sexta-feira, 8 de agosto de 2014

BOM DIA, COMO VAI... SIMPLES ASSIM





           
Todo ser humano precisa de carinho, de atenção. Se Cristo dizia para que amássemos uns aos outros, era porque sabia dessa necessidade humana. Sempre que conhecemos alguém, e se temos um pouco de sensibilidade, notamos sua fragilidade, sua ansiedade por ser amado. Esse amor a que Cristo aludia é um sentimento simples, como a atenção dispensada a alguém, uma palavra de conforto, um aperto de mão, um “tudo bem!”, um elogio, uma validação.
            Há alguns dias, enquanto acompanhava meu filho ao treino da escolinha de futebol, fiquei observando um cidadão conversando com outro, um amigo particular, a respeito de seu cãozinho, na verdade uma cadela,  que desaparecera. Ele falava da tristeza do filho e da filha, e em seu semblante eu percebi que lhe fazia bem ser ouvido, pois além de servir de lenitivo para a sua angústia de não poder resolver esse problema  familiar,  dava-lhe o amparo de que precisava para seguir sua rotina habitual e forças para continuar essa busca.
            Acompanhei sempre esses diálogos à distância. Até que um dia o amigo não veio. Percebi que o homem procurava por ele, imaginando que estava demorando, mas que logo chegaria. De súbito, percebi que o amigo daquele homem não viria e que nele ficaria o vácuo daquela ausência. Resolvi substituí-lo. Aproximei-me do homem e abordei-o sobre se havia encontrado o animal de estimação da família. Informei-lhe que havia escutado seu diálogo há alguns dias a respeito do sumiço do animal. Perguntei-lhe sobre os filhos... O semblante do homem desconhecido se iluminou, seus olhos brilhavam de tal forma que me senti feliz. Ele estava enormemente agradecido pelo fato de eu me importar com seu sofrimento. Em poucas palavras, me pôs a par do que estava acontecendo, e no final, antes de ir embora, me agradeceu com um efusivo aperto de mão.
            Assim todos os dias que nos encontrávamos, ele me chamavas para perto de si e do amigo, que voltou aos encontros rotineiros, e  nos punha a par de como estavam as buscas. Até que um dia a angústia acabou. Ele chegou, cumprimentou o amigo, chamou-me para perto de si, abraçou primeiro o amigo, depois a mim e, enxugando uma lágrima teimosa, contou que havia encontrado a cadelinha e que a família estava novamente completa.
            Depois desse dia, o homem sempre me tratou como amigo, me cumprimenta, pergunta como está minha família, conta sobre suas coisas. Se me encontra no supermercado, vai até mim, mantém um rápido diálogo e me convida para ir a sua casa para um churrasco. Infelizmente adio esse momento por motivos vários, mas um dia o farei, pois creio em que ele faz esse convite, não apenas por cortesia, mas porque me considera de fato seu amigo.   
(Professor Alves, há alguns anos.)

sexta-feira, 11 de julho de 2014

A CARTOMANTE



A
Machado de Assis

Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou! Interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muito cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vente e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda peior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéa, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
— Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?
Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável mais cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.


terça-feira, 8 de julho de 2014

QUE VENÇA O MELHOR

QUE VENÇA O MELHOR
Afligem-me as expectativas com relação ao resultado do jogo entre Brasil e Alemanha, pelas semifinais da copa do mundo de 2014. Me afligem e me deixam preocupado, se é que as duas expressões não são sinônimas, porque eu não vi nem ouvi de nenhuma  “personalidade” do mundo do futebol e/ou do mundo da televisão,  da política ou da religiosidade brasileira, pessoas que são formadoras de opinião em nossos brotos, uma resposta do tipo “QUE VENÇA O MELHOR”. Todos são unânimes: TEM QUE DAR BRASIL! E eu me pergunto “como assim, tem que dar Brasil?”.
Pode ser que alguém queira saber o porquê de meu espanto. E aí é que vem a reflexão. Imaginemos que todos nós, pais, professores, mães, tias, pastores, padres, líderes espíritas e até alguns políticos, queiramos um país de bem, um país em que se respeitem as faixas de pedestres, a leis constitucionais, o pagamento de  impostos de forma consciente, as leis de trânsito e que se tenha até orgulho dos nossos velhinhos, aposentados que tanto têm para ensinar aos nossos adolescentes inconsequentes. Se isso for verdade, não podemos admitir que seja verdadeira a premissa de que o Brasil tem que vencer a qualquer custo. Com gol de pênalti mal marcado aos 49 do segundo tempo, como ouvi de comentaristas esportivo. É preciso, pois, que se pregue para nossas crianças e adolescentes: QUE VENÇA O MELHOR.
Recentemente assisti a uma palestra (e dela participei) cujo tema era exatamente a maior perda de todas: a morte. E eu então faço a seguinte pergunta: como podemos querer que nossas crianças e nossos adolescentes se preparem para perdas grandes se não as educamos para a perda de um mínimo campeonato de futebol, quem não vale nada? Como queremos que nossos adolescentes, grande preocupação de pais e educadores, respeitem as leis naturais e as leis criadas pelos homens; como podemos querer que o Brasil no futuro seja um país grande com pessoas sensatas, honestas; como podemos querer que nossas crianças sejam, no futuro, políticos honestos que conduzam o Brasil ao primeiro mundo, se nós adultos dizemos em alto e bom som: temos que ganhar de qualquer maneira? Quão imbecis somos, não?
Quando escrevi a respeito de Brasil 3 X 1 Croata e aquele pênalti mal marcado, recebi algumas críticas. Compreendi então que me achavam tremendo idiota, imbecil. É preferível ganhar, mesmo que seja desonestamente. Assim os políticos que colocamos no poder eleições após eleições, estão isentos de qualquer punição, pois somos nós que damos a eles o aval: é preciso lucrar, ganhar, não importa como. Mas sei que não. As pessoas, coitadas, embriagadas pelo vinho entorpecedor do materialismo, do imediatismo é que estão equivocadas, porque a euforia da vitória passará, mas a lição de que é preferível vencer a qualquer preço ficará na mente de nossas crianças e adolescentes, até que se tornem adultos e achem normal, roubar, traficar, sonegar, desrespeitar. É por isso que digo ao meu filho QUE VENÇA O MELHOR!
(Francisco Alves de Andrade, 08 de julho de 2014, 14:24 h)


terça-feira, 17 de junho de 2014

ESCRITO PELAS ESTRELAS


Não existem estranhos.
O que há são amigos
que ainda não nos foram
 apresentados.
(Charlie Chaplin)

                Velha História, de Mário Quintana, o eterno poeta de alegrete, nos conta a provável história entre um homem sério, que se vestia de negro e tinha um ar preocupado, e um peixinho pequenino, de escamas azuladas e grande ar de inocência. O que torna verossimilhante essa fantástica fábula são os mesmos fatores que tornaram possíveis duas outras  histórias extraordinárias que narro a seguir.
               
A primeira vem de um romance de ficção e se reporta à amizade entre dois adolescentes com câncer em estado terminal. O que torna inverossímil e ao mesmo termo provável esse interminável laço é a distância que os envolve numa aura de poesia em busca de suas últimas realizações. Enquanto pessoas saudáveis estão nesse momento em busca da morte pelo desencanto extraqualquer coisa, eles buscaram, não solução para seus males, irreversíveis, mas força para viverem os últimos instantes. É, amparados um no outros, que veem suas vidas se prolongarem por tempo indeterminado, até que, por fim,  a morte os une definitivamente.
               
                A outra é um fato real, mas que se fosse ficção, também não causaria estranhamento. É a história de um americano e um motoboy brasileiro, unidos por uma paixão chamada futebol. Que magia tem esse esporte de atender aos apelos das estrelas e então se realizar para que destinos possam se encontrar! Como diria Caetano, “é incrível a força que as coisas parecem ter, quando precisam acontecer”. Eu não vi e não ouvi a história por completo, mas acho que basta a ideia do aluguel de um lugar para ficar numa comunidade humilde como Itaquera, próximo ao local de abertura da copa, a vontade de passear, conhecer outro modus vivendi, o encontro quase fortuito com o motoboy, o sorriso, a aproximação magnética, como dois ímãs que se atraem pelos opostos. Imagino em outra vida, os dois destinos separados abruptamente. Amigos, cônjuges, pai e filho? Não importa. Lá na pátria maior, os dois se buscando. E aqui os dois se reencontrando. Parece que o americano quis ficar na humilde moradia do novo amigo, que surpreso recebeu das mãos daquele o ingresso tão sonhado para assistir à estreia do evento maior do futebol. Não por pagamento, mas por coroamento do contrato feito na outra pátria, a maior.

É o mesmo sentimento que tornou possível a amizade entre o peixinho e o homem, entre a jovem e o jovem do romance de John Green, que uniu brasileiro e americano. É o mesmo sentimento que torna possível o que não tem explicação. Isso se chama AMOR. Esse sentimento maior, que a todo instante é confundido com outros menores. É o AMOR imensurável, divino, sublime, coordenado do alto pelas estrelas pela diafaneidade do invisível que envia à terra, a todo instante, a energia de que precisa a humanidade para sua evolução.
(Francisco Alves, junho de 2014)  



segunda-feira, 16 de junho de 2014

OUTRA NEGA FULÔ

O sinhô foi açoitar
A outra nega Fulô
– ou será que era a mesma?
A nega tirou a saia,
A blusa e se pelou ,
O sinhô ficou tarado,
Largou o relho e se engraçou.
A nega em vez de deitar
Pegou um pau e sampou
Nas guampas do sinhô.
– Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!,
Dizia intimamente satisfeito
O velho pai João
Para escândalo do bom Jorge de Lima,
Seminegro e cristão.
E a mãe preta chegou bem cretina
Fingindo uma dor no coração.
– Fulô! Fulô! Fulô!
A sinhá burra e besta perguntou
Onde é que tava o sinhô
Que o diabo lhe mandou.
– Ah, foi você que matou!
– É sim, fui eu que matou –
Disse bem longe a nega Fulô
Pro seu nego, que levou
Ela pro mato, e com ele
Aí sim ela deitou.
Essa nega Fulô!

Esta nossa Fulô!

(Oliveira Siveira)

sexta-feira, 13 de junho de 2014

BRASIL 3 X 0 CROÁCIA (QUE ME PERDOEM O MAU TOM)


O Brasil é um país moldado, preparado, destinado à corrupção. Infelizmente esse é o  diagnóstico a que chego depois de ter assistido à vitória do Brasil sobre a Croácia, neste 12 de junho de 2014. Estou deveras desapontado, e peço desculpa a qualquer um que venha ler essa crônica, ou que  pergunte minha opinião a respeito da estreia do Brasil.
Digo isso porque, logo após a partida, me dirigi à casa de  amigos e lá encontrei todos felizes soprando apitos,  balançando bandeiras, numa alegria que contrastava em muito com a minha frustração, meu humílimo desolamento , minha insaciável  necessidade de cidadania. É, eu sofro deste mal!  Pois bem. Lá chegando fui abordado por um amigo dos meus ex-amigos que, me abraçando, ao me ver com minha surrada camisa da seleção, herança ainda de 82, quando a única seleção que deveria ter ganho o mundial não o fez, me perguntou sobre a minha felicidade quanto à maiúscula vitória do Brasil sobre a Croácia. Eu então pedi desculpas e mostrei meu descontentamento sobre o resultado. Disse-lhes que entendia que esse era o grande momento da redenção nacional. Esse seria o verdadeiro grito do Ipiranga, digo, do Itaquerão, a verdadeira independência. Seria esse o  momento em que Fred diria ao juiz “Professor”, sim porque aqui só quem não é tratado por professor é quem realmente merece, “não foi pênalti, eu, sem querer, me joguei...”. Tudo bem que o jogador seja analfabeto e nunca tenha estudado nada sobre ética! Mas, e a torcida? Esta poderia ter entoado o brado retumbante de que não havia sido Pênalti. Mas como o juiz já estava com o pagamento na sua conta bancária – só agora entendo a afirmação do Sr. José Maria Marin, presidente da CBF, de que ‘só um milagre tiraria essa copa do Brasil’ –  essa torcida poderia ter pedido ao Neymar para que esse mandasse a bola na arquibancada, imaginem quanto seria maravilhoso, jogadores de seleção, exemplo de consumo neste país, sendo exemplo de comportamento e ética!!
Imaginem o Brasil ser redimido e só assim ficar independente! Duvido que houvesse protestos nos jogos seguintes, duvido que black-blocs tivessem a quem cooptar, duvido que não houvesse um brasileiro que não torcesse pela seleção. Mas não! Continuamos com nossa vocação para a corrupção. Vamos sorrir, gritar, comemorar nossa seleção que, para ganhar da incipiente Croácia, teve que contar com a luxuosa colaboração do árbitro, que há quatro anos deixou de marcar um pênalti a nosso favor e contra a Holanda (dívida?).
Fico às  vezes pensando, e aqui queria pedir desculpas profundas a todos que agem com retidão, que eu é que sou o corrupto por querer que o Brasil vença a copa em seu território de forma honesta, por querer corromper as pessoas para que deixem de ser espertas e tomem fila ao invés de espertamente furá-la, por querer que a honestidade se superponha ao jeitinho brasileiro e que o caráter seja mais valioso que o cretinismo. Queria honestamente sorrir com a desonestidade dos nossos comentaristas, que tentam justificar os erros de arbitragem, mesmo quando fica claro que não houve erro, mas mal intenção.
Mas quero me solidarizar com Valter Casa Grande Jr., quando este indagado pelo corrupto maior do esporte brasileiro, Galvão Bueno, se nunca havia simulado um pênalti daquela maneira, ele disse firmemente que não. O locutor mor da Globo, fez uma cara de desdém, como a dizer “otário”!

(Francisco Alves, junho de 2014)

domingo, 25 de maio de 2014

Fagner - Beleza (Album 1979)

Milton Nascimento - "Canção da América" (1980)

TUDO VALE A PENA QUANDO A ALMA NÃO É PEQUENA


http://imguol.com/c/noticias/2014/05/15/15mai2014---professores-da-rede-municipal-de-sao-paulo

Quem são esses senhores e essas senhoras que se arregimentam em verdadeiras legiões pelas ruas, descendo de ônibus lotados, ou guiando seus automóveis, invadindo espaços diversos, seja segunda ou seja domingo? São professores e professoras, dedicados cidadãos e cidadãs, que abandonam suas famílias para a construção daquilo que chamamos vulgarmente de saber.
Ó, como é lindo vê-los entrando em salas de aula, riscando no quadro branco, outrora negro, palavras de sabedoria, de conhecimento ou simplesmente aquilo que se encontra nos currículos. Belos são seus lábios pronunciando verdadeiras filosofias de vida, entre uma reprimenda ou apenas numa acolhida individual. São pais e são mães que, colocando-se no lugar do outro, sabem, com doçura na voz, conduzir destinos, sem muitas vezes conhecer a própria sina.
Ó, como é maravilhosos ver esses senhores e essas senhoras felizes quando encontram “seus filhos” encaminhados. Olham para os seus próprios rebentos e se sentem radiantes quando veem que valeu a pena tê-los abandonado momentaneamente para a construção do caminho daqueles que lhe foram confiados.
Mas não se iludam, senhores e senhoras! Esses cidadãos e essas cidadãs, corajosos e destemidos, não ficam tristes, infelizes, quando no final do mês veem seus minguados salários. Eles e elas sabem que terão que apertar sempre mais e mais o orçamento para poderem sorrir para seus alunos, para seus colegas e para si mesmos. Longe de serem infelizes, esses Senhores e essas senhoras destemidos são conscientes de sua missão, e é por isso que invadem também as ruas, as praças nos fins de semanas sem descansarem. Estão sempre em busca de algo mais que possa melhorar-lhe o ganho mensal, pois também precisam de ter motivos outros para sorrir, porque sabem que “tudo vale a pena, quando a alma não é pequena”.

(Professor Alves, maio de 2014)

segunda-feira, 19 de maio de 2014

TEXTOS E CONTEXTOS (Blog do Professor Alves): DE SONHOS E DE CAIXAS

TEXTOS E CONTEXTOS (Blog do Professor Alves): DE SONHOS E DE CAIXAS: http://1.bp.blogspot.com/-4qr248_rzCg/Tl2o3qpdkDI/AAAAAAAABJY/YKMnfSDjieA/s1600/Fatos+surpreendentes+sobre+snhos.jpg Em cima do gua...

DE SONHOS E DE CAIXAS


http://1.bp.blogspot.com/-4qr248_rzCg/Tl2o3qpdkDI/AAAAAAAABJY/YKMnfSDjieA/s1600/Fatos+surpreendentes+sobre+snhos.jpg


Em cima do guarda-roupa há uma caixa
Nessa caixa um monte de cadernos
Nesses cadernos estão meus sonhos
Nesses sonhos meus desejos
Nesses desejos, a vida
Nessa vida meus desejos
Desejos que refletem meus sonhos
Sonhos que os pus em cadernos
Esses cadernos, pu-los dentro de uma caixa
Que  pus em cima do guarda-roupa

E hoje miro, os meus sonhos que não voaram
Que permanecem comigo,
Juntinhos de mim, num trânsito infinito
Entre a caixa em cima do guarda-roupa
E mim, e minha mente, e minhas ações

Alguns já envelheceram, se aposentaram
Outros nascem todos os dias
Brincam com os avós,
Os avós lhes dão conselhos:
“Não envelheçam, busquem voar,
Ir para longe, se realizar,
Pois só os sonhos que não correm
Que não voam, envelhecem, se aposentam...”
Mas os sonhos netos,
São crianças, são teimosos
Amam os sonhos avós
Não os querem abandonar

Assim a família cresce
Família de sonhos
Gerações que se sucedem
Que são felizes, por não fugirem
Ficam perto de mim,
Juntos de mim
Vou então transportando-os para cadernos
Para livros que escrevo
Que não publico
E assim vão para a caixa
A caixa em cima do guarda-roupa!
(Francisco Alves, maio de 2014)

sexta-feira, 16 de maio de 2014

DAS COISAS E DAS MUDANÇAS


Libetas quae sera tamem!
Das coisas e das mudanças, há três tipos. Aquelas que não podem mudar; as que podem, mas não devem mudar; as que devem mudar e não mudam.
No primeiro caso, está o guarda-chuva. Imaginem um guarda-chuva com a concavidade para cima! Ia ser um destroço total. A água se acumularia, o peso aumentaria a tal ponto que o indivíduo não iria suportar. E se suportasse a água iria transbordar. Desastre total. Definitivamente o guarda-chuva não pode mudar.
No segundo caso temos os nomes de ruas, de cidades, de países. Não devem mudar porque se fixam na cultura e na memória das pessoas. Quando mudam causam transtorno. Um exemplo mais significativo aqui em Fortaleza foi a mudança do nome da Avenida Estados Unidos para Senador Virgílio Távora. Imagine o transtorno que foi para a população que conhecia a avenida com o primeiro nome! Com o tempo se acostuma. Mas não deveria ter mudado. Nome de países, então! Confundem a cabeça dos estudantes, pois dá a impressão de que há mais Estados do que existe na realidade. Lembremos a cidade de São Petersburgo, na Rússia, que passou para  Petrogrado, depois mudou para Leningrado e voltou a ser São Petersburgo. Que confusão. E quando as ruas homenageiam personalidades e depois mudam para homenagear outra. Aí a confusão é maior, pois dá a ideia de que o homenageado perdeu a personalidade.
Por último temos as que devem mudar e não mudam. A embalagem do Redoxon, aquele efervescente da Bayer recomendado para gripe ou para seu combate. Aquela embalagenzinha cilíndrica, com a mesma espessura do comprimido, que fica, coitado, comprimido, rezando para ser liberto. Coitado também do usuário, que precisamos ficar batendo o cilindro na mão até aparecer o papel prateado, onde está escondido o remédio, e o pior é que às vezes caem todos no chão. Isso deve mudar, mas não muda.
Outra coisa que deveria mudar, mas não muda é a sala de aula, a aula e a própria educação. Ninguém aguenta tanto tempo essa mesmice. Professor, alunos enfileirados, quadro, cuspe e pincel. Alguém pode dizer: “ah, mas antes era giz!”. Sim mais o cuspe é o mesmo, e o pincel faz o mesmo papel do giz, com exceção do pó. É preciso, urge que a Educação se modifique. Não apenas com parelhos eletrônicos ou informáticos, mas em toda sua essência. Professores devem se transformar realmente em orientadores, mas profundos conhecedores daquilo que orientam; estudantes, em pesquisadores, ouvintes de palestras, buscadores de conhecimentos. Os conhecimentos por sua vez devem mudar e serem utilidades em vez de meros enxertos de livro e cadernos. Estes últimos precisam se transformar em chips, pois não é mais admissível em pleno século XXI, perdão 21, cortarem-se árvores, florestas inteiras para transformá-las em material didático. Por fim as salas de aula também precisam mudar e serem transformadas em verdadeiras salas de estudo.
Infelizmente essas mudanças que devem ocorrer não serão feitas enquanto o homem, principal agente da mudança, não se transformar. Enquanto continuarem visando ao lucro, a interesses particulares e políticos, não haverá coragem para se dizer “basta de enganação, a quem estamos ensinando e o que estamos fingindo que ensinamos, sabemos por acaso que isso não funciona, vamos parar com essa farsa chamada Escola!”. É preciso essa coragem para que realmente haja transformação social, desalienação, libertação. É preciso coragem para se fazer do ato de aprender aquilo que Paulo Freire veio nos ensinar: AUTONOMIA!
(Francisco Alves, maio de 2014)

NA ESCURIDÃO MISERÁVEL

FERNANDO SABINO  “Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o m...