terça-feira, 25 de agosto de 2009

SONETO PARA LARISSA - CONTINUAÇÃO

CAPÍTULO IX

“Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado.”
O dia da criação)


Era domingo e Larissa havia acabado de passar a limpo seus cadernos da semana. Era assim que ela estudava: durante a semana todas as anotações e resolução de exercícios eram feitas em borrões, no final de semana ela passava tudo a limpo, lembrando as palavras e as orientações dos professores; assim ela via a mesma matéria e resolvia os mesmos exercícios duas vezes, esse era o principal motivo de suas boas notas. As colegas, como não a viam constantemente com os cadernos e livros nas mãos, estranhavam suas ótimas notas. Depois de guardar todo o material de estudo e deixar o quarto em ordem, foi para o computador. Naquele dia acordara realmente cedo, bem mais cedo do que nos outros domingos. Era a primeira vez que ia ao cinema com o namorado. A mãe já remexia na cozinha desde cedo. Havia uma encomenda para um grande bufê com o qual a mãe firmara recentemente um contrato bem rentável. Os negócios estavam realmente indo de vento em popa.
Depois do almoço, Ígor passou para pegá-la e os dois foram para o passeio. Dona Fernanda deu um suspiro ao ver a filha bem, com a auto estima em alta.
O filme era um sucesso internacional, não havia no mundo ocidental ninguém que não ouvira falar em Harry Potter, mas o casal não conseguia sequer se concentrar na película, os olhos viam meninos e meninas voando em vassouras, objetos que se despregavam do chão, bruxos bons e maus, no entanto seus sentidos estavam voltados um para o outro, a variação da respiração dele não passava despercebido a ela e vice- versa, as mãos apesar do ar condicionado suavam. Vez por outra trocavam um beijo mais demorado e os olhos, acostumados ao escuro, se fitavam e um sorriso nos lábios era a comunicação suficiente.
Terminada a exibição, os dois foram à lanchonete. Comeram sanduíche, batatas fritas e tomaram refrigerante. A menina fez questão de pagar pelo seu lanche como o fizera com o ingresso no cinema. Queria deixar claro ao garoto o tipo de relação que pretendia, uma relação sadia, independente, sem ônus de nenhuma natureza para um e outro.
De volta ao condomínio, depois de trocarem algumas palavras com os amigos, foram para a casa do garoto, cujos pais estavam ausente e só chegariam depois das dez. Ficaram na sala entre arrulhos e carícias. O desejo transbordava-lhes pelos poros, e pela primeira vez eles falaram em sexo:
─ Quando é que você acha que estaremos prontos para... cê sabe. – começou ele meio sem jeito.
─ Eu acho até que já estamos – falou com mais segurança a menina – mas eu acho também que devemos planejar. Porque será a minha primeira vez e eu quero que seja mágico, que tenha flores e principalmente muito carinho.
─ Tá bom, vamos com calma, vamos alimentar a idéia para que seja algo realmente maravilhoso. – e se fundiram num abraço terno.

Quando Larissa chegou a casa, faltava pouco para as dez da noite. Grande foi sua surpresa ao ver o pai esparramado na rede como se dali nunca tivesse saído.
─ O que significa isso, o que ele tá fazendo aqui!? – perguntou atônita para a mãe que vinha da cozinha, trazendo numa mão um pano de prato e na outra uma tigela com doce de leite, que entregou ao marido.
─ Oi minha filha. Não vai dar um abraço no papai – disse o homem naturalmente.
─ Como – impacientou-se Larissa – cê vai embora, some, leva o carro, a gente fica aqui no maior mico, depois cê volta como se nada tivesse acontecido!
─ Lissa, não fale assim com seu pai – interrompeu a mãe, com uma voz resignada.
─ Deixa Fê, ela tá surpresa – interveio o marido pródigo, com intimidade – eu explico minha filha. E, pegando delicadamente Larissa pelo braço, fê-la sentar-se e contou o que havia acontecido. Narrou que saíra de casa porque estava se sentindo humilhado por não ter um emprego e não agüentar mais as pessoas cochichando umas com as outras sempre que o viam. Ausente de casa, durante um mês bebeu sem parar. Até que, sem dinheiro, vendeu o carro, e continuou uma farra atrás da outra, como se estivesse dominado por forças malignas. Nesse ponto da narrativa, passou as mãos pelos olhos como a limpar uma lágrima, que teimava em não cair. Continuou dizendo que, nessa altura do campeonato, já estava novamente sem nenhum tostão, foi quando encontrou um amigo de infância, “um anjo enviado por Deus”, que trabalha numa empresa de ônibus. O cara ficou tão consternado com sua situação que resolveu ajudá-lo. Três dias depois, de barba feita e aspecto renovado, era conduzido pelo amigo à presença do inspetor da empresa de ônibus onde o amigo trabalhava. Como havia uma vaga e os apelos do amigo foram incisivos, apesar da falta de experiência, ele ficara com o emprego. Em seguida falou de sua tristeza e de seus anseios para recuperar a família. Aos poucos foi se reaproximando de Dona Fernanda, “que não falou nada para você ter uma surpresa”, e agora estava ali “junto às pessoas a quem nunca deveria ter abandonado”.
─ Agora, minha filha, eu sou um novo homem – concluiu o pai soluçando bastante.
Larissa foi para o quarto sem tomar banho. Lá, trancou-se para tentar digerir aquela história. Em seu peito acasalavam-se dois sentimentos paradoxais. Um profundo remorso por desprezar no íntimo, tão violentamente, aquele que lhe permitira estar no mundo e uma dúvida lancinante despertada pelo seu sexto sentido. Ele lhe avisava que aquela história não iria acabar bem, dizia-lhe que as palavras do pai não deveriam convencê-la. No entanto havia a mãe, esta já crera na história do marido, por ingenuidade, necessidade e/ou submissão. “É incrível – pensou – como as mulheres caem facilmente na lábia dos homens”. Compreendia as necessidades da mãe e imaginava o quanto ela sofrera a falta de um calor masculino na cama. Sabia também que, pela criação austera que tivera, possivelmente não admitiria outro homem tocando seu corpo. Como era ridícula aquela dependência aos costumes, que exerciam tanto poder sobre a mãe. E lembrou os versos do tio:

Pronta a amar, augusto, a quem aprouver,
Ó impudente luz de dourada beleza.


Era assim que uma mulher deve ser, um ente livre para amar a quem lhe der realmente prazer, a quem lhe aprouver. A mãe com certeza deveria ser muito infeliz. Pensou no namorado e prometeu jamais agir como a mãe, ela saberia ser independente, ela seria uma mulher feliz. Lembrou-se de um poema que lera numa coletânea da biblioteca da escola. Levantou-se rapidamente da cama, pegou o caderno onde o havia copiado e o leu:




SONETO DA FÊMEA VII

Cuidado, meu amigo, mais cuidado.
Não exponhas teu ser às suas flechas:
A mulher, fonte e abismo, barro e nuvem,
É uma serva – quando desejante;

Uma tirana – quando desejada.
Ora pousa, ora flana indecidida.
Quer se doar: por tática se nega;
Quer se negar: por ímpeto se doa.

E se abandona sem nenhum recato
E te abandona sem nenhum remorso.
Não quer ser objeto mas se enfeita;

Luta por ser sujeito mas se entrega.
Nem anjo é mais suave quando ama;
Nem fera é mais cruel depois de amar.
(PEDRO LIRA)

Os versos em ordem direta e objetivos a encantavam pela definição antitética da mulher presente neles. Mas onde estaria essa fêmea descrita pelo poeta? – pensava – a mãe não era assim, as tias também não. Mas com certeza ela o seria, homem nenhum a faria sofrer, não pretendia ser o carrasco dessa raça, mas não se permitiria ser um mero joguete do suposto sexo forte, que não passa, entretanto, de aproveitador. É isso que a maioria dos homens é, parasita da sensibilidade e da força feminina. Perdida nesses pensamentos, adormeceu. Em seus sonhos figuras de homens e de mulheres se confundiam e se fundiam numa só, a imagem da mãe aparecia banhada em lágrimas, com o avental incrustado de gordura e a pele totalmente enrugada.





















CAPÍTULO X

“Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à idéia dos
[ meus.”
(A Ausente)



Passado um mês do retorno do pai, a vida na casa de Larissa transcorria normalmente. Com seu salário, como não havia necessidade de ele entrar no orçamento familiar, o pai comprou alguns móveis novos, trocou o piso da cozinha, enfim gastou-o todo em casa. Aos poucos Larissa foi-se convencendo de que fora muito dura com ele, mas apesar disso não conseguia perdoá-lhe de todo, pois as lembranças do sofrimento da mãe ainda estavam muito frescas.
O ano de 2003 foi-se, deixando algumas reflexões para nossa personagem, principalmente a de que existem momentos bons e ruins e que temos que ter paciência para superarmos os maus momentos e cabeça fria para aproveitarmos os bons. A festa de confraternização de fim de ano foi realizada numa casa de praia alugada em conjunto pelos familiares. Lá estavam mais de dezesseis pessoas entre tios e primos. Os avós maternos não estavam lá por nojo, devido ao passamento de um parente distante. Nesses dias o pai de Larissa não bebeu e pela primeira vez, desde muitos anos, não deu nenhum vexame. Felicíssima quem estava era dona Fernanda, vendo a filha ao lado de um garoto tão interessante e educado quanto Ígor, o marido com um copo de coca-cola na mão, para cima e para baixo, enquanto os outros homens da família se esbaldavam na cerveja e no uísque. Quase à meia noite o celular do namorado de Larissa tocou, mas ele não atendeu. Ignorou a chamada e disse que eram uns amigos chatos querendo pegar no pé. No entanto essa justificativa não a convenceu, que, instigada pelo senso feminino, captava algo de suspeito no ar. Daí a pouco ele se retirou para ir ao banheiro. Larissa sentiu pela primeira vez ciúme, e o pior era que o alarme disparado não parava um instante. Naquele momento ecoou pela praia inteira o barulho dos primeiros fogos, que se repetiu num espetáculo de luzes, cores até uma da manhã. Todos se dirigiram para a praia e lá amanheceriam, a maioria estava vestida de branco para saudar o ano entrante, outros entravam de costas no mar, para dar sorte.
Já ia manhã alta, quando se preparava para ir à praia, Larissa viu sobre a mesa o celular do namorado, que ainda dormia. As mãos tremeram. Pegava-o ou não. Depois de um terrível conflito interior, ela se desfez do pudor para se desfazer de uma dúvida com que encafifara. Pegou o aparelho e procurou a chamada não atendida do dia anterior. Lá estava, às onze e trinta, era a última, a que ele ignorara. Em seguida foi até a última chamada efetuada, pouco tempo depois, era o mesmo número. Ela ficou indignada, colocou o telefone sobre a mesa, hesitou, pegou-o novamente e anotou o número na palma da mão, na seqüência entrou no banheiro e chamou. Do outro lado da linha uma voz feminina atendeu. Ela desligou e foi tomar banho. Não podia deixar que o namorado percebesse que bisbilhotara seu telefone. Na volta para o condomínio procuraria saber de quem era aquela voz.

Com efeito, Vivi não esquecera o juramento interior de desfazer o namoro entre Vanessa e Ígor, o qual fizera para si. Sempre que via os dois juntos, remoía-se por dentro. À noite sonhava com a menina e muitas vezes, tarde da noite, despertava sacudida pela lubricidade. Há muito não tocava nos livros, as notas, que nunca foram lá essas coisas, definhavam rumo a uma reprovação. A mãe não tomava conhecimento do que acontecia à filha. Trabalhava fora de segunda a sábado e no pouco tempo que lhe restava saía com as amigas para “as baladas, pois afinal ninguém é de ferro, além do mais, não falta nada para minha filha. Tudo que ela quer eu dou”. Quando a diretora pedagógica da escola convidava-a a participar de uma reunião, a resposta era sempre a mesma: “Não tenho tempo para isso”. O pai morava em são Paulo. Há três anos não vinha a Fortaleza, mas se orgulhava entre os amigos por ter “uma linda filha em Fortaleza a quem não deixo faltar nada, e além do mais, ela já é uma moça”.
Viviane ainda era uma garotinha de dez anos, quando os pais se separaram. Ela foi morar com a madrinha, devido a uma crise emocional muito forte que a mãe tivera, a ponto de tentar o suicídio. A madrinha era solteira, morava só e adorava a afilhada. Prontificou-se logo a cuidar de Viviane enquanto a mãe se recuperasse. Os cuidados, no entanto, beiravam o exagero. Às noites, quando a menina dormia, ela ia até seu quarto e deitava ao seu lado, beijava-a, a princípio no rosto, nos braços, com o tempo, passou a beijá-la na boca. Muitas vezes a menina acordava sufocada, mas ela não parava com os gestos insanos. Do susto, Viviane passou a aceitação. Depois passou a gostar daquilo e espontaneamente ia à cama da madrinha reclamar as carícias da outra. Quando voltou para casa, depois de a mãe ter-se recuperado, passou a sentir falta, por isso nos finais de semana pedia para dormir na casa da madrinha, a mãe longe de ter ciúmes da filha, via naquela união uma forma de estar livre para refazer sua vida. Assim, Vivi fez doze anos nos braços daquela que deveria ser sua guia espiritual. Foi numa dessas sessões de carícias que ela teve sua primeira menstruação. Sua grande tristeza, bem maior que a separação dos pais, foi a morte da amante, numa tentativa de um assalto a banco. A madrinha desesperada ficara entre o fogo cruzado, como notificara a imprensa, e até hoje ninguém sabe de onde partiu o projétil que a matou, se dos bandidos ou da polícia. A garota sofreu muito com a historia, mas se recuperou depois de algumas sessões com um analista. A mãe, depois do ocorrido, tentou se aproximar um pouco mais da filha, debalde. A figura representada pela madrinha era totalmente insubstituível e ela criou seu próprio modo de ser. Alguns garotos se aproximaram dela, mas ela sentia nojo, o cheiro, a voz, a textura da pele não lhe agradavam. Por outro lado, sentia-se excitada diante de uma figura feminina, principalmente se lhe lembrasse àquela que lhe levara à pia batismal. E Larissa, para sua infelicidade, estava dentro desse perfil: magra, alta, cabelos negros e olhos castanhos, lábios grossos e úmidos; estando de xorte ou calça apertada dava para perceber a saliência que formava seu sexo, como a madrinha. Portanto desde a primeira vez que a vira, Vivi associou sua imagem à da outra. Daí a origem de seu desejo pela menina.
Quando viu Larissa e Ígor juntos, como namorados, ela começou a traçar um plano. Conhecia muito bem o instinto libidinoso que existe na mente dos garotos, mesmo nos mais quietinhos. Estava acostumada a que os primos se esfregassem nela, motivados pelos pais. Ela os afastava com um tapa acompanhado de palavrões, e a cena, constrangedora para si, era motivo de riso para todos. Sabia também que os pais, com medo de que os filhos virem bicha, instigam-nos à prática do onanismo, antes de os levar a um prostíbulo “para tirar o cabaço”. Essa prática amiúde deixa os homens dependente do sexo. Diferente do universo feminino, em que já no século XXI essa prática, na maioria dos casos, é desencorajada, resultado, é claro, de milhares de anos de dominação masculina.
Foi por essa época que Camila veio morar no apartamento embaixo do seu, era uma negra de olhos grandes, seios fartos, e lábios grossos. Camila transbordava sensualidade por todos os poros, suas nádegas sempre cobertas por minúscula saia, de onde saía um torneado par de pernas, deixavam os homens boquiabertos. Ela, é claro, despertou também os desejos de Viviane, que, entretanto, teve de adormecê-los em prol do seu plano. Do alto de seus dezenove anos, Camila morava com mais três colegas, e não estranhou quando aquela menina de quinze anos adentrou seu apartamento, elogiou suas formas e lhe falou de Ígor. Quando se leva aquele tipo de vida, tudo se torna perfeitamente previsível. vivi tinha dinheiro e lhe pagaria para que ela seduzisse o jovem. A primeira investida da moça ocorreu num fim de tarde. Vivi se encarregou de apresentá-la ao garoto. Como suas preferências eram desconhecidas de todos, menos de Larissa, o rapaz não desconfiou de nada e, conforme Jéssica imaginara, ficou tarado diante das protuberâncias da mariposa. Com certeza ela mexera com ele. Gritaram no seu interior todas as taras guardadas em seu mapa genético, advindas do atavismo biológico. Ele não se deixou abalar a princípio, mas as insistências se tornaram amiúde e ele cedeu, coitado. Viviane inteligentemente sabia que uma piada de algum amigo seria incisiva, pois se há uma coisa que os homens não toleram é que alguém lhe chame de “mole”. Assim ela tornou Rodrigo, amigo de Ígor, sabedor de que Camila tinha convidado o rapaz para passar à tarde com ela e ele não aceitara. Foi a gota d’água. Quando os colegas começaram a comentar, à boca pequena, sobre a recusa do garoto, a insinuá-lo bicha, ele foi à casa de Camila. Pronto! O plano não poderia estar dando mais certo.
Por isso na noite de fim de ano ela, Camila, ligou para ele, que ignorou e depois retornou a ligação, conforme já sabemos. Nesse telefonema ele pedira para ela não mais procurá-lo, pois não queria perder a namorada e coisas assim. Mas a garota fê-lo prometer que ele iria pela derradeira vez ao seu apartamento, caso contrário “sua namoradinha vai ficar sabendo de tudo”. Sem saída o moço teve de prometer que iria lá pela última vez quando voltasse à capital.

Nenhum comentário:

NA ESCURIDÃO MISERÁVEL

FERNANDO SABINO  “Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o m...