude diante da cena simples protagonizada pela moça. E foi isso que deve ter pensado Ernani ao tocar meu ombro para em seguida falar baixinho:
─ Você deve amar muito essa moça, não?
Eu fiquei atônito, envergonhado. A vontade que eu tive foi de ir embora correndo e nunca mais tornar àquela casa. Mas nesse instante aliel se voltou para mim, deu-me um sorriso tão belo que esse desejo volatizou-se e sumiu da minha mente. Ela ergueu os braços para mim, que fui em sua direção, beijei-lhe a testa e sentei-me perto dela.
─ Vem cá, Daniel, me ajudar com esses livros, que o Ernani não tem paciência comigo.
Nisso o marido se aproximou de nós dois, beijou-a nos lábios, bateu de leve no meu ombro e saiu. Ainda da porta falou:
─ Toma conta de tua irmã, Daniel.
Aquelas palavras me doeram como látego, pois era isso que eu para Aliel, apenas o seu irmão. E isso me incomodava. Eu queria ser seu amado, seu homem, seu amante. Entretanto ela era pura demais, não trairia seu marido. Se antes o fizera, era porque ainda não eram casados e talvez ela nem acreditasse que viriam a sê-lo. O marido por sua vez mesmo sabendo do amor que eu tinha por ela sabia que ela o amava e conhecia que tipo de relação ela internalizara com relação a mim, principalmente depois dos últimos acontecimentos. Com certeza ele na dissera aquelas palavras para me nocautear, possivelmente o tenha feito para justificar para si mesmo a confiança que depositava em mim. E eu me lembrei do tempo, senhor tão bonito, compositor de destinos, que sana todos os males e que destrói os homens maus. Não houve um na história da humanidade que não tenha sucumbido a ele, não houve nem haverá império por mais poderoso que seja que não caia sob o olhar de sarcasmo desse imperador do universo. Por outro lado não houve nem haverá amor que ele tenha conseguido demolir. Como dois amigos que se rivalizam numa luta surda em que não há vencedor, Amor e Tempo se medem. Um está sempre rindo um do outro a cada vitória parcial, e os anos, as décadas e os séculos se vão passando, se acumulando enquanto, exaustos da peleja, os dois contemplam a humanidade e sentem pena dos homens, para, logo recuperado o fôlego, voltarem à pugna que os entretém. Lembrei-me de uma história contada por um professor de Língua Portuguesa que é mais ou menos assim:
Certa vez, numa ilha habitavam todos os sentimentos: a Saudade, a Tristeza, a Alegria, a Ganância, a Solidariedade, o Ciúme, a Inveja, o Amor, o Ódio, a Usura. Enfim ali habitavam todos aqueles que norteiam o destino da humanidade. Apesar de paradoxais, eles conviviam bem, cada um respeitando as diferenças alheias, pois é nos corações humanos que se dá o combate entre eles.
Certo dia Surgiu das profundezas do oceano um Tritão e informou que seu pai, Netuno, iria inundar toda a ilha. Que era para os sentimentos evacuarem o local e buscarem outro quartel general. Todos imediatamente ocuparam seus barcos para deixarem aquele lugar que tanto os acolhera. O amor, sempre fitando o distante horizonte, só soube do que ocorreria quando a maioria já havia abandonado a ilha. E ele, que nunca desesperou, andou calmamente até a praia. Lá chegando viu o barco da Felicidade e perguntou:
─ Tem uma vaguinha para mim aí?
─ Desculpe-me, amigo, mas é que estou tão feliz que prefiro ficar sozinha para que ninguém atrapalhe minha alegria.
O barco do Ciúme também não pôde levá-lo porque tinha medo de que seu veículo se apaixonasse por outro. O barco da Riqueza estava repleto de ouro e prata e não cabia mais nada. A Inveja e o Ódio, que iam no mesmo barco, sabiam que com o fim do amor eles poderiam reinar absolutos sobre o coração humano, e, por isso, nem sequer ouviram seus apelos.
E assim foram um a um passando, enquanto o Amor, paciente, sabia que chegaria sua vez de se salvar. A ilha já começara a ser inundada quando veio um barco e o acolheu. De tão grato o Amor se esqueceu de perguntar ao barqueiro o seu nome. Mais tarde, já em completa segurança, enquanto ajeitava seu novo posto, Amor se lembrou de perguntar a outrem o nome de seu benfeitor:
─ Foi O Tempo. Não o reconheceste? – respondeu o indagado.
O amor então refletiu: “Ah, só podia ser ele, pois só o Tempo é capaz de transportar o Amor”.
E mais uma vez deixei às expensas do Tempo o meu dilema de ter Aliel nos meus braços para sempre. Estava perdido nessas reflexões quando ela brincou:
─ Atenção, planeta Terra chamando Daniel, queira, por favor, aterrissar.
Dei um sorriso, como que pedindo desculpas e fui tratar do que ela queria. Durante todo o dia ficamos juntos. Falamos de seus planos de estudar. Ela queria voltar a cursar a 8ª série para no final do ano tentar as provas da Escola Técnica. Pretendia cursar turismo. E assim o dia declinou, ela falando e eu ouvindo, bebendo cada fonema, cada palavra e cada gota de saliva. Meu Deus – Pensava às vezes – deve ser pecado desejar tanto assim uma pessoa e se contentar apenas com vê-la. Por outro lado pensava ser pecado o incesto. E refletia como são complicadas as leis dos homens mascaradas de leis de Deus. Por que um irmão não pode amar uma irmã, se seus corpos se atraem, se se querem, por que Estácio não pôde ter Helena, por que eu não posso ter Aliel. E de repente balançava a cabeça desnorteado para me dizer: “Aliel não é minha irmã, foi-o em outra vida”. Até que ela me chamava à realidade novamente e eu voltava a fitá-la, e a refletir, e a me perder. Até que...

terça-feira, 17 de março de 2009

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS CAPÍTULOS XII E XIII

CAPÍTULO XII
“O mar tem armas secretas
Que guardam a carne dos peixes
E a solidão do poeta.”
(Fagner/Abel Silva)


As atribulações pertinentes a períodos de provas me tomaram todo o restante do semestre. Em julho não tive descanso porque vieram os créditos de férias, uma forma de antecipar o término do curso, cujo tempo total chegava próximo dos nove anos, e como eu já o havia iniciado fora do tempo, urgia que buscasse recuperar o atraso. Assim o que deveria ser um tempo de lazer, tornou-se um esquadrinhar a anatomia humana sem fim. O pouco tempo livre que tinha, passava-o à beira mar admirando o infinito do oceano e imaginando os segredos ocultos nos labirintos submarinos. Enquanto andava enchia os pulmões de ar para espirá-lo todo de uma vez, em seguida aspirava mais ar. Esse exercício além de me renovar as energias fazia-me viajar no tempo, o vento soprando, a areia açoitando minhas pernas e a maresia penetrando meu ser era o veículo que me transportava a épocas imemoriais. Entretanto, apesar de toda essa afinidade com o mar, e seus mistérios eu não entrava na água. Dava-me imenso prazer ver e senti-lo, mas a idéia de me ver desafiando aquele monstro de água e espuma, rugindo como um dragão colossal me enregelava os nervos. Certa vez, fechara os olhos para ser inundado pela áurea oceânica quando de súbito me vi numa cena que remontava a milhares ou milhões de anos. Nela eu tenho uma barba rala como os soldados de Átila, o huno; tenho na mão esquerda uma lança tosca, primitiva; uma pele de animal e um gorro também de pele me protegem do frio, estou à margem de um oceano, era noite, eu estou ferido e, apesar da roupa, tirito de frio. Agarro-me à lança como se fosse uma tábua de salvação, como se estivesse me agarrando à própria vida, a dor me trespassa a clavícula, enquanto os dentes batem, formando um som monocórdio. Fora isso, o silêncio é ensurdecedor. Aos poucos vou fenecendo e vejo, já fora de mim, o corpo de um caçador, vermelho do sangue que emana de uma ferida imensa, inerte sob o céu de uma primitiva madrugada. Aos poucos vem surgindo uma luz que me conduz ao infinito. Quando abri os olhos vi novamente o impassível oceano me fitando e me desafiando com sua língua de espumas. Refleti sobre a visão que acabara de ter. Seria a visão de uma existência primitiva? Quantas vezes eu vivi? Ou será tudo isso, que me sugere a lembrança de encarnações anteriores, somente fruto da minha imaginação? A resposta para essa pergunta ninguém jamais me daria e eu deveria aprender a conviver com essa dúvida sem me molestar.
Outras vezes eu ia ao shopping. Entrava numa loja de discos, mexia, remexia, depois abandonava o lugar. Ia até a praça de alimentação, comia um sanduíche e voltava para os livros. Foi numa dessas incursões pelo shopping que revi Aliel. O sopapo que senti internamente daria para mover a terra se fosse numa alavanca postada no seu centro. As mãos começaram a suar e eu precisei respirar fundo para reaver parte da calma que me era necessária. Ela estava olhando uma vitrina em que havia uma porção de ursos de pelúcia, parecia escolher um. Ao seu lado, silencioso, um homem que mais parecia um guarda-costas, impassível, fitando-a embevecido, como eu fazia outrora. Ele tinha aproximadamente cinqüenta anos, enquanto o conjunto formado pelos cabelos fortemente grisalhos e os óculos de aros grossos davam-lhe um ar doutoral, como aqueles psicólogos saídos do século XIX, só lhe faltavam o cachimbo na mão esquerda e a direita escorando o queixo. Ou era o fato de prever que ali estava o noivo de Aliel que me fazia dele a imagem de um discípulo de Freud? Aproximei-me do casal, procurando fazê-lo o mais natural possível. Mas outro estremecimento me abalou os nervos, foi quando vi na mão esquerda de ambos o símbolo universal do matrimônio. Hesitei e parei a alguns passos daquela que deveria estar ao meu lado. Ela virou-se para o marido, fez um muxoxo e indicou um dos bonecos na prateleira. Ele assentiu com a cabeça e ela pulou em seu pescoço, rindo de felicidade e beijando-o por todo o rosto. Em seguida os dois entraram na loja, enquanto eu não sabia o que pensar ou o que fazer. Resolvi-me esgueirar pelos corredores e aguardar a saída dos dois. Não demorou muito e eles reapareceram. Com um urso enorme nas mãos, Aliel parecia um bebê de tão feliz. Os dois seguiram pelo imenso corredor na direção da praça de alimentação, seguidos de longe por mim. Foi ela quem indicou uma mesa no meio da praça, a mesma na qual ficávamos antes. Depois de acomodados ela virou-se algumas vezes, como se esperasse a chegada de alguém, talvez sentisse a minha presença. Enquanto isso, sentei-me a uma mesa onde não pudesse ser visto, por várias vezes tive vontade de ir ter com os dois. Aproveitei, então, o momento em que ele se levantou para ir, possivelmente, ao lavabo e me dirigi até Aliel. Para meu espanto, ela não se mostrou surpresa. Sorrindo ela me falou:
─ É difícil ver você, não?
Eu não sabia o que falar estava feliz por ela existir e se transformar na minha razão de viver, estava deslumbrado por ela ser assim tão franca, tão espontânea. Estático assim só pude perguntar:
─ Você casou com ele?
─ Foi. Ele não é tão garotinho como eu falei, é que tive vergonha... – e pela primeira vez eu senti certa falta de confiança em sua voz. Eu então indaguei:
─ Você é feliz?
─ E o que é a felicidade? Eu tenho dezesseis anos e nunca vi ou entendi o que significa isso. Ele me faz bem, é meu amigo e meu pai ao mesmo tempo. Faz e diz coisas tão carinhosas que às vezes acho impossível alguém fazer ou dizer o mesmo. Minha mãe vivia dizendo que sou louca que vivo inventando coisas. Ele me ouve e rir do que eu digo. Se eu o amo? Você pode me perguntar, e eu vou dizer que não sei. Assim como também não sei o que sinto por você. Você é meu irmão. Todas as vezes que sonho com você, você é meu irmão e eu tenho saudades de quando brincávamos na casa de nossa tia. Você não lembra? – perguntou com a mesma voz sumidinha de Miciane.
─ Lembro – afirmei – mas não foi nessa vida – continuei – foi numa outra. Um dia desses, eu tive a visão da nossa casa, chovia muito e você estava muito assustada... – Ela como que iluminada arregalou os olhos e disse:
─ Agora eu lembro – e seus olhos adquiriram uma expressão triste – nossa mãe havia morrido. Foi muito triste e nós sozinhos tínhamos voltado para casa, quando começou a chover. Eu me escondi na cozinha enquanto você me procurava.
Enquanto ela terminava essa narração o marido se aproximou. Ela apontando para mim disse, retomando o ar serelepe:
─ Ernani, esse é meu irmão que eu falei.
Ele olhou para mim sem demonstrar surpresa, seu ar era mais analítico, possivelmente hábito da profissão, do que de cisma. Eu balancei a cabeça afirmativamente, e ele perguntou com a voz pausada:
─ O que isso tem de verdadeiro?
Em poucas palavras eu lhe expus o que sabia até ali sobre mim e Aliel, inclusive a vida em que fomos irmãos.
─ Ninguém como eu deseja mais desvendar esse mistério do que eu. – Finalizei procurando ver no semblante o que pensava aquele homem, enquanto isso Aliel nos fitava séria como um paciente esperando um diagnóstico médico.
─ Olhe, Daniel... é esse seu nome, não é? – Perguntou-me, e diante da afirmativa, continuou – Eu sou psicólogo, portanto um homem de ciências. Sendo assim eu não estou credenciado a crer em nada que se não possa explicar à luz da razão e da experiência. Isso que você me contou me parece totalmente absurdo. Entretanto alguns colegas já me falaram algo semelhante à regressão a vidas passadas. Eu nunca lhes dei atenção, é claro. Mas por outro lado, há anos observo Aliel, e ela não apresenta nenhum sintoma que indique distúrbio mental. Ela sempre falava no irmão que não tinha, ou relatava fatos desconexos, e isso, certamente, causou muito receio a seus pais a ponto de eles praticamente ma entregarem. – ao dizer isso sua voz tornou-se mais pausada ainda, como se não quisesse que Aliel ouvisse. – Sendo assim, garoto, eu estou disposto, se ela quiser, é claro, a tentar sessões de regressão. Vou falar com alguns colegas que já têm experiências nessa área para providenciarmos as reuniões. Mas há um detalhe: eu quero que você esteja presente.
Dizendo essas últimas palavras ele me deu seu cartão de visitas e anotou o número da residência atrás. Apertou-me a mão e se despediu. Aliel abraçou-se a mim, e os dois saíram.
Eu não me sentia triste nem feliz. Sentia-me como alguém que está realizando uma tarefa e não pode esboçar nenhuma reação enquanto ela não estiver concluída, como um jogador na marca do pênalti, ou como uma dançarina no Teatro Municipal. Alegrava-me ter visto Aliel, apesar de ela estar casada. Talvez porque me confortasse a idéia de que o marido era alguém tão preocupado com sua segurança e saúde. Nada nele me parecia ser algum usurpador de inocências ou um velho libidinoso, como eu pensara outrora. Além disso, ele me demonstrara confiança ao me dar o número do telefone de sua casa. Isso, aliado a idéia das sessões de regressão, me colocava numa posição privilegiada quanto ao destino de Aliel e me fazia ver que eu continuava ligado a ele. Desde já eu ansiava pela seqüência dos fatos.


CAPÍTULO XIII
“Sic vos non vobis melificatis, apes.”
(Vieira)

Os dias que se sucederam àqueles acontecimentos me foram tomados pela faculdade. Cada dia a grade curricular me apertava mais, e as provas em cima de provas me deixavam às vezes sem noção do dia e da noite. Abria Atlas anatômicos, fechava-os; entrava em laboratórios, saía deles e o cheiro forte do formol me entontecia. De repente me pegava com a barba por fazer, entrava no banheiro, olhava o relógio, passava a mão no rosto e deixava a barba já crescida pra lá. Os cabelos acompanhavam o mesmo ritmo. Meu pai, talvez cansado de me ver pra lá e pra cá, fez um esforço, pediu emprestado um dinheiro e me presenteou com uma moto, uma CG125. E eu saí pelo meio do mundo de moto, corta carro aqui, entra em corredor estreito ali, avança um sinal acolá. Certa vez eu percorria um corredor formado por duas filas de carro quando apareceu bem na minha frente um homem puxando um garotinho pelo braço, mal deu tempo de desviar, quase bato no carro a minha direita. O homem me olhou bravo e vociferou:
─ Você não sabe que é proibido andar em corredor, seu merda!?
O sangue subiu-me a cabeça e eu retruquei com palavras ásperas das quais não me lembro agora, mas não foram de agradecimento. Mais tarde enquanto almoçava, fiquei pensando no ocorrido, e me veio o remorso por ter sido rude com o cidadão, que na realidade era quem tinha razão. Além do mais ele vinha com o filho e se eu não atropelei os dois foi porque ele teve cuidado ao atravessar o tal corredor. Entretanto o que mais me doía era a minha incoerência, uma vez que eu sempre achei os motoqueiros um bando de irresponsáveis, dizia para todo mundo que não entendia por que eles não andavam nas pistas, como todo veículo deve andar. No entanto uma coisa é você reclamar dos outros, outra é alguém reclamar de você. E eu pensei “meu Deus, como nós somos incoerentes, como somos hipócritas, como só pensamos em nós! Se alguém faz algo ilegal, está errado; se somos nós que o fazemos, estamos certos e ninguém pode reclamar.” Naquele momento lembrei-me de um vizinho que vociferava contra o adultério. Para ele mulher-adúltera boa era mulher-adúltera morta. Alardeava sempre que algum caso chegava a seus ouvidos “comigo é na bala”. Até que a sua esposa, a quem ele não permitia trabalhar para não “se perder” o traiu. O quarteirão todo ficou sabendo das puladas de cerca dela, menos ele. Ninguém lhe dizia o que estava acontecendo porque ninguém queria ser responsável por um crime passional. Até que deu-se o desmastreio, e ele a flagrou em péssima hora. Nada fez. Alguns dias depois saía de mudança para outro bairro, pois, segundo ele, “as pessoas dali eram muito fuxiqueiras, e nem ele nem a esposa tinham nomes para andar em bocas de matildes.” Seria irônico se não fosse trágico. Eu refletia naquela situação e novamente me perguntava como é interessante o pensamento e lembrei-me da letra da música: “O pensamento parece uma coisa à-toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar!” Para minha surpresa, vi o homem e o filho, os quais eu quase atropelava, entrarem no restaurante. Ele não me reconheceu, é óbvio, devido ao fato de eu estar de capacete. Então pensei que ali estava uma boa oportunidade para eu me retratar, pedir desculpas, afinal eu reconhecera para mim o erro, mas isso só não bastava, precisava reconhecê-lo também para os outros, pois só assim poderia ficar em paz com a minha consciência. Dirigi-me então até ele e fiz o que devia. O homem ficou deveras agradecido e também se desculpou. Meu ser ganhou uma leveza excepcional, diria que fiquei feliz. Naquela noite eu não iria dormir com um peso sobre os ombros. Lembrei-me então do Wellington e sobre o que havia me falado sobre pedir desculpas a alguém a quem magoamos. Abri a janela e olhei as estrelas. Vênus brilhava intensamente e eu pensei que se os espíritos evoluídos realmente se tornam estrelas ao morrer, aquele rapaz com certeza está brilhando nessa imensidão espacial. Lembrei-me de súbito de fazer a barba e já me dirigia ao banheiro quando o telefone tocou. Era Aliel, para minha alegria. O marido havia viajado para um congresso e ela estava se sentindo sozinha. Conversamos por quase uma hora e percebi que ela alternava momentos de alegria e de tristeza. Quando ela desligou, eu pensei que talvez a regressão resolvesse alguns de seus dilemas e ela se tornasse uma moça normal para decidir seu futuro com mais clareza, e eu esperava fazer parte dele, é claro, enquanto uma voz interior me dizia “você já faz parte da vida dessa moça, aliás, você sempre fez”.

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO XII
“O mar tem armas secretas
Que guardam a carne dos peixes
E a solidão do poeta.”
(Fagner/Abel Silva)


As atribulações pertinentes a períodos de provas me tomaram todo o restante do semestre. Em julho não tive descanso porque vieram os créditos de férias, uma forma de antecipar o término do curso, cujo tempo total chegava próximo dos nove anos, e como eu já o havia iniciado fora do tempo, urgia que buscasse recuperar o atraso. Assim o que deveria ser um tempo de lazer, tornou-se um esquadrinhar a anatomia humana sem fim. O pouco tempo livre que tinha, passava-o à beira mar admirando o infinito do oceano e imaginando os segredos ocultos nos labirintos submarinos. Enquanto andava enchia os pulmões de ar para espirá-lo todo de uma vez, em seguida aspirava mais ar. Esse exercício além de me renovar as energias fazia-me viajar no tempo, o vento soprando, a areia açoitando minhas pernas e a maresia penetrando meu ser era o veículo que me transportava a épocas imemoriais. Entretanto, apesar de toda essa afinidade com o mar, e seus mistérios eu não entrava na água. Dava-me imenso prazer ver e senti-lo, mas a idéia de me ver desafiando aquele monstro de água e espuma, rugindo como um dragão colossal me enregelava os nervos. Certa vez, fechara os olhos para ser inundado pela áurea oceânica quando de súbito me vi numa cena que remontava a milhares ou milhões de anos. Nela eu tenho uma barba rala como os soldados de Átila, o huno; tenho na mão esquerda uma lança tosca, primitiva; uma pele de animal e um gorro também de pele me protegem do frio, estou à margem de um oceano, era noite, eu estou ferido e, apesar da roupa, tirito de frio. Agarro-me à lança como se fosse uma tábua de salvação, como se estivesse me agarrando à própria vida, a dor me trespassa a clavícula, enquanto os dentes batem, formando um som monocórdio. Fora isso, o silêncio é ensurdecedor. Aos poucos vou fenecendo e vejo, já fora de mim, o corpo de um caçador, vermelho do sangue que emana de uma ferida imensa, inerte sob o céu de uma primitiva madrugada. Aos poucos vem surgindo uma luz que me conduz ao infinito. Quando abri os olhos vi novamente o impassível oceano me fitando e me desafiando com sua língua de espumas. Refleti sobre a visão que acabara de ter. Seria a visão de uma existência primitiva? Quantas vezes eu vivi? Ou será tudo isso, que me sugere a lembrança de encarnações anteriores, somente fruto da minha imaginação? A resposta para essa pergunta ninguém jamais me daria e eu deveria aprender a conviver com essa dúvida sem me molestar.
Outras vezes eu ia ao shopping. Entrava numa loja de discos, mexia, remexia, depois abandonava o lugar. Ia até a praça de alimentação, comia um sanduíche e voltava para os livros. Foi numa dessas incursões pelo shopping que revi Aliel. O sopapo que senti internamente daria para mover a terra se fosse numa alavanca postada no seu centro. As mãos começaram a suar e eu precisei respirar fundo para reaver parte da calma que me era necessária. Ela estava olhando uma vitrina em que havia uma porção de ursos de pelúcia, parecia escolher um. Ao seu lado, silencioso, um homem que mais parecia um guarda-costas, impassível, fitando-a embevecido, como eu fazia outrora. Ele tinha aproximadamente cinqüenta anos, enquanto o conjunto formado pelos cabelos fortemente grisalhos e os óculos de aros grossos davam-lhe um ar doutoral, como aqueles psicólogos saídos do século XIX, só lhe faltavam o cachimbo na mão esquerda e a direita escorando o queixo. Ou era o fato de prever que ali estava o noivo de Aliel que me fazia dele a imagem de um discípulo de Freud? Aproximei-me do casal, procurando fazê-lo o mais natural possível. Mas outro estremecimento me abalou os nervos, foi quando vi na mão esquerda de ambos o símbolo universal do matrimônio. Hesitei e parei a alguns passos daquela que deveria estar ao meu lado. Ela virou-se para o marido, fez um muxoxo e indicou um dos bonecos na prateleira. Ele assentiu com a cabeça e ela pulou em seu pescoço, rindo de felicidade e beijando-o por todo o rosto. Em seguida os dois entraram na loja, enquanto eu não sabia o que pensar ou o que fazer. Resolvi-me esgueirar pelos corredores e aguardar a saída dos dois. Não demorou muito e eles reapareceram. Com um urso enorme nas mãos, Aliel parecia um bebê de tão feliz. Os dois seguiram pelo imenso corredor na direção da praça de alimentação, seguidos de longe por mim. Foi ela quem indicou uma mesa no meio da praça, a mesma na qual ficávamos antes. Depois de acomodados ela virou-se algumas vezes, como se esperasse a chegada de alguém, talvez sentisse a minha presença. Enquanto isso, sentei-me a uma mesa onde não pudesse ser visto, por várias vezes tive vontade de ir ter com os dois. Aproveitei, então, o momento em que ele se levantou para ir, possivelmente, ao lavabo e me dirigi até Aliel. Para meu espanto, ela não se mostrou surpresa. Sorrindo ela me falou:
─ É difícil ver você, não?
Eu não sabia o que falar estava feliz por ela existir e se transformar na minha razão de viver, estava deslumbrado por ela ser assim tão franca, tão espontânea. Estático assim só pude perguntar:
─ Você casou com ele?
─ Foi. Ele não é tão garotinho como eu falei, é que tive vergonha... – e pela primeira vez eu senti certa falta de confiança em sua voz. Eu então indaguei:
─ Você é feliz?
─ E o que é a felicidade? Eu tenho dezesseis anos e nunca vi ou entendi o que significa isso. Ele me faz bem, é meu amigo e meu pai ao mesmo tempo. Faz e diz coisas tão carinhosas que às vezes acho impossível alguém fazer ou dizer o mesmo. Minha mãe vivia dizendo que sou louca que vivo inventando coisas. Ele me ouve e rir do que eu digo. Se eu o amo? Você pode me perguntar, e eu vou dizer que não sei. Assim como também não sei o que sinto por você. Você é meu irmão. Todas as vezes que sonho com você, você é meu irmão e eu tenho saudades de quando brincávamos na casa de nossa tia. Você não lembra? – perguntou com a mesma voz sumidinha de Miciane.
─ Lembro – afirmei – mas não foi nessa vida – continuei – foi numa outra. Um dia desses, eu tive a visão da nossa casa, chovia muito e você estava muito assustada... – Ela como que iluminada arregalou os olhos e disse:
─ Agora eu lembro – e seus olhos adquiriram uma expressão triste – nossa mãe havia morrido. Foi muito triste e nós sozinhos tínhamos voltado para casa, quando começou a chover. Eu me escondi na cozinha enquanto você me procurava.
Enquanto ela terminava essa narração o marido se aproximou. Ela apontando para mim disse, retomando o ar serelepe:
─ Ernani, esse é meu irmão que eu falei.
Ele olhou para mim sem demonstrar surpresa, seu ar era mais analítico, possivelmente hábito da profissão, do que de cisma. Eu balancei a cabeça afirmativamente, e ele perguntou com a voz pausada:
─ O que isso tem de verdadeiro?
Em poucas palavras eu lhe expus o que sabia até ali sobre mim e Aliel, inclusive a vida em que fomos irmãos.
─ Ninguém como eu deseja mais desvendar esse mistério do que eu. – Finalizei procurando ver no semblante o que pensava aquele homem, enquanto isso Aliel nos fitava séria como um paciente esperando um diagnóstico médico.
─ Olhe, Daniel... é esse seu nome, não é? – Perguntou-me, e diante da afirmativa, continuou – Eu sou psicólogo, portanto um homem de ciências. Sendo assim eu não estou credenciado a crer em nada que se não possa explicar à luz da razão e da experiência. Isso que você me contou me parece totalmente absurdo. Entretanto alguns colegas já me falaram algo semelhante à regressão a vidas passadas. Eu nunca lhes dei atenção, é claro. Mas por outro lado, há anos observo Aliel, e ela não apresenta nenhum sintoma que indique distúrbio mental. Ela sempre falava no irmão que não tinha, ou relatava fatos desconexos, e isso, certamente, causou muito receio a seus pais a ponto de eles praticamente ma entregarem. – ao dizer isso sua voz tornou-se mais pausada ainda, como se não quisesse que Aliel ouvisse. – Sendo assim, garoto, eu estou disposto, se ela quiser, é claro, a tentar sessões de regressão. Vou falar com alguns colegas que já têm experiências nessa área para providenciarmos as reuniões. Mas há um detalhe: eu quero que você esteja presente.
Dizendo essas últimas palavras ele me deu seu cartão de visitas e anotou o número da residência atrás. Apertou-me a mão e se despediu. Aliel abraçou-se a mim, e os dois saíram.
Eu não me sentia triste nem feliz. Sentia-me como alguém que está realizando uma tarefa e não pode esboçar nenhuma reação enquanto ela não estiver concluída, como um jogador na marca do pênalti, ou como uma dançarina no Teatro Municipal. Alegrava-me ter visto Aliel, apesar de ela estar casada. Talvez porque me confortasse a idéia de que o marido era alguém tão preocupado com sua segurança e saúde. Nada nele me parecia ser algum usurpador de inocências ou um velho libidinoso, como eu pensara outrora. Além disso, ele me demonstrara confiança ao me dar o número do telefone de sua casa. Isso, aliado a idéia das sessões de regressão, me colocava numa posição privilegiada quanto ao destino de Aliel e me fazia ver que eu continuava ligado a ele. Desde já eu ansiava pela seqüência dos fatos.


CAPÍTULO XIII
“Sic vos non vobis melificatis, apes.”
(Vieira)

Os dias que se sucederam àqueles acontecimentos me foram tomados pela faculdade. Cada dia a grade curricular me apertava mais, e as provas em cima de provas me deixavam às vezes sem noção do dia e da noite. Abria Atlas anatômicos, fechava-os; entrava em laboratórios, saía deles e o cheiro forte do formol me entontecia. De repente me pegava com a barba por fazer, entrava no banheiro, olhava o relógio, passava a mão no rosto e deixava a barba já crescida pra lá. Os cabelos acompanhavam o mesmo ritmo. Meu pai, talvez cansado de me ver pra lá e pra cá, fez um esforço, pediu emprestado um dinheiro e me presenteou com uma moto, uma CG125. E eu saí pelo meio do mundo de moto, corta carro aqui, entra em corredor estreito ali, avança um sinal acolá. Certa vez eu percorria um corredor formado por duas filas de carro quando apareceu bem na minha frente um homem puxando um garotinho pelo braço, mal deu tempo de desviar, quase bato no carro a minha direita. O homem me olhou bravo e vociferou:
─ Você não sabe que é proibido andar em corredor, seu merda!?
O sangue subiu-me a cabeça e eu retruquei com palavras ásperas das quais não me lembro agora, mas não foram de agradecimento. Mais tarde enquanto almoçava, fiquei pensando no ocorrido, e me veio o remorso por ter sido rude com o cidadão, que na realidade era quem tinha razão. Além do mais ele vinha com o filho e se eu não atropelei os dois foi porque ele teve cuidado ao atravessar o tal corredor. Entretanto o que mais me doía era a minha incoerência, uma vez que eu sempre achei os motoqueiros um bando de irresponsáveis, dizia para todo mundo que não entendia por que eles não andavam nas pistas, como todo veículo deve andar. No entanto uma coisa é você reclamar dos outros, outra é alguém reclamar de você. E eu pensei “meu Deus, como nós somos incoerentes, como somos hipócritas, como só pensamos em nós! Se alguém faz algo ilegal, está errado; se somos nós que o fazemos, estamos certos e ninguém pode reclamar.” Naquele momento lembrei-me de um vizinho que vociferava contra o adultério. Para ele mulher-adúltera boa era mulher-adúltera morta. Alardeava sempre que algum caso chegava a seus ouvidos “comigo é na bala”. Até que a sua esposa, a quem ele não permitia trabalhar para não “se perder” o traiu. O quarteirão todo ficou sabendo das puladas de cerca dela, menos ele. Ninguém lhe dizia o que estava acontecendo porque ninguém queria ser responsável por um crime passional. Até que deu-se o desmastreio, e ele a flagrou em péssima hora. Nada fez. Alguns dias depois saía de mudança para outro bairro, pois, segundo ele, “as pessoas dali eram muito fuxiqueiras, e nem ele nem a esposa tinham nomes para andar em bocas de matildes.” Seria irônico se não fosse trágico. Eu refletia naquela situação e novamente me perguntava como é interessante o pensamento e lembrei-me da letra da música: “O pensamento parece uma coisa à-toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar!” Para minha surpresa, vi o homem e o filho, os quais eu quase atropelava, entrarem no restaurante. Ele não me reconheceu, é óbvio, devido ao fato de eu estar de capacete. Então pensei que ali estava uma boa oportunidade para eu me retratar, pedir desculpas, afinal eu reconhecera para mim o erro, mas isso só não bastava, precisava reconhecê-lo também para os outros, pois só assim poderia ficar em paz com a minha consciência. Dirigi-me então até ele e fiz o que devia. O homem ficou deveras agradecido e também se desculpou. Meu ser ganhou uma leveza excepcional, diria que fiquei feliz. Naquela noite eu não iria dormir com um peso sobre os ombros. Lembrei-me então do Wellington e sobre o que havia me falado sobre pedir desculpas a alguém a quem magoamos. Abri a janela e olhei as estrelas. Vênus brilhava intensamente e eu pensei que se os espíritos evoluídos realmente se tornam estrelas ao morrer, aquele rapaz com certeza está brilhando nessa imensidão espacial. Lembrei-me de súbito de fazer a barba e já me dirigia ao banheiro quando o telefone tocou. Era Aliel, para minha alegria. O marido havia viajado para um congresso e ela estava se sentindo sozinha. Conversamos por quase uma hora e percebi que ela alternava momentos de alegria e de tristeza. Quando ela desligou, eu pensei que talvez a regressão resolvesse alguns de seus dilemas e ela se tornasse uma moça normal para decidir seu futuro com mais clareza, e eu esperava fazer parte dele, é claro, enquanto uma voz interior me dizia “você já faz parte da vida dessa moça, aliás, você sempre fez”.

quarta-feira, 4 de março de 2009

CAPÍTULO X
“A minha felicidade está sonhando
Nos olhos de minha namorada
É como esta noite
Passando, passando
Em busca da madrugada”
(Vinícius de Morais)

Era começo de ano novo e recebi muitos telefonemas de parabéns, agradecia meio constrangido, pois não achava que passar num vestibular não era motivo para tanta celeuma. Uma noite, já estava quase dormindo quando telefone tocou mais uma vez, já estava meio aborrecido, atendi com uma voz um tanto sem graça, quando reconheci a voz. Era Aliel. Nossa que coisa boa me estava acontecendo. O mais estranho era que sua voz no telefone me levava no tempo há quase mil anos, era a voz de Ranjicniami . despertei para entender o que ela falava:
─ Oi, cê tá me ouvindo?
─ Estou, claro, tudo bem? – Falei enquanto me recompunha do susto.
─ Você não me ligou, tá sumido. – Falou ela.
─ Liguei sim – retruquei já refeito – é que você nunca estava. Então pensei que você não queria falar comigo.
─ Pois ninguém me deu recado algum.
─ E por que você não ligou?
─ Eu tinha perdido o telefone, rapaz, acredita? – Falou, como um garoto – Só hoje é que eu achei. E eu pensei assim: num vou ligar não, se o Daniel quisesse falar comigo ele tinha me ligado.
─ Tá bom – disse eu já quase sem palavras.
─ E quando eu te vejo? – Indagou ela de súbito.
─ Não sei, quando você quiser... e o seu namorado?
─ Namorado! Você quer dizer noivo... é minha mãe resolveu que nós devemos ficar noivos e casar no próximo ano. Sim mas a gente podia se ver... ou você não quer?
─ Claro! – disse eu – Mas onde?
─ No shopping, naquele mesmo lugar. Tá bom?
─ Tá ótimo.
Fiquei por muito tempo saboreando a voz daquela menina que estava destinada a mim, mas que ia casar-se. Não sei por que eu não pensava no fato de ela estar noiva eu só pensava em sua voz milenar e eu via o rosto de Ranjicniami e o cheiro do mar invadindo minhas narinas.
No dia seguinte eu estava como combinado à sua espera na praça de alimentação quando chegou o garçom e me entregou um bilhete no qual estava escrito: “passei mais cedo e deixei esse bilhete com o garçom porque não posso vir ao seu encontro, desculpa tá.” Nossa que angústia medonha eu senti. Que chato. Eu me preparara desde a manhã para ser feliz e de repente vejo minha felicidade roubada por um pedaço de papel. Chamei o garçom, paguei a conta e quando ia me levantando ouvi uma voz no meu ouvido, baixa e em forma de uma melodia de ninar “enganei o bobo na casca do ovo”. Era aliel, que sorria a minha frente. Eu não sabia o que pensar ou o que dizer, eu estava abobalhado. Não sabia se sorria ou ficava sério. Só quem ama e se defronta com a mulher amada inesperadamente sabe o aspecto patético com que eu fiquei. Eu não me contive, num gesto súbito tresloucado, apaixonado eu a beijei, enquanto ela ria. Aos poucos seu sorriso foi sumindo e seus olhos fechando e eu pude senti-la. Ah, meus amigos, o que eu senti naquele momento foi algo indescritível, sentir o sabor de seus lábios o contato com sua pele é algo que nunca vou conseguir descrever por mais que me esforce. Depois não iria beijar muitas mulheres, mas aquela sensação de beijar Aliel tenho certeza que não há igual eu... Depois de nos recompormos, eu não tinha palavras. Ela foi quem começou:
─ Eu adorei esse beijo e esperava por eles há tempo, mas eu sou uma moça noiva, seu Daniel, o que as pessoas vão pensar. Deixa que eu faço. – e me beijou de novo, enquanto ria.
Durante o resto da tarde ficamos juntos. Ela me contou a história de seu noivado, que esperava que o noivo desistisse desse casamento, que havia sonhado comigo, e eu embebido fitando aquele rosto lindo. Depois eu falei de minha aprovação no vestibular, das angústias que sentia toda vez que ligava para ela e ninguém a chamava. Rimos brincamos um com o outro e nos beijamos como se a vida fosse um beijo e nós estivéssemos simplesmente vivendo. E ela sempre com suas brincadeiras e seu jeito brejeiro só me fazia amá-la mais ainda. À noite, enquanto repassava o dia, pensava como seria embriagante ter Aliel nos meus braços, para nunca mais nos despedirmos, mas até eu duvidava de que esse dia chegasse. Às vezes imaginava ser inacessível ficarmos juntos para todo o sempre, e ninguém ou nada nos separar. Quanto ao noivado, eu não me importava, como se já esperasse por isso, como se já soubesse o desenrolar dos acontecimentos, como se previsse que não era chegado ainda o momento, e, pior, que esse dia nunca chegaria, e minha sina fosse andar pela terra feito um sonâmbulo em busca da felicidade plena que me era já clandestina.
A partir daquele dia passamos a nos ver quase todas as tardes, e eu passei a cogitar a idéia de que nunca mais fôssemos deixar de nos encontrar. Aliel pouco falava de seus problemas a ponto de eu os esquecer. Estava vivendo um momento singular. Por um lado a faculdade que me realizava a cada dia como ser humano. Era aquilo para que me havia destinado; do outro, Aliel que me embriagava com suas brincadeiras, seu sorriso e seus beijos, como se a vida fosse o meu desejo, beijar o seu sorriso sem cansaço era o portão do paraíso que se me abria em terra, às vezes me beliscava para ver se não estava sonhando. Noutras pensava se aliel não estava era brincando comigo. E no meio dessas reflexões era surpreendido por um beijo ou uma atitude inesperada dela..
No entanto esse idílio teve fim, o que era doce se acabou, e o que me restou foi o doce amargo da resignação. Um dia estava a sua espera, quando uma senhora se aproximou de mim, sentou-se a minha frente e me encarou. Percebendo meu semblante questionador, ela me estendeu um papel. Era um atestado médico, nele havia escrito um diagnóstico nada agradável para mim. Segundo o papel Aliel sofria de perturbações mentais, esquizofrenia que se alternavam com estados de euforia compulsiva.
─ Desde que era uma garotinha – explicou a mulher – Aliel alternava estados de depressão e alegria. Falava constantemente de um irmão que nunca teve...
Nesse ponto eu a interrompi para lembrar-lhe que eu a havia conhecido na praia há dez anos. A mulher, no entanto, ignorou minhas palavras e continuou impassível:
─ ... No início nós pensávamos que era só mania de criança. Com a mente muito fértil, elas costumam imaginar coisas. No entanto o caso se agravou e tivemos de levá-la ao médico. O resultado infelizmente é esse que você está vendo. Nós procuramos fazer tudo para que ela se sentisse uma criatura normal, mas ela nos desobedece e tem novas recaídas. Numa de suas crises, Dr. Ernani iniciou um tratamento, e ela melhorou sensivelmente. Com o tempo e o convívio ele acabou se apaixonando por ela e a pediu em casamento. Ele é viúvo, não tem filhos e é tão dedicado a ela que eu e meu marido achamos interessante a idéia. Porque se ele é psiquiatra e se dedica tanto a ela, daria um bom marido. O Senhor não acha? – como não obteve resposta para sua pergunta cretina, foi em frente – O senhor é um rapaz novo, inteligente deve compreender o que é melhor para Aliel. Por favor, afaste-se dela, ou melhor, esqueça-a, se acaso você a encontrar, o que vai ser um pouco difícil – nesse momento a mulher deixou escapar um leve sorriso de desdém – diga a ela que não lhe quer mais, que ama outra. Passar be... – ia se despedindo, mas eu a interrompi:
─ E onde está sua filha?
─ foi passear com o noivo, foram à Europa, ele disse que os ares europeus vão ajudá-la no tratamento. E por favor, deixe-a em paz – disse isso e afastou-se.
Eu fiquei arrasado, pensando em quem estava mentindo, ela ou Aliel, e que noivo misterioso era esse, um vizinho ou um psiquiatra viúvo. E me lembrei de Ranjicniami e de seu problema com o pai, também viúvo. Tive vontade de levantar dali, seguir aquela mulher para ver onde ela morava, no entanto pairou sobre mim uma inatividade que me perturbava. Não havia nada que eu pudesse fazer, a não ser esperar, como se a vida me fosse essa eterna angústia de esperar o dia seguinte ou a vida seguinte.





CAPÍTULO XI
“Amontoei também prata e ouro e tesouros de reis e de províncias; provi-me de cantores e de cantoras e das delícias dos filhos dos homens: mulheres e mulheres.”
(Eclesiastes: 2 – 8)


Nos dias que se seguiram liguei para Aliel, mas fiquei sabendo que o número havia sido mudado, busquei pistas em lugares que ela, nas nossas conversas, havia citado. Debalde, nada nem ninguém a conhecia. Foi então que lembrei que ela sempre falava da casa de uma tia cujo endereço ela sabia direitinho. Parecia que de seus familiares em segundo grau o único endereço que ela conhecia de fato era esse. O de sua casa ela nunca mencionava. Sempre que eu me referia a ele, ela desconversava, me embromava, me beijava e eu acabava esquecendo. Já a localização de onde morava essa tia ela vez por outra estava mencionando. A ponto de eu o memorizar. Diante dessa possibilidade, um dia, ao sair da faculdade, tomei o ônibus e fui até lá. Tratava-se de um casarão abandonado, no meio de uma rua bastante movimentada. Todo o espaço que separava as grossas grades de ferro do prédio principal estava tomado pelo mato. Os pujantes cadeados impediam que os portões fossem transpostos de forma natural. Ao fundo, a casa de dois pisos e duas varandas que cercavam os cômodos internos em toda sua extensão, o telhado, ao estilo europeu, terminava nos quatro cantos em calhas por onde escorria a água da chuva que era conduzida aos lençóis subterrâneos por dutos de bronze que caiam na vertical. Os janelões, circundando a sala, indicavam tempos áureos de festas e saraus, no centro da platibanda o brasão trazia o nome da família. Isso tudo eu via de longe. Porém não resisti e, diante dos olhos dos passantes, eu transpus o muro de ferro. Com carrapichos pendurados nas calças e nos tênis eu me dirigi à casa, receando pisar em alguma cobra. No interior, a mansão se mostrava mais portentosa, havia marcas ainda dos que ali habitavam, a louça dos lavabos e sentinas quebrados era riquíssima, as torneiras, arrancadas por vândalos, deviam ser de metal caro, o mesmo de alguns porta-toalhas que jaziam intactos nas paredes. Enquanto explorava os corredores e quartos, encontrei uma escadinha apertada que levava ao sótão e lembrei que Aliel me falou certa vez de uma escada estreita que havia na casa da referida tia e onde costumava se esconder quando brincava com os primos. Ela me contou que uma vez, no topo da escada avistou um parapeito e tentou subir até lá para se esconder dos primos, com quem brincava de esconde-esconde. Mas ao colocar o pé direito no parapeito e tentar levar o esquerdo até lá, teve medo e assim ficou, com uma perna no topo da escada e outra no balcão, numa altura de quase quatro metros, por mais de uma hora, sob o riso baixinho dos primos, que zombavam de seu choro assustado. Até que um empregado da casa veio-lhe em socorro. Lembrando essa história, eu olhei para cima e avistei, ao lado do topo da escada, a um passo dele, um pequeno balcão que saía da parede e finalizava com o formato de uma cabeça de leão, símbolo do brasão que se encontrava na fachada da casa. Fiquei sem saber o que dizer, pois se aquela história contada por Aliel fosse verdade, ela era uma lembrança de uma vida anterior, pois aquela casa estava abandonada há pelo menos meio século. De súbito uma sensação estranha me ocorreu e eu me senti como em uma máquina do tempo, cenas passavam rápido em minha frente e eu desmaiei.
Eu estou na mesma casa só que totalmente nova, sem rabiscos na parede ou marcas quaisquer de abandono. Está chovendo muito, os trovões parece que vão jogar a casa pelos ares, enquanto os relâmpagos iluminam o interior em curtos espaços de tempo. Eu procuro alguém. Ando pelo comprido corredor, cujas cerâmicas brilham sob meus pés, subo a escadinha estreita que dá para o sótão. Empurro com jeito a entradinha, acendo uma lanterna a gás, ilumino o interior, mas não vejo nada, só o gato de pêlos eriçados esconde-se num canto. Entro num dos quartos, ergo a lanterna mais uma vez e nada. Vou passando pela cozinha, quando ouço um gemido, entro e vislumbro um vulto por trás do fogão. A menininha corre para mim, me abraça e me diz com voz sumida:
─ Eu tô com medo. Cadê a mamãe?
─ Tá bom, Miciane, não chore, eu tô aqui, nada de ruim vai acontecer.
─ E se os monstros destruírem nossa casa? O Emerson e o Marcílio disseram que o trovão são as pedras que vão matar todo mundo. – e volta a choramingar com sua vozinha de falsete – Eu tô com medo.
─ Calma. Aqueles primos são uns chatos, só querem fazer medo a você.
─ Cadê mamãe? – Pergunta novamente.
─ Mamãe está viajando, mas vai voltar logo.
─ É verdade que nós vamos ter de mudar daqui?
─ É, mas ainda vai demorar, relaxa – nesse momento me sobe um nó pela garganta e eu me abraço mais ainda à menina – relaxa, tá – mas minha voz sai atropelada pelo nó e as lágrimas escorrem devagar pelo rosto. De repente, um trovão ecoa tão forte e tão próximo que eu sinto a casa balançar.
Despertei com alguém me sacolejando. À minha frente está um homem que penso ser algum mendigo, entretanto percebo algo na sua voz que denota condição diferente.
─ Cê tava desmaiado, o que foi que houve?
─ Desculpe, eu tava aqui e de repente o mundo rodou... Você mora aqui? – perguntei.
─ É, eu durmo aqui. – disse – Você sabe que horas são?
Só aí foi que eu percebi que já era noite e que o chegante iluminava a casa com uma lamparina.
─ Nossa, faz tempo que eu tô aqui. – assustei-me, pensando que aquelas curtas cenas demoraram tanto para se passarem – Que horas são?
─ Vão dar oito horas – disse ele tirando um relógio, ou melhor, uma cabeça de relógio do bolso traseiro da calça.
─ Pois eu já vou, desculpe, tá.
─ Espere pra tomar um café. A gente aproveita e conversa, eu não converso muito. – Disse isso e apontou para a solidão dos aposentos em ruína.
Aceitei. E enquanto tomávamos café ele me contou parte de sua vida. Narrou que era filho de pessoas pobres e que cresceu sonhando em enricar. Começara a trabalhar desde cedo e quando já estava desistindo de ter uma vida de talões de cheque e carros importados, a vida lhe aprontou uma surpresa. Através de uma sociedade escusa com algumas pessoas ligadas a sindicatos, apossou-se de uma bolada e viu aí a oportunidade de abrir uma empresa. Logo era empresário no ramo de calçados e a vida tornou-se um entrar de dinheiro em sua conta bancária que não tinha fim. Era paparicado por muitos e desprezava a todos. “Tinha a impressão de que todos queriam o meu dinheiro, achava que as pessoas só se aproximavam de mim pela minha riqueza, pela minha opulência. E tratei de me afastar deles, principalmente dos amigos da infância e da adolescência, pois via neles o atraso, o passado de privações, as dificuldades em conseguir dinheiro para tomar uma cerveja, o aperto dos coletivos e a angústia de se não ter trabalho. Cheguei até a esnobar aqueles que me eram outrora os mais próximos, exibindo a eles, sem lhes oferecer, copos cheios de uísque caro. Com o tempo passei a esnobar também meus familiares e me isolei na minha fábrica e na minha mansão, com mulheres e falsos amigos. Ainda bem que não casei, não tive filhos, por isso, como diria Machado de Assis, não transmiti a ninguém o legado de minha miséria. Tudo o que a vida dá ela toma. Não importa o que seja. Se ela vir que você não merece, ela vem e leva. Pode ser não só riqueza material, mas também a miséria moral, a pobreza, ou uma doença. Ela te dá e ela vem buscar. Se você é bom, solidário ela tira de você essa bondade e te dá riqueza. Mas a sua bondade é inata, ela te deixa a opulência e devolve tua bondade, tua solidariedade em dobro. Mas se tua bondade é só fachada, ela te leva a opulência e te devolve não a bondade, mas a angústia e o orgulho para viver sem ninguém. Comigo foi assim. Quando dei por mim estava sem nada e sem ninguém. A ruína me veio rápido, como a opulência, confiei em pessoas às quais não devia dar crédito, aplicaram-me um golpe sujo e mero, zerei, até a casa a justiça confiscou. Os falsos amigos e as mulheres viraram gases, evaporaram, sumiram, não me queriam, como nunca me quiseram. O meu orgulho não me deixou sequer voltar para a casa de meus pais. Um dia, desesperado, tendo gasto os últimos centavos numa refeição, subi no alto de um prédio para me jogar, mas ouvi a conversa entre dois funcionários de serviços gerais do edifício. Um falava para o outro do filho que ia nascer, era o terceiro. Quando o outro perguntou se dava para alimentar três filhos mais a mulher, ele respondeu que sim, que cada filho que nasce é a resposta de Deus de que devemos continuar lutando pela sobrevivência, é a resposta de Deus de que o mundo deve continuar. Ele falava do filho que ia chegar com tanto carinho, com tanto amor que sua voz embargava. E eu ali querendo me matar. Naquele momento eu tomei uma decisão. Decidi que ia voltar a trabalhar para depois conquistar as amizades que jogara fora, principalmente a de meus pais e meus irmãos. Mas algo me incomodava, eu não podia continuar ali no Maranhão eu precisava purgar meus erros longe dali. Foi aí que resolvi vir aqui para Fortaleza. Cheguei faz duas semanas. Como não tinha onde morar, vim para cá. Coloquei minhas roupas que sobraram no chão e elas me servem de cama, enquanto eu as engomo com a quentura e o peso do corpo, numa relação de cooperação. Uso somente duas mudas de roupas. Quando estou usando uma, a outra está enxugando e assim vai. No começo desta semana consegui um emprego, amanhã talvez eu alugue uma quitinete...” Ao dizer essas últimas palavras, com a voz pausada, ele se virou simulando remexer o fogo para esquentar o café. Aproveitei o silêncio para me despedir. Já na rua, após saltar as grades, ainda o ouvi chamar:
─ Ei, não se esqueça do que lhe contei, não faça jamais como eu fiz.
Acenei para ele, num gesto afirmativo e saí.
Chegando a casa, tentei dormir logo, mas foi em vão. O acontecimento da tarde e a história ouvida à noite se embaralhavam em minha cabeça, até que, como num processo seletivo natural, o transporte aos tempos áureos da casa e as aflições de Aliel, agora encarnada numa garotinha de nome Miciane, tomou todo o espaço de meus pensamentos. O que eu estava fazendo ali? Está claro que eu era ali o irmão a que Aliel se referia. É certo também que nós éramos bastante ligados. E nossa mãe, o que realmente acontecera a ela? De uma coisa eu tinha certeza: eu e Aliel estávamos cada vez mais ligados um ao outro através das existências. Urgia, pois, que eu a encontrasse, para que juntos desatássemos os nós que nos engodavam o destino e pudéssemos enfim ficar juntos. Mas agora eu precisava dormir, já que as provas semestrais se aproximavam.




terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

DE VIDAS, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO IX
“Mais vale o bom nome do que as muitas riquezas, e o ser estimado é melhor do que a prata e o ouro.”
(Provérbios: 22; 1)


Quando despertei daquele transe, o garotinho continuava a me olhar impassivelmente com um meio sorriso nos lábios. A mãe, em vão, puxava-o. Até que ele estendeu a mão de amigo, eu a apertei, e ele se foi com a mãe. Olhei para o relógio e vi que aquelas cenas duraram aproximadamente míseros quinze segundos. Enquanto o garçom se aproximava com a bandeja, vi que o garotinho ainda me olhava de esgueira, enquanto a mãe ralhava com ele, possivelmente dizendo-lhe algo, como “não converse com estranhos”. Logo lembrei as palavras de Charles Chaplin: “Não há estranhos, o que existem são amigos que ainda não nos foram apresentados.” Essa lembrança me fez refletir que o revés também é possível, que não há estranhos, mas inimigos em potencial. Todas as pessoas que existem no mundo são nossos amigos ou inimigos, só depende de nós. Daí a necessidade de olharmos as pessoas com benevolência, sorrirmos para elas mesmo que apresentem um semblante carregado, pois assim elas ficarão mais propensas a nos abraçar e menos a nos esmurrar.
Enquanto almoçava pensava em Juliete. Tive ímpetos de ir até a mesa onde estavam a mãe e Juliete reencarnada. Tive vontade de perguntar-lhe o nome, saber se ele se lembrava de mim, fazer amizade. Mas concluí que não devíamos nada um ao outro, pois se aquela criança, como Juliete, me dedicara tanto cuidado, eu, como seu pai, lhe havia salvado a vida, e com certeza não éramos estranhos, o destino se encarregaria de nos aproximar, ou não.
E assim o ano declinou, dia após dia entre livros. Não queria nem pensar que poderia não ser aprovado, queria recuperar o tempo perdido. Não pensava em aliel, ou melhor, pensava, mas buscava não pensar e meus pensamentos se voltavam para os bizus. Finalmente chegou o grande momento da realização das provas. A ansiedade agora era a espera do resultado. As questões iam e vinham na minha cabeça e eu me perguntava “será que marquei a alternativa correta? Será que o somatório era aquele mesmo?” E veio a grande surpresa: o nono lugar num dos cursos mais concorridos do país indicava que eu me preparara devidamente, era bem mais do que eu poderia esperar. E eu não pulei, não gritei apenas saí tranqüilamente em direção da praia e lá fiquei refletindo sobre tudo o que havia acontecido nos últimos dias. Depois de conhecer o resultado, eu sabia que entrar para uma faculdade como Medicina não era bicho de sete cabeças, mas foi bom eu ter imaginado que era o obstáculo mais difícil da minha vida, pois os obstáculos são assim quanto mais complicados os imaginamos, melhor nos preparamos para eles e mais simples se tornam Somos, pois, como Alice, que despreparada para enfrentar um rato, via-o como se fosse um rinoceronte, grande ameaçador; mas devidamente cônscia de seus atributos e de seus medos, ao ver um rinoceronte, encava-o como a um simples camundongo. No entanto não devemos temer nem a um nem a outro, aquele é imenso, porém lento e manso; este, ao contrário do que diz a fábula, não assusta nem elefante. O que devemos temer de fato são os tigres, com suas garras e dentes ameaçadores e sua eterna fome de carne, os lobos que rodeiam a presa para alimentar os filhotes. Os homens somos tigres e somos lobos sempre em busca da presa fácil, com os dentes escancarados, rindo enquanto o cordeiro jaz a nossos pés.
É incrível a força e a leveza do pensamento! Naquele momento eu refletia sobre o meu sucesso e fui aos poucos catapultado a essa reflexão sobre os homens e não sei por que eu chorei. Apesar de ser homem, de apreciar o domínio sobre coisas e até mesmo sobre outros homens, vem-me à boca um amargo por saber que numa sociedade de consumo, numa sociedade de tigres e lobos, o prazer de alguns requer o sacrifício de muitos. Eu subitamente me inquieto e as contradições afloram em meu cérebro e minha alegria é triste e meu brilho é fosco. Eu não sou um ser evoluído, e talvez nunca virei a sê-lo. Nunca serei como Ernesto Guevara, que trocou o conforto de sua família, o colo de sua esposa e o sorriso de suas filhas para se transformar no peregrino da revolução; como Gandhi, que libertou seu povo sem que para isso fosse necessário disparar um tiro; como Francisco, que abandonou uma vida de luxo e de luxúria para se dedicar aos pobres e aos animais; tampouco feito Jesus, que com o seu amor imensurável se doou num ideal de solidariedade a ponto de derramar seu sangue pela humanidade. Também não me arvoro em sê-lo. Tenho primeiramente que continuar minha tarefa aqui, e o tempo se encarregará do resto.
Em tudo isso eu pensava, quando uma mão leve como uma pluma tocou meu ombro. Não virei o rosto para mirá-lo, era como se eu já o esperasse. Um vulto de pele clara, quase transparente, sentou-se ao meu lado e me disse:
─ Chora, pois o choro é o óleo que vem untar nossos olhos para vermos com mais clareza as nossas necessidades e as dos outros e percebermos que a doação é a nossa grande missão, pois, como nós lavamos uma roupa e nos preparamos para uma festa, as lágrimas lavam nossa alma para a festa de novidades que renovarão nossos dias. Os que não choram, permanecem cegos diante do sofrimento seu e alheio, não irão a nenhum baile, no máximo dirigir-se-ão a uma bacanal, onde carregarão mais ainda suas roupas de nódoas, que lhe pesarão sobre os ombros o os vergarão para a terra, numa apoteose decadentista. Por isso chora, não tenhas pejo de fazê-lo, sozinho ou diante de outrem. Não se preocupe com a evolução. Ela é lenta, mas é gratificante e, vidas menos vidas, ela virá.
Dizendo isso, esse espírito de luz sumiu e me deixou só com minhas dúvidas que aos poucos se dissiparam e foram substituídas por uma certeza: viver é um sacrifício que devemos aceitar, não como um fardo, mas como uma tarefa a ser cumprida, e é a sua realização que nos torna feliz. A felicidade é isso é o prazer das coisas cumpridas.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO VIII
“Adeus, pálida amante dos meus sonhos!
Adeus, vida! Adeus, glória! amor! anelos!”
(Castro Alves)



Durante o restante do ano não tive mais contato com Aliel. Todas as vezes que telefonei para sua casa ela não estava ou quem atendia ao telefone fora devidamente orientado para dizer que ela não se encontrava. Por outro lado ela não me ligou em momento algum. E eu ficava pensando que aquela menina com jeito brejeiro estava pilheriando comigo. Mais uma vez me veio a idéia do tempo e refleti: Não é bastante que queiramos algo, é necessário que aquilo que desejamos esteja preparado para acontecer. Não podemos, portanto, nos afligirmos ou forçar os momentos, quando chegar a hora tudo se resolverá. E assim me preparei para receber o Ano bom.
Urgia que organizasse meus horários de estudo, pois precisava distribuir esse tempo entre as atividades da escola e o estudo pára o vestibular de Medicina. Por isso durante todo o ano não tive tempo para nada. Estudava pela manhã, ao chegar a casa, tomava banho, almoçava, e livro. À tardinha ia para uma lagoa que ficava próximo à minha casa, fazia Cooper, voltava para casa, tomava banho, lanchava, e livro. À noite, enquanto dormia, para descansar, os livro me apareciam, e vinham as fórmulas matemáticas e físicas a que se misturavam átomos de carbono, e tudo isso junto formava um texto sobre os motivos das Cruzadas. Algumas vezes acordava mais cansado do que quando tinha ido dormir.
Entretanto quando o cansaço acumulava, eu não voltava para casa. Ia almoçar no centro da cidade. Aproveitava esses momentos para buscar rostos conhecidos de outras vidas. Era uma brincadeira para mim. Entrava sempre no mesmo restaurante, daqueles cujo público alvo são comerciários e bancários ou simplesmente pessoas que estão fazendo compras quando a barriga ronca. Eu entrava, sentava-me numa posição privilegiada para observar o público e de lá buscava rostos conhecido de outras vidas. E os encontrava. Fechava então os olhos e ficava tentando lembrar de que vida nos conhecíamos, eram meros figurantes de momentos que eu não conseguia vislumbrar com exatidão.
Certa vez aconteceu que eu estava num estabelecimento desses, quando adentrou nele uma moça puxando uma criança pelo braço. Era um menininho negro, de sorriso desenxabido e olhos grandes. A moça o conduzia para uma mesa próxima à que eu me encontrava. Subitamente, ele empacou como uma mula e me olhou, seus olhos me queriam cumprimentar, um leve sorriso bailou em seus lábios. Eu senti um formigamento iniciando na nuca e correndo espinha a baixo.
De repente eu estou numa cena totalmente diferente. O ambiente é um salão imenso, aristocrático, em que há várias mesas cobertas com toalhas vermelhas acetinadas. Nelas, homens conversam e bebem champanha, com grossos charutos entre os dedos. Eu estou numa mesa bem afastada do centro, trajo um terno amarelo e uso um chapéu de massa de cor marrom. Estou apreensivo devido à demora de alguém. Sinto um enorme alívio quando ela entra no recinto. É bela, tem os olhos grandes, usa um chapéu amarrado ao queixo, traz um leque na mão esquerda e um guarda-chuva na outra. Traja um vestido branco cheio de arabescos de renda azul-clara, apertado na cintura e rodado abaixo com um decote discreto acima. Ela mais parece uma imagem saída de um quadro de Monet. Antes que ela chegue, eu me levanto para saldá-la. Já devidamente acomodada, eu lhe pergunto o motivo da demora, ao que ela responde que foi a mãe que a atrasou, ela passara em sua casa para pegar umas encomendas... Suas palavras são um tanto vazias, mas eu deixo para lá. Ela então começa a tossir. Quando eu lhe pergunto se ela pegou sereno, ela diz que não foi nada. Entretanto a tosse se intensifica a ponto de as pessoas em volta se incomodarem. Mando chamar o carro e a levo para casa. Já devidamente acomodada, dou-lhe um chá. Debalde! A tosse é tanta que ela estremece toda. Já estou desesperado quando o médico chega, coloca o estetoscópio, manda-a falar trinta e três e lhe recomenda repouso absoluto. Contrato no mesmo dia uma enfermeira, que lhe administra os medicamentos receitados. Debalde! A tosse só se intensifica, e o meu desespero aumenta, eu não saio do quarto durante toda a noite e, a todo instante, eu olho para ver se ocorreu um milagre. O médico vem novamente várias vezes no dia seguinte, e cada vez minha angústia só e maior ao ver a cara do médico mais compungida. Eu insto com ele para que me diga algo, ao que ele responde “tenha calma, meu jovem, tenha calma”. Mas eu não tenho e o sacolejo agarrado ao seu jaleco branco. Pego-me com todos os santos e choro ao ver a pele da minha amada descorada e seu corpo exânime sobre o leito. Na manhã do terceiro dia, o médico apenas balança a cabeça, como a justificar seus esforços. E eu perco o sentido das coisas. Vem o padre e resmunga mecanicamente algumas palavras de extrema unção. Depois vem o pessoal da funerária, tiram-lhe medidas, vestem-na numa mortalha de cor marrom, mas eu exijo que lhe coloquem outra de cor branca, que melhor simbolizaria sua pureza. Depois de realizado esse desejo, jogam-na numa sepultura, sob os olhos espantados dos que a amavam, entre eles eu, que não aceito aquela separação repentina. Meu coração estremece ao lembrar o pouco tempo que permanecemos juntos, apenas um ano. Entretanto eu deveria me conformar, pois naquele pouco tempo vivemos um amor nunca vivido antes por criatura alguma. Nossos dias e noites eram festa, amávamos com tanto fervor que a Cidade das Luzes tornava-se mais iluminada, não havia cansaço, não havia brigas, eu conhecia todos os seus poros, todos os seus cheiros, e ela retribuía tal carinho na mesma moeda, com o mesmo empenho, com o mesmo amor. Talvez por isso eu não me conformasse com sua partida. Ao fim, todos se vão e eu fico diante da lápide onde há um epitáfio que diz: “Aqui jaz Judite Proudon, em vida amou a ponto de dar sua vida pelos seus, na morte continua no seio dos que a amaram.” Um amigo chega toca no meu ombro, mas eu me recuso a sair, recuso-me a deixá-la exposta à voracidade dos vermes. Em minha cabeça há uma idéia fixa, passar mais uma noite ao seu lado. E lá na cidade dos mortos me deixo ficar, sento-me à sombra de um cipreste e brinco com suas sementes vermelho-claras. Sem me dar conta, adormeço. Quando desperto, já é noite fechada e a única luminosidade vem da lua, que me observa austera, como uma mãe a ralhar com o filho, sem dizer palavra. Tiro o relógio do bolso e tento ver as horas, em vão. Mas neste momento o sineiro toca o seu instrumento doze vezes. De repente, um calafrio me sobe a espinha, e eu não sei se tenho frio ou medo. Apesar de cético, por ter sido criado no seio de uma família ligada à ciência, vêm à tona todas as superstições que me contam histórias de almas penadas e criaturas da noite. É com grande esforço que não me desespero e não saio a correr. Em meus ouvidos soam barulhos, como os de pés esmagando gravetos, em seguida ouço o pio de uma coruja, tão perto que me enregela o sangue. Olho mais uma vez para sua sepultura, beijo-a e saio a passos largos sem me voltar, pois os sons se multiplicam, como se naquele momento os mortos levantassem de seus leitos derradeiros e iniciassem um seminário. Fora dos muros da pequena cidade, dirijo-me a uma taberna que se encontra aberta. O ambiente me causa repugnância, sobe-me à boca uma náusea, meu estômago revira e por pouco não vomito ali. Sento-me diante do balcão, recoberto por um acolchoado vermelho-sangue. Olho em volta para sondar o recinto, quase vazio àquela hora. Apenas algumas mulheres dançam para alguns velhos babões, numa lareira produzida pela disposição das mesas. Peço um conhaque. A loira aquilina que me atende comenta:
─ Nossa, que estado, que decadência! Parece que fugiu do cemitério! Você deveria tomar era um leite quente.
Eu insisto, e ela me traz o conhaque. Naquela noite não vou para casa, não agüentaria passar aquela primeira noite sem Judite. Entro no primeiro hotel, subo para o quarto e me jogo na cama. Por muito tempo me reviro numa insônia sem fim até que adormeço, sem fechar as janelas. No dia seguinte e nos dias que se seguem ardo em febre e tenho fortes alucinações, nelas Judite está ao meu lado e me pede desculpas por me trair, diz que me amava, mas sua índole leve como uma pluma a impedia de ser só de alguém. A princípio eu queria morrer, mas depois desisto. Não quero mais encontrá-la, estou certo de que as alucinações me foram uma revelação. No hotel, onde os médicos se desdobram em cuidados, há uma jovem que não sai do meu lado. É ela que me enxuga o suor do rosto e me administra as ampolas deixadas pelas figuras hipocráticas. Finalmente saio daquele torpor e aos poucos torno à vida. Volto para casa e por muito tempo lembram-me as alucinações tidas durante a enfermidade. Tenho medo, mas me iludo fingindo ser pejo, de mexer nas gavetas de Judite. Às vezes desperto durante a noite, abro nosso guarda roupa e ilumino as gavetas que lhe pertenciam, mas não as abro e volto a revirar na cama até o dia clarear. Por gratidão, visito as pessoas do hotel onde passei os dias de enfermo. Lá encontro sempre solícita a moça que me acompanhou naqueles dias, após dia. Seu nome é Juliete e me é muito familiar. Para retribuir sua dedicação, levo-a a passear, sentamos-nos num quiosque, tomamos suco, depois vamos até às margens do Sena, ficamos conversando e admirando a serenidade de suas águas. Um dia tomo coragem e lhe pergunto o motivo de sua dedicação para com um estranho, principalmente doente. Ao que ela me responde com grande naturalidade:
─ Gratidão. Quando o vi pela primeira vez, na rua, há algum tempo, eu sabia que nós éramos ligados um ao outro, até que o tempo o trouxe até mim. Certa noite, enquanto dormia, tive um sonho revelador. Há muito tempo, nós vivíamos numa tribo e você era meu pai. Numa madrugada fomos atacados por uma tribo inimiga. Eles eram canibais, e você morreu para me salvar.
Ao ouvir aquele pequeno relato, eu devo achar que aquela moça é louca, mas ela fala com tanta convicção e seus olhares são dotados de tanta gratidão, que me comovem. Um ano depois nos casamos. Sua primeira atitude a qual não posso impedir é revirar todas as gavetas que pertenciam à minha ex-mulher. Desfaz-se de tudo que lá há, com exceção de um pacote de cartas amarradas por uma fita vermelha. Ela mo entrega e nunca pergunta sobre o conteúdo das missivas. Eu as leio, sem derramar uma lágrima, depois as incinero, seus conteúdo agora não me importa mais. Vivo tranqüilo ao lado de Juliete. Não a amo, mas nutro por ela um carinho especial. Ela também não me ama, o que sente é gratidão, e assim nós vivemos o resto daquela vida.

NA ESCURIDÃO MISERÁVEL

FERNANDO SABINO  “Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o m...