segunda-feira, 7 de setembro de 2009

SONETO PARA LARISSA

CAPÍTULO XIII

“Ó vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres,
Que só articulais para emitir conceitos...”
(Carta aos Puros)



Seu aniversário de quatorze anos foi comemorado no interior, na casa dos avós. Na verdade ela não via clima para comemoração, mas a mãe insistiu tanto que ela cedeu. No entanto o argumento mais forte foi a saudade dos avós, que não a viam há quase um ano. Como a mãe não pôde viajar, ela aproveitou uma carona com um tio às vésperas do aniversário, para não deixar a mãe por muito tempo só. Foi assim que aportou em sua cidade totalmente diferente de quando saíra. Os comentários na rua eram um só:
─ Nossa como essa menina tá grande. Dizia uma vizinha da avó.
─ Mas tá uma moça, como cresceu. Espantava-se uma tia-avó.
À noite fora reencontrar na praça da matriz as antigas companheiras. Foi um momento de angustiante constrangimento, pois ninguém ali tinha a ver com ela, e nem ela tinha a ver com alguém, por isso as longas conversas imaginadas por Larissa resumiram-se a alguns monossílabos sem continuidade. Tentavam reiniciar antigos diálogos que logo perdiam seu fio e o silêncio era o senhor na maior do parte do tempo. Conformou-se em sentar à mesa com os avós e alguns tios para ouvir uma música cujos acordes não condiziam com seu espírito jovem, apesar de reflexivo.

De volta a casa, encontrou a mãe cabisbaixa, mais compungida do que quando a deixou. Era que o pai tornara a falar sobre ela deixar os salgados, voltara também a chegar bêbado. A menina resolveu ter uma conversa séria com a mãe.
─ Mãe, você não pode passar a vida assim, você é nova, poderá encontrar alguém que a respeite. Ou não precisará encontrar ninguém. Nós mulheres somos fortes, somos donas de nossos corpos, de nossos sentimentos. Os homens é que são nervosos, pobres coitados, escravos do sexo e de outros vícios. – Nesse momento ela pensou em Ígor e teve saudades – Se você deixar esse homem que se diz seu marido e meu pai, não vai sentir nenhuma falta, cê hoje é independente, não precisa mais ter vergonha do vô nem de ninguém por não ter marido. Nada Pode ser pior do que como está! mãe, pensa.
Foi grande o efeito que essas palavras causaram no espírito de dona Fernanda. Como se ela estivesse esperando alguém mais forte que ela para resolver pela separação definitiva, como se sua fortaleza estivesse fragilizada, precisando de um retoque de concreto para não tombar de vez. E foi assim que pegou uma bolsa e dentro colocou todos os pertences do marido, poucos, pois ele não comprava roupa por não ter o hábito de trocá-las amiúde, colocou-a na sala para que ele a encontrasse logo que entrasse. Quando o marido chegou, ele tirou a blusa para fora da calça e deu aquele suspiro de Hércules após os doze trabalhos, Dona Fernanda, perto da filha para unir suas energias, anunciou sua decisão, apontando para a bolsa no canto da parede. Não esperou muito porque temia que a figura autoritária do marido dominasse seu íntimo e ela acabasse voltando atrás. Ele que se sentia absoluto principalmente naqueles últimos dias, pois sabia que era só uma questão de tempo e teria suas vontades realizadas, quedou-se numa atitude de desespero.
─ Mas pra onde eu vou? Vocês são minha família, eu não tenho mais ninguém no mundo. – E forçou o rosto num espasmo como se fosse se desmanchar em lágrimas que não saíram. Foi Larissa que não atendendo aos apelos da mãe retomou:
─ Que família pai... – Naquele momento sofreou as palavras, é que esse nome travou-lhe a boca com um gosto terrivelmente amargo, há tempos ela não lhe dirigia a palavra e fazê-lo naquelas circunstâncias lhe foi deveras difícil. – Que família pai – continuou – Isto aqui nunca foi uma família, no máximo o que somos são três pessoas dentro de um apartamento, sem nenhuma ou quase nenhuma ligação sentimental, senão medo, vergonha.
─ Não é verdade, minha filha eu... – o facínora tentou continuar o teatro, mas foi interrompido por Dona Fernanda.
─ Não vamos mais discutir. Pegue a bolsa e vá, se houver mais alguma coisa você vem pegar depois.
O homem então se levantou, pegou a bolsa e saiu, pois viu naquela idéia de pegar o restante das coisas uma boa ocasião para voltar a casa. Como tinha uma cópia das chaves, poderia voltar um dia à noite, e saiu. Mãe e filha se abraçaram e ficaram por muito tempo em silêncio.
No dia seguinte, a primeira decisão de dona Fernanda foi trocar as fechaduras da porta e do portão, depois lavou a casa como para desinfetá-la, foi ao cabeleireiro e a manicura, e a filha estava radiante com aquelas atitudes. Agora elas começariam realmente uma nova vida. Larissa agora poderia se preocupar com sua própria vida. É claro que não poderia se desligar da mãe, pois ainda era cedo e tinha medo de uma recaída.




CAPÍTULO XIV

“Ó vós, homens de sigla; ó vós, homens de cifra
Falsos chimangos, calabares, sinicuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.”
(Carata aos Puros)



No entanto só as crônicas de machismo desse condomínio, palco da nossa história, dariam uma biblioteca. Às vezes cômicas outras trágicas, elas vão-se acumulando na memória das pessoas ávidas por algo que lhes preencha o tempo. No geral são motivos de riso nas mesas de bares e de constrangimento para as personagens envolvidas nelas. Vamos a algumas para ilustrar essa nossa narrativa.

Seu Arlindo era um técnico em eletrônica. Um técnico não, perdoem-me, era o técnico em eletrônica. Isso nas décadas de setenta e oitenta. Não havia marca de rádio e tevê que ele não conhecesse a fundo. Vinham pessoas de todo canto da cidade para consultar seus aparelhos com ele. Se você tivesse um aparelho com defeito, fosse Telefunquem, Semp, GE, Panacolor, ele era o cara que iria resolver o problema. Tinha na garagem dois carros, além de uma moto para os passeios solitários. A mulher pouco o via, pois quando ele não estava na oficina só se poderia encontrá-lo nas melhores churrascarias da cidade. Sempre acompanhado de uma “moça” diferente, orgulhava-se de não faltar nada em casa e de ter clientes para financiar suas farras. A mulher apesar de seu humilde trabalho de faxineira do banco Itaú, deveria estar em casa quando ele resolvesse tornar a ela.
E assim seu Arlindo, quarenta anos “bem vividos”, não procurou saber das novidades tecnológicas que estavam chegando ao mercado, tampouco tinha tempo para isso, preocupado com suas carraspanas homéricas regadas a colo de mulher. Os clientes foram rareando sem que ele percebesse os motivos. Gradativamente foi diminuindo seu padrão de vida, mas o vício não lhe permitia que ele se desse conta disso. Até que depois de vender o último objeto fálico, a moto, e sem ter mais clientes que lhe patrocinassem a vida, viu-se, aos sessenta anos, preso no próprio apartamento, assistindo à tevê ao lado da mulher. A oficina não lhe rende nada além de alguns trocados os quais deixa num boteco que há nas proximidades. A mulher com seu humilde salário de faxineira é quem mantém a casa. Essa história é conhecida de todos, mas não serve de lição, pois continua se repetindo dia após dias, e logo são registradas nos anais do condomínio. Nosso amigo Cleiton, referido no episódio da falta de água, sempre atento, registra-as em cordéis que são consumidos aos montes pelos distintos moradores. Que riem e não sabem muitas vezes que serão os próximos a renderem idéias para nosso poeta de plantão.

Vamos a outra história. Reginaldo casou-se e sua primeira empresa foi desencorajar a mulher a trabalhar. Missão cumprida com facilidade, pois, apaixonada e grávida, a mulher compreendeu que sua vida seria cuidar da família. Advindo de uma família machista, pois se criara ouvindo o pai gritar do banheiro, “mulher o sabonete, mulher a toalha, mulher a cueca...” Reginaldo compreendia que o sexo oposto nascera para servir ao homem e não para compartilhar bons e maus momentos com ele.
Aos finais de semana, depois de chegar do trabalho, sentava-se na poltrona e repetia o discurso aprendido com o pai:
─ Helena, traz um uisquinho. – Depois – Helena, uma azeitoninha.
E ia por aí. Entrar na cozinha só se fosse para acompanhar o moço da entrega do gás para vê-lo instalar o botijão. Era feliz por ter sempre à mão as meias e cuecas limpas. A esposa, até onde lhe permitia o conhecimento de prazer, era feliz. Nossa personagem se orgulhava de ser garanhão. Era um pega aqui outro ali que não tinha fim. Se era verdade ou não os amigos nunca iriam saber. Era tanta história, que Sérgio, um homem pacato e fiel, sentiu-se no direito de também dar uma escapadela, mas sentiu-se tão constrangido pela fraqueza que ao chegar a casa, depois do fato consumado, contou tudo para a esposa e pediu-lhe perdão. É, toda regra tem exceção, com exceção de algumas regras.
Um dia Reginaldo cansou da esposa e foi embora de casa, disposto a mar outras que possivelmente o aguardavam de braços abertos e prontas a satisfazerem seus ímpetos bestiais. Foi por essa época que veio morar nesse emaranhado de pedra e cal, nesse mundo de pessoas igualmente diferentes, nessa promiscuidade de seres e de idéias que chamamos condomínio. Foi aqui que conheceu Marielva, uma mulher cujo nome não saía da boca das matildes e cujos lábios não tinham dono, eram de quem lhe aprouvesse. A paixão tira o juízo de qualquer um e o amor sucumbe todos os sentidos. Apaixonado pelo corpo e pela alma da desajuizada, nosso amigo submeteu-se aos caprichos da amásia, e hoje quando ela chega, tarde da noite, não se sabe de onde, a comida está quente dentro ainda do microondas e ele dorme ao lado de uma garrafa de uísque e uma foto da amada. A vida é assim: um eterno toma lá da cá, aqui se faz aqui se paga.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

SONETO PARA LARISSA


CAPÍTULO XI



“De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.”
(Soneto de Separação)



Larissa procurava de todas as formas não revelar suas suspeitas. E o conseguia, como sempre fazem as mulheres quando precisam dissimular algo. Elas riem com facilidade, simulam naturalidade quando a situação é de total desespero, choram, se a situação o exigir, quando têm vontade de rir e enganam um companheiro até enquanto querem. São bobos os homens que pensam traírem às mulheres. Coitados, desde o primeiro momento em que eles se veem enrabichados por outra, elas o sabem. Eles não têm controle sobre seus sentimentos, suas atitudes são denunciadoras do que vai no seu íntimo. Já elas não. Discriminadas desde cedo, são obrigadas a encobrirem seus desânimos diante da vida. Aos domingos, enquanto o pai leva o filho para o estádio, a filha vai para a pia lavar os pratos. Esse desprezo implícito leva-as a criar uma couraça sobre uma alma abalada, que aos poucos se tona resistente como uma rocha. É essa couraça que se vê durante toda sua existência. Quando um casal se separa, por exemplo, quem vai para o bar refletir suas amarguras? O homem. Quem fica em casa preocupada em reedificar o lar, para que os filhos não sofram? A mulher. Quem primeiro reorganiza seu modo de vida sem derramar uma lágrima em público? A mulher. Quem volta para casa, como um cachorro, com o rabo entre as pernas? O homem. Certa vez, caro leitor e cara leitora, um homem de estatura e compleição consideráveis, que mais lembrava o Rambo, contou-me, à beira-mar, onde exibia sua máscula figura, que saíra de casa três vezes, cada uma encantado por uma nova conquista. E em todas as vezes que tornara a casa, a esposa o recebera, com as mãos cheias de perdão (como diria Vinícius de Morais). Até que um dia ela o chamou para uma pizzaria e lá lhe disse que não dava mais, o casamento chegara, enfim, ao fim. Nesse momento eu notei que as lágrimas escorriam pelo rosto do brutamontes, que, de cabeça baixa, arrematou: “Naquele momento eu percebi que não tinha volta, ela falara com convicção e eu senti o chão se abrir sob meus pés. Três meses depois quando eu ainda afogava as mágoas, criadas por mim, entre um copo e outro de cerveja, ela já arquivara seu passado e tomava novo curso... inclusive com um novo companheiro.”.

Foi assim que nossa personagem sem deixar transparecer iniciou e concluiu suas investigações sobre a moça do telefonema misterioso. Apesar da frieza com que conduzira suas ações, não percebeu que Vivi facilitava-lhe a vida. Sempre que estava com Camila, sem que esta notasse, Vivi ligava para Ígor e depois desligava. Isso ocorria sempre que ela sabia da presença de Larissa ao lado do rapaz. Sentindo-se pressionado, Ígor resolveu dar descaminho naquela situação e foi ter com Camila. Era uma tarde em que Larissa não estava no condomínio. Sua vontade por sexo não lhe permitiu que ele deixasse a situação passar em branco. Vivi deu um xeque mate na situação, pedindo para que uma amiga ligasse para Larissa para adiantar sua volta e fazê-la flagrar o rapaz na saída do apartamento da cocote.
Deu-se o desmastreio. Não adiantaram as tentativas de explicações de Ígor. Até porque não havia explicação plausível para a situação. Feito um louco o rapaz lamentava, pedia desculpas e dizia-se vítima de uma armação, ou por intuição ou por defesa, ele o afirmava quase aos gritos. Larissa, engolindo a vontade de chorar, deixou-o a sós e foi para casa. Naquele dia não quis conversa com nada nem com ninguém. Desligou o celular e sucumbiu numa reflexão intensa. Não entendia o namorado por que ele ficara com ela se pretendia ter outra; sabia das necessidades dele e conhecia por alto os caminhos trilhados por Camila, mas a vida da outra nunca lhe interessara, por fim agora estava tudo acabado. Como acreditar nos homens, se aquele era um exemplo de conduta, nunca lhe prometera com palavras não a trair, mas sabia que no seu íntimo fazia essa promessa a si. Não estavam os dois combinados de fazerem a entrega mútua, seria mágico o momento em que ambos se conheceriam de forma completa. Agora estava tudo acabado! E a menina jurava mais uma vez para si que não seria como a mãe. Nesse momento lembrou-se de Vivi, dos olhares que ela lhe dirigia e lembrou-lhe a noite de seu aniversário. Sua cabeça era um mar de confusão. Só tinha uma certeza: não olharia nunca mais nos olhos do ex-namorado, nem jamais confiaria em homem nenhum.



CAPÍTULO XII

“Meus olhos escancarados
De medo e negra friagem
Eram buracos na treva
totalmente impenetrável.”
(Balada Negra)





Para aumentarem ainda mais suas decepções o pai voltara a beber. “É só um pouquinho, quando ele deixa a garagem, a final passar o dia inteiro ouvindo o barulho daquele motor, ninguém é de ferro.” Justificava a mãe. Só que a partir daí ele começou uma nova lengalenga. Insistia que não havia necessidade mais daquela “oficina de salgados”, que estava ganhando bem e em breve compraria um ônibus para no futuro ter sua própria frota. À medida que a insistência aumentava o cheiro de bebida ficava mais forte. Dona Fernanda não sabia mais o que fazer diante da situação. Quando o marido chegava, a primeira coisa de que reclamava era do cheiro de salgado, e começava o falatório:
─ O que as pessoas vão dizer? Que eu não consigo manter minha família. Todos os meus colegas se orgulham de suas mulheres não trabalharem, de chegarem em casa e encontrarem elas limpinhas, cheirosinhas.
E enfiava um discurso machista atrás do outro, até que, quando achava suficiente, que estava conseguindo sensibilizar “os entes queridos”, calava, para não dizer mais palavra. Não tomava banho, como sempre ocorria quando bebia, deitava na rede e roncava à noite toda. Para Larissa era um transtorno perceber que a história da sua mãe não tinha cura e temia que ela cedesse àqueles desvarios. Pensava ainda no pior.
E o pior veio. O pai passou a não mais falar, nem insistir no seu discurso monocórdio. Agora exigia que Dona Fernanda abandonasse os salgados. Insanamente ela tentava argumentar, falando dos compromissos com fornecedores e clientes, que eles viviam desse trabalho. “E se tu perder o emprego, bebendo como tá? Como vou recomeçar tudo outra vez?” Falava mais por desespero do que para dar uma justificativa a ele, mas como na história do lobo e do cordeiro era tudo em vão: não se pode discutir com um desvairado.
Das exigências ele passou às ameaças. Chegava a casa, batendo forte na porta, depois, já no interior, começava a bater com a palma da mão na parede da sala até a cozinha, e ameaçava com voz autoritária:
─ Em breve, se eu continuar a sentir esse cheiro horroroso dentro de casa, esta mão – e mostrava a manzorra espalmada próximo ao rosto da mulher – vai explodir na cara de gente.
Larissa, não cria nas ameaças do pai, mas para não ver as humilhações a que a mãe era submetida, como fazia outrora, evitava estar em casa quando ele chegava. Descia e ia encontrar as colegas, que estavam sempre inventando algo, sob a batuta da maestrina Vivi. Esta, como boa enxadrista, mudara de estratégia. Após o sucesso de seu plano para separar Larissa de Ígor, não mais dirigia a palavra a ela, a não ser o indispensável. Isso fazia com que esta não desconfiasse de sua participação no episódio. Seu plano agora era deixar a menina à vontade no grupo para que ela pudesse então se apaixonar por ela. Ela era realmente a vedete do grupo. Se havia jogo de futebol na quadra lá estava ela, na torcida ou na quadra mandando bem; se era um concurso de dança promovido por alguma empresa de bebida ou pela administração do condomínio, era ela que ganhava, enfim estava presente em tudo. Sua última invenção era transformar o antigo fã clube da dupla Tatu em um grupo de teatro, composto só por mulheres, é claro. As reuniões do grupo eram feitas na mesma sala em que se realizavam as outras, contígua à administração do condomínio. O primeiro trabalho delas foi apresentado em espaço aberto, no meio da quadra, num palco improvisado. Era uma peça da obra de Álvaro de Azevedo, Macário, que trata do encontro da personagem homônima com o diabo. Adivinha quem era o Tinhoso: Vivi. Larissa fora escolhida para ser Macário. Vestidos a caráter as meninas deram um espetáculo, que foi aplaudido por todos os presentes. Ao final foram comemorar na casa da líder do grupo, cuja mãe não se encontrava. Vivi aproveitando-se da alegria do grupo dirigiu-se à Larissa para cumprimentá-la:
─ Nossa, você estava divina. – e, fingindo estar meio sem jeito, abraçou-a de leve. Larissa foi invadida pelo cheiro da outra e ficou meio desorientada, subitamente teve vontade de enlaçá-la, beijá-la, mas se afastou com repulsa de si mesma, por sentir-se fragilizada dessa forma.
Quando chegou a casa, Larissa estranhou que a mãe já tivesse ido dormir. O pai roncava já de boca aberta tresandando a álcool. Durante um bom tempo ela se questionou sobre as últimas sensações que tivera, principalmente quando foi abraçada por Vivi. E pensou como é complicado a gente adolescer. Com efeito, ela estava por fazer quatorze anos e precisava decidir-se pela melhor conduta genérica a seguir, não para dar uma satisfação aos outros, mas por si mesma, para sua satisfação pessoal. Estava na fronteira que leva uma pessoa do sexo feminino ou masculino a fazer sua opção sexual definitiva. Era incrível como ela percebia isso, enquanto outros penam numa crise de identidade desgastante. Sentia-se senhora do seu próprio destino. De um lado estavam os homens, representados pelo pai e pelo ex-namorado, sabia que eles não representavam todos os homens do mundo, mas eram bons estereótipos da raça, sabia por experiências de outrem que não poderia esperar muito deles. Do outro lado estavam as mulheres, representadas pela mãe e por Vivi, além das colegas de quem gostava pelo que tinham de iguais. Sentia pena das mulheres apesar de achá-las forte, uma rocha e essa fortaleza ela sentia dentro de si. Principalmente agora que estava à beira de uma decisão que nortearia toda sua existência. E lembrou os versos do tio Jonas:

Pronta a amar, augusto, a quem aprouver,
Ó impudente luz de dourada beleza.

Ela estava decidida a seguir a risca os versos do tio, amaria a quem quisesse sem pudor, de forma sagrada e só então resolveria sua conduta definitiva.
No dia seguinte antes de sair para a aula, procurou a mãe que estava na pia da cozinha de costas.
─ Tchau, mãe já vou indo.
─ Tchau, minha filha, boa prova.
Larissa achou estranho que a mãe não virasse o rosto para lhe mandar um beijo como sempre fazia, e indagou.
─ Mãe, o que houve? E se dirigiu à dona Fernanda, que tentou esconder o rosto.
─ Deixe-me ver seu rosto, mãe! – Instou, puxando a mãe pelo braço – Meu Deus! O que foi que houve ontem à noite!? – Indagou inquisidora ao ver o rosto de Dona Fernanda, quase que totalmente vermelho e intumescido? – Isso não pode tá acontecendo, meu Deus, ele bate em você e cê ainda tenta encobrir, puta que pariu, isso é demais – nesse momento a menina estava descomposta, as lágrimas desciam-lhe pelo rosto enquanto ela andava de um lado o outro dando palmadas na parede, instintivamente imitando os gestos do pai. A mãe abraçou-se a ela e as duas resvalaram para o chão e ficaram lá um bom tempo, enquanto as lágrimas se misturavam, e só tempo depois os soluços cessaram.
─ Isso não vai mais acontecer, minha filha.
─ Como não vai mais acontecer, se agora é que começou! Antes ele fazia o que fazia, mas não ousava tocar na gente, mas agora que ele começou, isso não vai ter fim. – argumentava a menina alterando novamente o tom da voz.
─ Não vai, minha filha, eu prometo.
Foi com algum esforço que a menina conseguiu se recuperar e adquirir forças para ir à escola, afinal estava na semana de provas finais do segundo bimestre e ela não queria fazer segunda chamada. No ônibus, com a cabeça voltada para fora da janela, com os cabelos esvoaçantes pela ação do vento, ia pensativa. Tinha que encontrar junto com a mãe uma saída para aquela situação. Foi com essas reflexões que ela chegou à escola. Por enquanto tinha que se preocupar com as provas de História e Matemática, agendadas para aquele dia.
Nos dias que se seguiram, Larissa não saía mais de casa depois que retornava da escola. As amigas ligavam para ela chamando-a para os ensaios da próxima peça, mas ela pediu que colocassem outra no seu lugar, “porque eu tô estudando para as prova”. Na verdade ela não queria sair de perto da mãe. Na noite que se seguiu ao da surra, o pai chegou a casa sóbrio, não trocou palavra com ninguém e assim foi dormir. No dia seguinte o mesmo se deu, mas, antes de deitar em sua fétida rede, ele deu boa noite. Larissa sempre que estava a sós com a mãe tentava falar sobre uma solução para o problema familiar, a mãe, entretanto, fugia do assunto e assim terminou a semana. Larissa estava de férias. A mãe após terminar o jantar dirigiu-se à filha:
─ Lissa, cê num vai sair um pouquinho não, filha, suas provas já terminaram e eu acho que vê podia sair um pouquinho.
─ Só se for com você. Que tal? Vamos comer uma pizza.
─ Não, minha filha, acabei de fazer o jantar e daqui a pouco seu pai chega.
Larissa balançou a cabeça com raiva e foi para o quarto. Lá ela pegou seu diário e tentou colocar as últimas impressões que a vida lhe impusera. Nesse momento percebeu a chegada do pai, mesmo que ele o fizesse em silêncio, pois era por demais covarde, por isso temia a união das duas, preferia lidar com a mulher sozinha. A cabeça de Larissa passou a girar a mil. Via os avós, a casa sempre cheia no mês de julho, os almoços regados a muita história, mas a figura do pai não aparecia. Lembrou-se da festa do ABC, era algo irrigado em sua memória, pois lá estavam todos os pais, menos o seu. Num instante descobriu que em nenhum momento de sua vida o pai estivera, talvez só na sua concepção. Foi assim que adormecera. No meio da noite, acordou com sede e foi à cozinha. Estranhou a luz do quarto da mãe acesa, ia bater na porta, mas hesitou ao ouvir barulho, era o rangido da cama e o ofego do pai, que aos poucos foi cessando até o estertor final. Percebeu, então, que ele levantava e se dirigia à porta. Ela correu para o seu quarto sem ser percebida. Entre as idéias que lhe inquietavam o espírito naquele momento estava o pensamento sobre se a mãe também tirara proveito daquela relação.
(continua)

terça-feira, 25 de agosto de 2009

SONETO PARA LARISSA - CONTINUAÇÃO

CAPÍTULO IX

“Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado.”
O dia da criação)


Era domingo e Larissa havia acabado de passar a limpo seus cadernos da semana. Era assim que ela estudava: durante a semana todas as anotações e resolução de exercícios eram feitas em borrões, no final de semana ela passava tudo a limpo, lembrando as palavras e as orientações dos professores; assim ela via a mesma matéria e resolvia os mesmos exercícios duas vezes, esse era o principal motivo de suas boas notas. As colegas, como não a viam constantemente com os cadernos e livros nas mãos, estranhavam suas ótimas notas. Depois de guardar todo o material de estudo e deixar o quarto em ordem, foi para o computador. Naquele dia acordara realmente cedo, bem mais cedo do que nos outros domingos. Era a primeira vez que ia ao cinema com o namorado. A mãe já remexia na cozinha desde cedo. Havia uma encomenda para um grande bufê com o qual a mãe firmara recentemente um contrato bem rentável. Os negócios estavam realmente indo de vento em popa.
Depois do almoço, Ígor passou para pegá-la e os dois foram para o passeio. Dona Fernanda deu um suspiro ao ver a filha bem, com a auto estima em alta.
O filme era um sucesso internacional, não havia no mundo ocidental ninguém que não ouvira falar em Harry Potter, mas o casal não conseguia sequer se concentrar na película, os olhos viam meninos e meninas voando em vassouras, objetos que se despregavam do chão, bruxos bons e maus, no entanto seus sentidos estavam voltados um para o outro, a variação da respiração dele não passava despercebido a ela e vice- versa, as mãos apesar do ar condicionado suavam. Vez por outra trocavam um beijo mais demorado e os olhos, acostumados ao escuro, se fitavam e um sorriso nos lábios era a comunicação suficiente.
Terminada a exibição, os dois foram à lanchonete. Comeram sanduíche, batatas fritas e tomaram refrigerante. A menina fez questão de pagar pelo seu lanche como o fizera com o ingresso no cinema. Queria deixar claro ao garoto o tipo de relação que pretendia, uma relação sadia, independente, sem ônus de nenhuma natureza para um e outro.
De volta ao condomínio, depois de trocarem algumas palavras com os amigos, foram para a casa do garoto, cujos pais estavam ausente e só chegariam depois das dez. Ficaram na sala entre arrulhos e carícias. O desejo transbordava-lhes pelos poros, e pela primeira vez eles falaram em sexo:
─ Quando é que você acha que estaremos prontos para... cê sabe. – começou ele meio sem jeito.
─ Eu acho até que já estamos – falou com mais segurança a menina – mas eu acho também que devemos planejar. Porque será a minha primeira vez e eu quero que seja mágico, que tenha flores e principalmente muito carinho.
─ Tá bom, vamos com calma, vamos alimentar a idéia para que seja algo realmente maravilhoso. – e se fundiram num abraço terno.

Quando Larissa chegou a casa, faltava pouco para as dez da noite. Grande foi sua surpresa ao ver o pai esparramado na rede como se dali nunca tivesse saído.
─ O que significa isso, o que ele tá fazendo aqui!? – perguntou atônita para a mãe que vinha da cozinha, trazendo numa mão um pano de prato e na outra uma tigela com doce de leite, que entregou ao marido.
─ Oi minha filha. Não vai dar um abraço no papai – disse o homem naturalmente.
─ Como – impacientou-se Larissa – cê vai embora, some, leva o carro, a gente fica aqui no maior mico, depois cê volta como se nada tivesse acontecido!
─ Lissa, não fale assim com seu pai – interrompeu a mãe, com uma voz resignada.
─ Deixa Fê, ela tá surpresa – interveio o marido pródigo, com intimidade – eu explico minha filha. E, pegando delicadamente Larissa pelo braço, fê-la sentar-se e contou o que havia acontecido. Narrou que saíra de casa porque estava se sentindo humilhado por não ter um emprego e não agüentar mais as pessoas cochichando umas com as outras sempre que o viam. Ausente de casa, durante um mês bebeu sem parar. Até que, sem dinheiro, vendeu o carro, e continuou uma farra atrás da outra, como se estivesse dominado por forças malignas. Nesse ponto da narrativa, passou as mãos pelos olhos como a limpar uma lágrima, que teimava em não cair. Continuou dizendo que, nessa altura do campeonato, já estava novamente sem nenhum tostão, foi quando encontrou um amigo de infância, “um anjo enviado por Deus”, que trabalha numa empresa de ônibus. O cara ficou tão consternado com sua situação que resolveu ajudá-lo. Três dias depois, de barba feita e aspecto renovado, era conduzido pelo amigo à presença do inspetor da empresa de ônibus onde o amigo trabalhava. Como havia uma vaga e os apelos do amigo foram incisivos, apesar da falta de experiência, ele ficara com o emprego. Em seguida falou de sua tristeza e de seus anseios para recuperar a família. Aos poucos foi se reaproximando de Dona Fernanda, “que não falou nada para você ter uma surpresa”, e agora estava ali “junto às pessoas a quem nunca deveria ter abandonado”.
─ Agora, minha filha, eu sou um novo homem – concluiu o pai soluçando bastante.
Larissa foi para o quarto sem tomar banho. Lá, trancou-se para tentar digerir aquela história. Em seu peito acasalavam-se dois sentimentos paradoxais. Um profundo remorso por desprezar no íntimo, tão violentamente, aquele que lhe permitira estar no mundo e uma dúvida lancinante despertada pelo seu sexto sentido. Ele lhe avisava que aquela história não iria acabar bem, dizia-lhe que as palavras do pai não deveriam convencê-la. No entanto havia a mãe, esta já crera na história do marido, por ingenuidade, necessidade e/ou submissão. “É incrível – pensou – como as mulheres caem facilmente na lábia dos homens”. Compreendia as necessidades da mãe e imaginava o quanto ela sofrera a falta de um calor masculino na cama. Sabia também que, pela criação austera que tivera, possivelmente não admitiria outro homem tocando seu corpo. Como era ridícula aquela dependência aos costumes, que exerciam tanto poder sobre a mãe. E lembrou os versos do tio:

Pronta a amar, augusto, a quem aprouver,
Ó impudente luz de dourada beleza.


Era assim que uma mulher deve ser, um ente livre para amar a quem lhe der realmente prazer, a quem lhe aprouver. A mãe com certeza deveria ser muito infeliz. Pensou no namorado e prometeu jamais agir como a mãe, ela saberia ser independente, ela seria uma mulher feliz. Lembrou-se de um poema que lera numa coletânea da biblioteca da escola. Levantou-se rapidamente da cama, pegou o caderno onde o havia copiado e o leu:




SONETO DA FÊMEA VII

Cuidado, meu amigo, mais cuidado.
Não exponhas teu ser às suas flechas:
A mulher, fonte e abismo, barro e nuvem,
É uma serva – quando desejante;

Uma tirana – quando desejada.
Ora pousa, ora flana indecidida.
Quer se doar: por tática se nega;
Quer se negar: por ímpeto se doa.

E se abandona sem nenhum recato
E te abandona sem nenhum remorso.
Não quer ser objeto mas se enfeita;

Luta por ser sujeito mas se entrega.
Nem anjo é mais suave quando ama;
Nem fera é mais cruel depois de amar.
(PEDRO LIRA)

Os versos em ordem direta e objetivos a encantavam pela definição antitética da mulher presente neles. Mas onde estaria essa fêmea descrita pelo poeta? – pensava – a mãe não era assim, as tias também não. Mas com certeza ela o seria, homem nenhum a faria sofrer, não pretendia ser o carrasco dessa raça, mas não se permitiria ser um mero joguete do suposto sexo forte, que não passa, entretanto, de aproveitador. É isso que a maioria dos homens é, parasita da sensibilidade e da força feminina. Perdida nesses pensamentos, adormeceu. Em seus sonhos figuras de homens e de mulheres se confundiam e se fundiam numa só, a imagem da mãe aparecia banhada em lágrimas, com o avental incrustado de gordura e a pele totalmente enrugada.





















CAPÍTULO X

“Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à idéia dos
[ meus.”
(A Ausente)



Passado um mês do retorno do pai, a vida na casa de Larissa transcorria normalmente. Com seu salário, como não havia necessidade de ele entrar no orçamento familiar, o pai comprou alguns móveis novos, trocou o piso da cozinha, enfim gastou-o todo em casa. Aos poucos Larissa foi-se convencendo de que fora muito dura com ele, mas apesar disso não conseguia perdoá-lhe de todo, pois as lembranças do sofrimento da mãe ainda estavam muito frescas.
O ano de 2003 foi-se, deixando algumas reflexões para nossa personagem, principalmente a de que existem momentos bons e ruins e que temos que ter paciência para superarmos os maus momentos e cabeça fria para aproveitarmos os bons. A festa de confraternização de fim de ano foi realizada numa casa de praia alugada em conjunto pelos familiares. Lá estavam mais de dezesseis pessoas entre tios e primos. Os avós maternos não estavam lá por nojo, devido ao passamento de um parente distante. Nesses dias o pai de Larissa não bebeu e pela primeira vez, desde muitos anos, não deu nenhum vexame. Felicíssima quem estava era dona Fernanda, vendo a filha ao lado de um garoto tão interessante e educado quanto Ígor, o marido com um copo de coca-cola na mão, para cima e para baixo, enquanto os outros homens da família se esbaldavam na cerveja e no uísque. Quase à meia noite o celular do namorado de Larissa tocou, mas ele não atendeu. Ignorou a chamada e disse que eram uns amigos chatos querendo pegar no pé. No entanto essa justificativa não a convenceu, que, instigada pelo senso feminino, captava algo de suspeito no ar. Daí a pouco ele se retirou para ir ao banheiro. Larissa sentiu pela primeira vez ciúme, e o pior era que o alarme disparado não parava um instante. Naquele momento ecoou pela praia inteira o barulho dos primeiros fogos, que se repetiu num espetáculo de luzes, cores até uma da manhã. Todos se dirigiram para a praia e lá amanheceriam, a maioria estava vestida de branco para saudar o ano entrante, outros entravam de costas no mar, para dar sorte.
Já ia manhã alta, quando se preparava para ir à praia, Larissa viu sobre a mesa o celular do namorado, que ainda dormia. As mãos tremeram. Pegava-o ou não. Depois de um terrível conflito interior, ela se desfez do pudor para se desfazer de uma dúvida com que encafifara. Pegou o aparelho e procurou a chamada não atendida do dia anterior. Lá estava, às onze e trinta, era a última, a que ele ignorara. Em seguida foi até a última chamada efetuada, pouco tempo depois, era o mesmo número. Ela ficou indignada, colocou o telefone sobre a mesa, hesitou, pegou-o novamente e anotou o número na palma da mão, na seqüência entrou no banheiro e chamou. Do outro lado da linha uma voz feminina atendeu. Ela desligou e foi tomar banho. Não podia deixar que o namorado percebesse que bisbilhotara seu telefone. Na volta para o condomínio procuraria saber de quem era aquela voz.

Com efeito, Vivi não esquecera o juramento interior de desfazer o namoro entre Vanessa e Ígor, o qual fizera para si. Sempre que via os dois juntos, remoía-se por dentro. À noite sonhava com a menina e muitas vezes, tarde da noite, despertava sacudida pela lubricidade. Há muito não tocava nos livros, as notas, que nunca foram lá essas coisas, definhavam rumo a uma reprovação. A mãe não tomava conhecimento do que acontecia à filha. Trabalhava fora de segunda a sábado e no pouco tempo que lhe restava saía com as amigas para “as baladas, pois afinal ninguém é de ferro, além do mais, não falta nada para minha filha. Tudo que ela quer eu dou”. Quando a diretora pedagógica da escola convidava-a a participar de uma reunião, a resposta era sempre a mesma: “Não tenho tempo para isso”. O pai morava em são Paulo. Há três anos não vinha a Fortaleza, mas se orgulhava entre os amigos por ter “uma linda filha em Fortaleza a quem não deixo faltar nada, e além do mais, ela já é uma moça”.
Viviane ainda era uma garotinha de dez anos, quando os pais se separaram. Ela foi morar com a madrinha, devido a uma crise emocional muito forte que a mãe tivera, a ponto de tentar o suicídio. A madrinha era solteira, morava só e adorava a afilhada. Prontificou-se logo a cuidar de Viviane enquanto a mãe se recuperasse. Os cuidados, no entanto, beiravam o exagero. Às noites, quando a menina dormia, ela ia até seu quarto e deitava ao seu lado, beijava-a, a princípio no rosto, nos braços, com o tempo, passou a beijá-la na boca. Muitas vezes a menina acordava sufocada, mas ela não parava com os gestos insanos. Do susto, Viviane passou a aceitação. Depois passou a gostar daquilo e espontaneamente ia à cama da madrinha reclamar as carícias da outra. Quando voltou para casa, depois de a mãe ter-se recuperado, passou a sentir falta, por isso nos finais de semana pedia para dormir na casa da madrinha, a mãe longe de ter ciúmes da filha, via naquela união uma forma de estar livre para refazer sua vida. Assim, Vivi fez doze anos nos braços daquela que deveria ser sua guia espiritual. Foi numa dessas sessões de carícias que ela teve sua primeira menstruação. Sua grande tristeza, bem maior que a separação dos pais, foi a morte da amante, numa tentativa de um assalto a banco. A madrinha desesperada ficara entre o fogo cruzado, como notificara a imprensa, e até hoje ninguém sabe de onde partiu o projétil que a matou, se dos bandidos ou da polícia. A garota sofreu muito com a historia, mas se recuperou depois de algumas sessões com um analista. A mãe, depois do ocorrido, tentou se aproximar um pouco mais da filha, debalde. A figura representada pela madrinha era totalmente insubstituível e ela criou seu próprio modo de ser. Alguns garotos se aproximaram dela, mas ela sentia nojo, o cheiro, a voz, a textura da pele não lhe agradavam. Por outro lado, sentia-se excitada diante de uma figura feminina, principalmente se lhe lembrasse àquela que lhe levara à pia batismal. E Larissa, para sua infelicidade, estava dentro desse perfil: magra, alta, cabelos negros e olhos castanhos, lábios grossos e úmidos; estando de xorte ou calça apertada dava para perceber a saliência que formava seu sexo, como a madrinha. Portanto desde a primeira vez que a vira, Vivi associou sua imagem à da outra. Daí a origem de seu desejo pela menina.
Quando viu Larissa e Ígor juntos, como namorados, ela começou a traçar um plano. Conhecia muito bem o instinto libidinoso que existe na mente dos garotos, mesmo nos mais quietinhos. Estava acostumada a que os primos se esfregassem nela, motivados pelos pais. Ela os afastava com um tapa acompanhado de palavrões, e a cena, constrangedora para si, era motivo de riso para todos. Sabia também que os pais, com medo de que os filhos virem bicha, instigam-nos à prática do onanismo, antes de os levar a um prostíbulo “para tirar o cabaço”. Essa prática amiúde deixa os homens dependente do sexo. Diferente do universo feminino, em que já no século XXI essa prática, na maioria dos casos, é desencorajada, resultado, é claro, de milhares de anos de dominação masculina.
Foi por essa época que Camila veio morar no apartamento embaixo do seu, era uma negra de olhos grandes, seios fartos, e lábios grossos. Camila transbordava sensualidade por todos os poros, suas nádegas sempre cobertas por minúscula saia, de onde saía um torneado par de pernas, deixavam os homens boquiabertos. Ela, é claro, despertou também os desejos de Viviane, que, entretanto, teve de adormecê-los em prol do seu plano. Do alto de seus dezenove anos, Camila morava com mais três colegas, e não estranhou quando aquela menina de quinze anos adentrou seu apartamento, elogiou suas formas e lhe falou de Ígor. Quando se leva aquele tipo de vida, tudo se torna perfeitamente previsível. vivi tinha dinheiro e lhe pagaria para que ela seduzisse o jovem. A primeira investida da moça ocorreu num fim de tarde. Vivi se encarregou de apresentá-la ao garoto. Como suas preferências eram desconhecidas de todos, menos de Larissa, o rapaz não desconfiou de nada e, conforme Jéssica imaginara, ficou tarado diante das protuberâncias da mariposa. Com certeza ela mexera com ele. Gritaram no seu interior todas as taras guardadas em seu mapa genético, advindas do atavismo biológico. Ele não se deixou abalar a princípio, mas as insistências se tornaram amiúde e ele cedeu, coitado. Viviane inteligentemente sabia que uma piada de algum amigo seria incisiva, pois se há uma coisa que os homens não toleram é que alguém lhe chame de “mole”. Assim ela tornou Rodrigo, amigo de Ígor, sabedor de que Camila tinha convidado o rapaz para passar à tarde com ela e ele não aceitara. Foi a gota d’água. Quando os colegas começaram a comentar, à boca pequena, sobre a recusa do garoto, a insinuá-lo bicha, ele foi à casa de Camila. Pronto! O plano não poderia estar dando mais certo.
Por isso na noite de fim de ano ela, Camila, ligou para ele, que ignorou e depois retornou a ligação, conforme já sabemos. Nesse telefonema ele pedira para ela não mais procurá-lo, pois não queria perder a namorada e coisas assim. Mas a garota fê-lo prometer que ele iria pela derradeira vez ao seu apartamento, caso contrário “sua namoradinha vai ficar sabendo de tudo”. Sem saída o moço teve de prometer que iria lá pela última vez quando voltasse à capital.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O PEQUENO PRÍNCIPE: A ROSA

Mas aconteceu que o Pequeno príncipe , tendo andado muito tempo pelas areias, pelas rochas e pela neve, descobriu, enfim, uma estrada. E as estradas vão todas em direção aos homens.
- Bom dia! - disse ele.
Era um jardim cheio de rosas.
- Bom dia! - disseram as rosas.
Ele as contemplou. Eram todas iguais a sua flor.
- Quem sois? - perguntou ele espantado.
- Somos as rosas - responderam elas.
- Ah! exclamou o principezinho...
E ele se sentiu profundamente infeliz. Sua flor lhe havia dito que ela era a única de sua espécie em todo o universo. E eis que havia ali cinco mil, iguaizinhas, num só jardim!
"Ela teria se envergonhado", pensou ele, "se visse isto... começaria a tossir, simularia morrer, só para mehumilhar, ela seria capaz de morrer de verdade..."




Depois refletiu: "Eu me julgava rico por ter uma uma flor única, e possuo apenas uma rosa comum. Uma rosa e três vulcões que não passam do meu joelho, estando um talvez, extinto para sempre. Isso não faz de mim um príncipe poderoso..."
E, deitado na relva, chorou.
(Saint Exupery, O Pequeno príncipe, Agir, 48a ediçã)
O Principezinho possui em seu minúsculo planeta uma rosa de quem cuida com muita dedicação e a quem a ama por ser única. Ao descobrir que no universo ela não passa de apenas mais uma, ele se entristece. E assim acontece conosco. Muitas vezes nos decepcionamos com nós próprios por não admitirmos que existam mais exemplares daquilo que temos e do ser que amamos. Mas precisamos compreender que daquilo que temos, das pessoas que amamos não há outros exemplares. Quem amamos é singular em suas particularidades, quem amamos não se repete. É por isso que amamos, é o nosso desejo de sermos únicos e encontrarmos o nosso outro eu, a nossa singularidade. O principezinho se esquece de lembrar os diálogos que manteve com sua rosa, se esquece de lembrar o perfume único de sua flor, se esquece de que só ele conhece as rugas que se formam nas faces de sua amada, e que só ela conhece de fato a ele. Sua flor é única em sua própria essência.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

SONETO PARA LARISSA

ROMANCE POR FRANCISCO ALVES DE ANDRADE
EPÍGRAFES RETIRADAS DO LIVRO:
VINÍCIUS DE MORAIS, POESIA COMPLETA E PROSA – RIO DE JANEIRO, EDITORA NOVA AGUILAR, S/A, 1986
CAPÍTULO I

“Que destino é o meu senão o de assistir ao meu
[destino
Rio que sou em busca do mar que me apavora?”
(A Vida Vivida)

Estava um dia por demais quente. O vento que soprava pelas frestas da janela era morno. E o ventilador, com seu barulho repetitivo, só aumentava a sensação de calor, sempre que mudava o foco da ventilação. Larissa, deitada na cama, de bruços, as pernas para cima, balançando os pés numa brincadeira surda, era a própria imagem do tédio. Os olhos zanzavam pela revista onde havia algumas fotos da Avril Lavigne, sua cantora predileta.
Ela fechou a revista. Procurou algo em volta para fazer, mas não havia nada. Desde que o computador fora para o conserto estava difícil abrir a janela para o mundo, vislumbrar uma luz no infinito do túnel. E nem mesmo esse objeto de comunicação moderno e tão indispensável, aos jovens, nos dias de hoje, lhe trazia alento. Era enorme a ausência interior. Lembraram-lhe uns versos de Djavan: “Nem que eu bebesse o mar, encheria o que eu tenho de fundo”. Não era apreciadora do cantor alagoano, mas ouvira a música que os continha, certa vez, possivelmente na casa do tio Jonas, e eles ficaram gravados em sua memória. E o pior era que o músico traduzia neles o que ela sentia. Precisava urgente descobrir o mistério de sua existência. Na cabeceira da cama ela vislumbrou pela trilhonésima vez o porta-retrato, que em vez de uma foto trazia um poema, presente do tio Jonas, quando ela fizera 10 anos. Sempre que se sentia assim, entediada, ela o lia. Foi isso que ela fez em voz alta, como para entender o que ele trazia naquele emaranhado de metáforas:


SONETO PARA LARISSA
(NO DIA DE SEU ANIVERSÁRIO)

O fogo de Leão, reino do sol,
Longe da água, mando canceriano,
Trouxe-te, Oxalá nunca leviano,
Te leve daqui, lar de rouxinol.

Pois vieste disposta a ser princesa
De um reino daqui, de nina a mulher,
Pronta a amar, augusto, a quem aprouver,
Ó impudente luz de dourada beleza.

Larissa, tu és assim: mar de pureza,
Vasta floresta tão desconhecida,
Depurada rosa de casto espinho.

Terás, tu, sempre essa eternal leveza
Posto sejas fixa imagem surgida
Em virgem terra, ares de passarinho.
Julho de 2000

Aos dez anos, aquele texto não lhe despertara nenhum interesse. Nem a ela nem a ninguém. Também aos dez anos sua vida era tranquila, não sentia as angústias que a assolavam agora. Morava numa pequena cidade do interior, estudava numa escola menor ainda e seus dias era brincar com as vizinhas de sua idade. Sentia ímpetos de beijar as pessoas, de abraçá-las e de cantar. Quando não estava com as colegas, ou na escola, estava montada na bicicleta rua acima rua abaixo, até cansar. Em julho, mês da padroeira, a cidade ficava abarrotada de gente que vinha de todos os pontos do país. Na casa dos avós maternos (era sua referência, pois os avós paternos, apesar de vivos, não tinham quase nenhum contato com ela) chegavam tios, tias, tias-avós. Nas bagagens vinham sempre presentes para ela, e isso a deixava em profunda expectativa sobre o que iria ganhar, pois aquele era também o mês do seu aniversário. Eram sem dúvida os melhores momentos de sua vida. Foi no aniversário de dez anos, que o tio Jonas lhe entregou um pacote. Ela o abriu como o fizera com os outros para ficar pasma com o que havia nele: um porta-retrato com uma folha cor de rosa e uma flor encimada à direita. No centro o referido soneto. Ele mesmo se encarregou de lê-lo. Todos aplaudiram, mesmo sem saber o que estava implícito naquele labirinto. Ele próprio tratou de desfazer a confusão que se fizera na cabeça da menina:
─ Não se preocupe, Larissa, com o tempo você vai compreender o que esses versos querem dizer. Falou profético.
A menina, ainda com dez anos, tentou várias vezes decifrá-lo, mas era desencorajada pela mãe: “Isso é loucura do teu tio, menina, deixa pra lá”. Sabia que havia algo a ver com o seu signo, Leão. O tio Jonas adorava astrologia, tanto que antes de morrer, num acidente aéreo, escrevera um livro intitulado “Os Segredos da Astrologia”.
Depois, sua família mudou-se para a capital. Ela acabara de fazer onze anos e não sabe se devido à idade ou à mudança de ares começara a ocorrer alterações violentas em seu comportamento. Num espaço de seis meses, mudaram três vezes de endereço por questões financeiras, sendo assim ela não conseguia montar um grupo de amigas. Até que finalmente seus pais conseguiram comprar um apartamento e fixaram residência. Nesse novo endereço ela começou a estabilizar suas ideias, começou a definir, a partir da escola, a sua faixa etária. Tinha finalmente onze anos completos.
Matriculada numa grande escola, conheceu Tiago, um garoto que, diferente dos outros, não passava o tempo todo falando em futebol. Estava sempre lendo algo, principalmente notícias interessantes, dessas que se publicam aos montes nessas revistas de curiosidade, tipo Superinteressante, Galileu etc. Lia todos os livros paradidáticos e fazia os trabalhos daquelas que se colocavam em seu redor. Percebe-se logo o motivo pelo qual todas as meninas da sua idade arrastavam asas para ele. O estereótipo de menino que Larissa conhecia incluía, além de futebol, muitos palavrões, piadas preconceituosas ensinadas pelos pais, além de certo ar de dominação. Tiago, com seus cabelos lisos, rosto angular e olhos vivos, transitava de um grupo ao outro da sala e da escola com uma facilidade incrível, não pertencia a nenhuma igrejinha e não optava por gênero para estabelecer uma conversa, o que surpreendia até os professores. Larissa empolgou-se com o menino, mas como não tinha coragem de revelar seus sentimentos, constituiu um diário para o qual todos os dias contava o que o menino havia feito e seus anseios para com ele:

“Hoje, amigo diário, Tiago estava lendo uma matéria sobre o futuro da água no mundo. Pela primeira vez de verdade ele me deu atenção. É bem verdade que eu fingi interesse no assunto, e ele me falou um monte de coisa, tipo que daqui a 50 anos não vai mais haver água, sei lá. Ele estava preocupado com isso. Eu estava era preocupada em ver seus olhos, de um brilho intenso, parecia querer encontrar solução pra tudo. Enquanto ele falava, eu imaginava um monte de bobagem, tipo abraçar ele, perguntar se ele queria namorar comigo, mas apareceu a enxerida da Raquel, se meteu na conversa e roubou a cena. Mas amanhã, eu prometo, querido diário, eu vou falar com ele de novo. Agora eu tenho que estudar para a prova de Português. Bom era até o ano passado quando eu só tinha duas professoras e elas não sabiam muita coisa. Boa noite.”

E assim os dias se passavam até que a ousada Raquel arrebatou o menino, e Larissa chorou em silêncio para o seu diário. Aninha, sua colega mais aproximada e que ostentava ares de entender de garotos foi quem lhe aconselhou:
─ Deixa pra lá, Larissa, cê deu muita bobeira, da próxima, cai matando.
A menina, devido à sua formação, não entendeu bem o que as palavras da colega diziam, mas sabia que era qualquer coisa como ser mais ousada da próxima vez. Um outro entrave que a inibia era o hábito de falar como se fosse adulta, enquanto as colegas falavam uma linguagem para ela às vezes inacessível, e isso a distanciava dos grupos, restavam-lhe, pois, algumas palavras aqui e ali com Raquel e Aninha. Aos poucos ela foi-se retraindo, tornando-se tímida.

Em casa nada lhe agradava, nem podia. Os pais sempre brigando, a mãe triste, com os olhos vermelhos. Apesar de nova, D. Fernanda já parecia uma velha. As tias, de bem mais idade, pareciam muito mais novas. Estava sempre reclamando do marido. Este sempre ausente. Era sempre assim, de súbito o pai desaparecia, passava um tempo fora, quando tornava a casa, chegava embriagado e passava semanas dentro de uma rede, fingindo ler alguma coisa. Aos poucos ele abandonava aquele marasmo e inventava uma nova ideia, (parece que havia um baú cheio delas) em que a mãe de novo acreditava poder dar certo e investia suas poucas economias. A história, então, se repetia e os olhos vermelhos andavam sonâmbulos pela casa, em silêncio.
Fernanda era a provedora da casa. Na cidadezinha onde moravam já era ela quem mantinha a família, enquanto o pai inventava toda sorte de empresas com o intuito de enricar. Tudo dava em nada. Até que ele teve a engenhosa ideia de vir para a capital. “Ah! Lá sim, vai dar certo. Essa cidade é o cu do mundo, aqui ninguém vai fazer nada.” Dizia ele, dia após dia, como acontecia quando plantava uma ideia na cabeça. Até que um dia Fernanda resolveu atender aos apelos do marido. Vendeu a casa e vieram para Fortaleza. Aqui tiveram de morar de aluguel e penar, mas voltar para o interior era algo que assombrava o marido e a ela também, o orgulho não lhe permitia a ela dar o braço a torcer, sua família sempre fora contra a união, por isso retroceder jamais. O tempo, no entanto, foi engenheiro, e Deus nos dá o frio conforme o cobertor. A vida da família teve uma reviravolta. Uma pequena herança deixada para D. Fernanda, por uma tia que morava distante, resolveu parte dos problemas. Agora moravam em um apartamento modesto, mas próprio, em um condomínio que mais parecia uma cidade, com quase quatrocentos apartamentos. Era o sonho da casa própria realizado. Possuíam ainda um carro na garagem, e Fernanda tinha um emprego. Larissa ganhara um quarto e um computador. Mas todas aquelas agruras e umas poucas decepções com os meninos possivelmente foram os responsáveis pelo seu semblante um pouco triste, melancólico. D. Fernanda trabalhava em casa fazendo salgados. Não parava um só minuto, de segunda a segunda. Tinha uma funcionária, Gorete, uma negra nariguda que, nas horas de folga, dava em cima de todos os rapazes, e a quem pagava um salário mínimo, mas não permitia que a filha penetrasse na cozinha, bastante ampla, fruto da união da cozinha original com o terceiro quarto que havia; de um lado, a “oficina”, como gostava de chamar o lugar reservado só para a feitura dos salgados; do outro, a cozinha, onde cuidava das refeições da família. Larissa se entristecia com o sufoco da mãe, socada naquela cozinha ou dentro do carro fazendo as entregas. O pai, mesmo tendo habilitação D, nunca pegou no volante para entregar um salgado.
Foi nesse contexto familiar, de conflitos difíceis de compreender e mais difícil ainda de separar, que Larissa chegou à primeira idade difícil de uma pessoa, a idade em que o indivíduo começa a se tornar responsável por alguma coisa, embora não saiba ainda o que é: doze anos.




CAPÍTULO II

“Rosa geral de sonho e plenitude
Transforma em novas rosas de beleza
Em novas rosas de carnal virtude.”
(Soneto da rosa)


Ela estava no banho, quando, pela primeira vez, sentiu uma formigação nos seios e os percebeu altos, intumescidos. Essa mudança dolorosa nos mamilos veio, com o tempo, acompanhada por pêlos pubianos. A princípio eram apenas penugens, que com o tempo foram escurecendo e formando um tufo. D. Fernanda, muito atarefada, não deu por essa transformação. Foi com Aninha que ela comentou pela primeira vez. As duas estavam no banheiro depois da aula de Educação Física e Larissa percebeu que os seios da colega já estavam crescidos. E, como fazemos sempre que temos uma novidade e precisamos dividir com o mundo, comentou:
─ Nossa como os seus seios estão grandes, os meus também começaram agora!
Aninha com seu eterno ar de sabichona de tudo exibiu mais ainda os seios para Larissa e tocou os da menina, que sentiu um arrepio pelo corpo e um constrangimento na alma, vestiu-se rápido e foi para casa. Chegando lá, não foi com menos constrangimento que mostrou o corpo para a mãe. Fernanda tomou um susto. “Como aquilo passara despercebido?” Indagou-se em silêncio. Em seguida, as duas tiveram uma longa conversa e D. Fernanda esclareceu-lhe as mudanças pelas quais estava passando.
À noite, Larissa foi tomada por forte indisposição e recolheu-se cedo para a cama. Nem olhou para o computador, que chegara do conserto há duas semanas, apesar de haver uma pesquisa para ser feita. Os livros muito menos receberam sua atenção. O celular tocou, mas ela não atendeu, ignorou a chamada e desligou o parelho. O sono veio logo, com ele um sonho. Nele ela anda numa estrada de terra ladeada por cercas de arame. É apenas uma menininha, de longos cabelos feito tranças. Aos poucos ela começa a correr e penetra num lindo jardim. Nele há flores de todas as cores, menos de coloração vermelha. As flores são de diversos tipos: tulipas amarelas, brancas; orquídeas lilases; rosas brancas; flores-de-maio. O chão está todo forrado de pétalas brancas e sépalas verdes. O flóreo aroma emana e empesta o ar. Todas as flores agora são amarelas, o sol parece aproximar-se da terra de tal forma que dá para ver o seu halo. Nesse instante um enorme leão de juba escarlate penetra no jardim e caminha na direção de Larissa. Ela não tem medo, pelo contrário, aproxima-se do animal, com grande intimidade, alisa-lhe o pelo, abraça-o e os dois se fundem numa só criatura: corpo de mulher e cabeça de leão. Começa subitamente uma chuva de pétalas vermelhas e ela sente que não é mais uma menininha, vê-se como agora, com todas as mudanças, impostas pela natureza. As pétalas encarnadas formam um tapete no qual ela deita para, em seguida, sentir de si transbordar uma avalancha de pétalas rubras semelhantes às outras caídas do céu. Vê-se aos poucos ser coberta por um rio vermelho, um rio de sangue. Paulatinamente o sol vai-se eclipsando, e tudo fica escuro.
A menina acordou assustada com a molhadeira que havia na cama. Chamou pela mãe, que veio correndo. Havia sangue por toda a cama, o lençol estava empapado do mênstruo transformador. A mãe, depois de trocar a roupa de cama, abraçou a filha e lhe disse:
─ Agora, filha, você é uma mulher. Está pronta fisicamente para suportar o peso que a sociedade impõe a nós. Todos os meses essa sangria se repetirá, como se fosse a lavagem dos pecados de Eva, culpada pela expulsão do paraíso.
Larissa conhecia bem o espírito conformado da mãe. Sabia que em parte ela tinha razão, e enquanto ela falava, iluminados pela lâmpada do abajur, ela lia os dois primeiros versos da segunda estrofe do soneto presenteado pelo tio:

“Pois vieste disposta a ser princesa
De um reino daqui, de nina à mulher,”

Ela agora os compreendia. Havia transposto a fronteira que divide a existência feminina. “Eu agora sou uma princesa, do reino da realidade, deverei esquecer os contos de fadas que ouvira quando menina e encarar o destino que me aguarda como mulher. Talvez mamãe tenha razão sobre o sofrimento destinado a nós, mas estou disposta a reinar como me indica o signo de Leão. Uma mulher preparada para o sofrimento, mas resolvida a amar e buscar a felicidade.” Concluiu.
CAPITULO III


“Virgem! filha minha
De onde vens assim
Tão suja de terra
Cheirando a jasmim”
(A Anunciação)


Por essa época nossa amiga já fizera algumas amizades dentro do condomínio onde morava e aos poucos ia-se entrosando de forma mais efetiva, até que finalmente foi convidada a fazer parte de um grupo constituído. O grupo era bem organizado, tinha líder, caixa para a realização de sessões de vídeo ou para passeios ao Shopping. Todos os sábados havia reunião na casa de um dos membros do grupo, formado só por meninas. Numa das reuniões, Viviane, a líder, apresentou as novas diretrizes do grupo: Tatu. A partir daquele momento o grupo iria se tornar um fã-clube do Tatu.
─ Mas o que é Tatu? Perguntou Larissa, com medo de haver cometido uma gafe.
─ É uma dupla formada por duas garotas. Elas são russas e cantam rock.
Dizendo, isso Viviane, um pouco mais velha que as demais, branca de olhos azuis, cabelos loiros, com seu eterno hábito de puxar o xorte para baixo, exibiu um CD da dupla. Àquela tarde, elas ouviram as músicas das cantoras russas. Apesar de não entenderem as letras acharam-nas bastante agradáveis.
À noite costumavam descer e ficar de bate papo numa área a qual se dizia “a frente do prédio”. Havia a quadra defronte de uma sequência de lojas onde funcionavam mercadinhos, lanchonetes, um bar e até um ciber café, com alguns poucos computadores e algumas máquinas de games. Ao lado da quadra havia um espaço com bancos e árvores. Ali se reunia um monte de gente, organizada em grupos de meninos, meninas, mulheres desocupadas, jogadores. Vez por outra o barulho das conversas se confundia com o grito de algum bêbado ou com o arrastado de pneu na avenida que passava na frente do prédio.
Fernanda não gostava que a filha ficasse ali, perto daquela promiscuidade de seres e de ideias. Temia pelo futuro da filha. No entanto reconhecia que próximo a completar treze anos, ela já não era mais uma criança e precisava se socializar, por isso indignava consigo mesma por não permitir à filha uma melhor localização social. Com o tempo foi-se acostumando com o fato de a filha chegar a casa sempre às dez. A princípio reclamava, ao que a filha respondia:
─ O que tem mãe, eu tava só ali com as minhas amigas, conversando abobrinha.
E Fernanda passou a não ver nada. Afinal de contas a menina estava na idade de começar a namorar, pensava e se conformava. Pelo menos algumas vezes em que o pai chegava bêbado o fato não era presenciado pela filha.
Com efeito, Larissa estava interessada num garoto. Chamava-se Ígor, era bonito e discreto; enquanto os colegas falavam alto e se empurravam, ele se limitava a mostrar levemente os dentes. Estudava na mesma escola que Larissa, mas em salas e séries diferentes. Tinha 15 anos e uma idéia fixa: entrar para as Forças Armadas. Na verdade esse era o sonho do pai o qual ele resolvera realizar. Amava-o e o que menos queria no mundo era decepcioná-lo. Larissa achava-o atraente, inteligente. Dos meninos do condomínio, mesmo da escola e até onde seus olhos podiam alcançar, ele seria o único a quem ela entregaria pela primeira vez seus lábios num beijo terno e quente. Sim, a menina ainda tinha os lábios virgens. É que diferente das outras garotas ela achava um sacrilégio beijar alguém na boca só por beijar. A última vez que se sentira assim, com vontade de beijar alguém, foi quando paquerava Tiago. As outras trocavam selinhos a toda hora só para parecerem “descoladas”. Além de tudo Larissa era tímida e sua timidez se aguçava a cada dia. Mesmo na roda com as amigas ela se postava a meio passo do grupo, a cabeça ficava sempre dando voltas e mais voltas e muitas vezes não conseguia se concentrar sequer na conversa que rolava. Agora seus olhos se detinham sobre o novo sonho de amor.



CAPÍTULO IV

“Viu-se assim por um lapso em sua beleza
morena, real, mas já se distanciando na penumbra
ambiente...”
(Separação)




Era quarta-feira, quando Larissa chegou para encontrar as amigas. O grupo estava meio calado. Ao procurar saber o que estava acontecendo, soube que Jaqueline havia fugido com o namorado. Jaqueline era uma negra bonita, rosto redondo, leonina, daí o eterno sorriso nos lábios adentrados por dois pares de dente brancos como o marfim. “Ainda existe isso, fugir como namorado! É o novo!”, exclamou quase entre dentes, mas foi ouvida pelas outras, que riram.
Realmente fugir com o namorado é uma atitude quase medieval, mas que ainda ocorre com frequência. Algumas garotas para pressionar os pais a aceitarem um namoro recorrem a esse expediente. Elas partem com a cabeça cheia de sonhos de que finalmente vão encontrar um rumo para a sua vida, pois é a falta de perspectiva de futuro financeiro ou espiritual ou simplesmente busca de aventura que as fazem cometer esses atos desesperados.
Apesar de parecer primeva, a ocorrência desses fatos é algo bastante hodierno, principalmente com o advento da internet e seus variados recursos para se fazerem relacionamentos. Recentemente, não muito longe dali, numa casa de família abastada financeiramente, mas carente de afeto e de diálogo, Virgínia, 17 anos, fugiu com o namorado chileno, que conhecera numa sala de bate-papo, deixando a filha, fruto de uma anterior desastrada relação com um homem casado, aos cuidados da mãe. Só retornou dois meses depois, novamente grávida e sem namorado. É isso o que acontece, devido à imaturidade e a busca de uma identidade, acabam vítimas de seu vácuo interior. O namorado, por não ter responsabilidade nem vontade de crescer e se tornar homem de verdade, muitas vezes foge, deixando-as na conhecida Rua da Amargura, quase esquina com a Rua da Perdição. Outros, mais perversos, as surram para as obrigarem a voltar à casa dos pais. E assim se não tomam cuidado, as mulheres, sobremaneira as meninas, vão sendo enredadas numa rede de promessas e mentiras, e só mais tarde, quando estão velhas aos vinte anos, é que se voltam para o passado irreversível.
No caso de Jaqueline isso é mais explicável, pois, chegada do interior e agregada à casa de uma tia, via-se com uma profunda necessidade de criar sua própria estrutura familiar e financeira. Com ela a história se deu assim. O namorado levou-a para a casa de uma tia, num bairro mais à periferia. A tia, muito solícita, recebeu-os com mimos e abraços de “bem vinda, queridinha”. Aos poucos, posto que a casa em que fora alojada fosse humílima, devido ao tratamento recebido, a menina foi-se sentindo uma princesa. Tinha levado consigo todas as suas economias que a mãe havia-lhe dado, “para não incomodar sua tia, com despesas extras”. O namorado, um boizinho que trabalhava num sítio vizinho ao condomínio, palco dessa crônica, falava até em casamento. Foi em resposta a essa proposta que ela entregou sua virgindade e seus dois mil reais. Quando por fim seu parco numerário se esgotou, a pobrezinha passou a viver um verdadeiro inferno de Dante. A tia do energúmeno esqueceu as palavras doces e os afagos, passando a tratar Jaqueline como se fosse uma estranha, o que realmente era, e a reprovar os carinhos trocados com o namorado pelos cantos da casa, eram ciúmes do sobrinho. O meliante gastou os últimos centavos em farras com alguns amigos. Desesperada, coitada, voltou para a casa da tia, que passou a olhá-la com desdém, como se se tratasse de algo repelente. As desconfianças logo foram comprovadas: a desgraçada estava grávida. Ao saber disso, a tia deportou-a para a casa dos pais, no interior. E assim acabou o sonho urbano de Jaqueline. As colegas nunca mais a viram, até porque ao retornar a moça estava profundamente amargurada a ponto de não mais sair de casa.
Foi com Cristina, outra moradora do condomínio, que se deu um caso mais grave do que o havido com Jaqueline. Ela tinha apenas doze anos, quando engravidou de seu namorado, oito anos mais velho. Sem que ela se desse conta, de forma arbitrária, ele a levou a uma farmácia, onde um enfermeiro inescrupuloso, amigo do cretino, aplicou-lhe uma injeção terrivelmente dolorosa, para que abortasse. Depois daquele dia, seu interior nunca mais foi o mesmo. Sentia náuseas, dores e melancolia, frequentemente. Outrossim, não vira mais o namorado, ele desaparecera, virara gás. Ela envergonhada nada contou para a mãe, sempre distante da filha. Sentia um vazio enorme e uma voz interior lhe dizia que algo muito precioso havia sido roubado de si. Na escola, conheceu Guida, que tinha a mesma idade que ela e uma história parecida. Guida falava do barato que era a casa de dona Marta. Numa sexta-feira, as duas mais uma outra colega gazetearam aula e foram à casa da referida senhora. O local ficava em uma favela. Era uma casa grande e de muros altos, havia até uma piscina, onde homens e mulheres banhavam-se nus numa orgia de causar arrepios a Baco. Logo, vendo Cristina um pouco arredia, a referida matrona, balançando suas pelangas de quem já fora gorda e fizera uma cirurgia, aproximou-se dela e serviu-lhe um copo de cerveja, depois outro. Em breve sua apatia desapareceu e ela zanzou de braço em braço, de boca em boca, embriagou-se, dormiu sem saber o que lhe estava lhe acontecendo. Chegou a casa pela primeira vez, às onze da noite, esperava que sua mãe, com quem morava sozinha, lhe fizesse a maior censura, mas ela estava trancada no quarto e não quis saber de abrir a porta quando percebeu a chegada da filha. No dia seguinte e nos finais de semana que vieram, a história se repetiu, só que agora ela tinha que pagar pela própria bebida e para isso tinha de vender o corpo, que apesar de tenro era muito disputado. Depois resolveu aceitar um pó branco que as colegas cheiravam para se sentirem bem. Quando a mãe percebeu o descaminho da filha, já era tarde. Ela foi até a delegacia, prestou queixa contra Dona Marta, mas a polícia nada pôde fazer. Cristina saiu de casa e foi morar com a cafetina. Quando a CPI da prostituição infantil passou por lá, nada pôde ser confirmado e a boa Dona Marta continua aliciando meninas para seu alcouce. Hoje Cristina pode ser vista na Ponte dos Ingleses (Ponte Metálica) com outras mulheres de dezesseis anos, todas rotas, desonradas, esfarrapadas. Para viver, transam por uma ninharia com homens que se encontram em semelhante situação, ou roubam na madrugada, enquanto o vento sopra do sertão para o mar, levando aos peixes brutos notícias do mundo civilizado.
CAPÍTULO V

“Ao acordar, naquele dia preliminar da primavera,
senti imediatamente que alguma coisa tinha acontecido de muito
fundamental na ordem do mundo.”
(Sentido de Primavera)
No dia de seu aniversário de treze anos Larissa ganhou um presente não muito condizente com a data. Um não, dois. O pai, logo cedo, alegando falta de liberdade e espaço, botou a roupa numa mochila, pegou a chave do carro e disse:
─ eu sei que vocês não me querem mais aqui, já conseguem viver sem mim, pois eu vou embora.
E saiu sem ligar para os apelos de D. Fernanda, que instava com ele para a necessidade de ele deixar o carro. E o pior era que o veículo estava em seu nome e ele certamente iria vendê-lo, pois segundo afirmara era sua parte nos negócios bem sucedidos.
Larissa não sabia o que sentir, estava atônita com aquela situação. Sabia, era bem verdade, que aquilo mais cedo ou mais tarde iria acontecer. Até por que já acontecera outras vezes. Daquela vez, é certo, era diferente, parecia ser definitivo. Enquanto a mãe sufocava as lágrimas, numa atitude quase apopléctica, nossa amiga ensimesmava-se, numa angústia inexplicável, principalmente porque não entendia o que levava as mulheres a manterem uma relação sem sentido, como aquela, por tanto tempo. Eram recorrentes essas histórias de homens que não trabalham, vivem a explorar a força feminina e ainda se sentem traídos pela inadimplência da sorte. De repente resolvem abandonar o lar e ainda buscam uma indenização, por possíveis serviços prestados. Mas o pior de tudo é que não admitem, por exemplo, que as mulheres organizem suas vidas sentimentais e se tornam verdadeiras máquinas mortíferas. O caráter do pai era por demais covarde para atitudes extremas, mas ela pensava em outras coitadas que existem nestes oito milhões de quilômetros quadrados, era assim que a professora de geografia referia-se ao Brasil, e ela gostara do epíteto. A mãe bem poderia ser uma mulher feliz, pensava ela, se se tivesse livrado do marido há tempo, logo quando percebera a asneira que tinha feito. Mas como se até agora ela ainda chorava sobre um leite estragado! Como se poder dizer para a sociedade “eu ainda sou casada, muito mal casada, mas o sou” fosse a coisa mais importante do mundo, mais importante do que a própria felicidade e a da filha.
Foi com certeza o pior dia de aniversário de que a menina tinha lembrança. Os tios chegaram para o almoço e encontraram D. Fernanda com os olhos vermelhos e um sorriso ridículo nos lábios. O clima que deveria ser de festa era de enterro. Algum comentário um pouco hilário sobre a situação logo era motivo de silêncio sepulcral. A hora do bolo foi antecipada para depois do almoço. Com a barriga cheia de feijoada e de cerveja, o bolo não entrava, transformava-se numa pasta que mexia e remexia pelos quatro cantos da boca, teimando em não descer. O término do dia também foi antecipado. Aos poucos e em sucessão tios, primos e algumas colegas foram-se. Larissa aproveitou um convite de Clarinha para ir até sua casa ver um vídeo e eclipsou-se das vistas de D. Fernanda, deixando-a sozinha com sua infelicidade.
No caminho enquanto Clarinha falava pelos cotovelos, Larissa jurava-se que nunca mais iria pagar o mico de uma reunião familiar para comemorar seu aniversário. Apesar de todos aqueles dissabores, achava boa a idéia de o pai ter ido embora. Agora as duas poderiam viver sozinhas, decidir o que iriam fazer nos finais de semana sem se importar com as rezingas dele embriagado e mandão. Quantas vezes as duas não ficaram em casa esperando que ele chegasse, com medo de um escândalo, apesar do modo acovardado como voltava para casa! Quantas vezes ficaram esperando por ele para irem a uma festa para a qual foram convidados, porque ele ligava de instante e instante dizendo que estava chegando, até que se aborreciam e tiravam a roupa. E o pior é que ele já estava na festa, inventando desculpas para a ausência de ambas. Tinha certeza de que em breve a mãe se acostumaria à nova situação e há males que vêm para o bem, e o que ocorrera nem mal era.
Foi perdida nesse emaranhado de idéias que chegaram à casa da amiga. Quão grande não foi sua surpresa quando ouviu forte e afinado o coro de “parabéns pra você”. As amigas do grupo, todas de preto, aguardavam-na com uma mesa enfeitada onde havia enormes pizzas de calabresa além de diversos tipos de chocolates. Aproveitando a ausência dos pais, Clarinha e as amigas haviam decorado a sala com fotos da dupla russa, Tatu, e várias outras roqueiras adotadas pelo grupo, entre elas Avril Lavigne, “a predileta da Lissa”, como dizia Viviane, a anfitriã, a organizadora daquela festa. Depois dos parabéns e das comilanças, todas as meninas se sentaram nos sofás, almofadas e pelo chão para assistirem a um DVD da dupla Tatu, abriu-se a primeira garrafa de vinho, a única bebida adotada pelo grupo. Larissa era outra, estava radiante. A vontade que sentia era agradecer as amigas pela surpresa. Aquele parecia ser, até o momento, o melhor dia de aniversário que já tivera. Só parecia.
A sala estava escura e silenciosa, só se viam vultos. Na tela, a dupla trocava carícias. Foi aí que Larissa sentiu uma mão tocando de leve seu ombro enquanto uma voz lhe sussurrava:
─ Calma, meu bem, sou eu.
Larissa reconheceu a voz da Vivi e ficou estática, enquanto a mão da menina tocava seus seios e a voz quase inaudível dizia:
─ Você está uma bela mulher, e eu te quero muito.
A voz era lúbrica, engrolada. O hálito quente, recendendo a vinho, arrepiava-lhe a pele. Larissa tentou afastar-se, mas algo, que não a outra, a segurava. A língua de Vivi penetrou-lhe fundo no ouvido, e ela sentiu o corpo todo ser sacudido por uma onda de volúpia. Depois os lábios juntaram-se a aos dela com força, pressionando-os, a língua penetrava-lhe a boca em busca da sua. Larissa sentia nojo, repugnância, entretanto não conseguia se desvencilhar, enquanto a mão daquela já lhe acariciava, por dentro da calcinha, seu clitóris, úmido, abrasado. Aos poucos seus olhos foram se fechando e ela foi-se entregando àquela voluptuosidade que invadia seu ser, os espasmos sacudiam aos poucos seu corpo enquanto uma lassidão foi tomando conta de sua alma, sofregamente a língua de Vivi explorava sua desconhecida gruta. À sua mente, vinham-lhe, como um sonho, os versos de Tio Jonas:


Larissa, tu és assim: mar de pureza,
Vasta floresta tão desconhecida,
Depurada rosa de casto espinho





CAPÍTULO VI

“Aquele riso foi o canto célebre
Da primeira estrela, em vão.
Milagre da primavera intacta
No sepulcro de neve
Rosa aberta ao vento, breve
Muito breve...”
(O Riso)

Quando Larissa chegou a casa, já passavam das onze horas e ela estranhou o fato de sua mãe não ter ligado para seu celular nenhuma vez. Já ia apertando a campainha quando percebeu a porta entreaberta. Ao penetrar tomou um susto: o corpo da mãe estava no meio da sala. A menina correu para a mãe e depois de muito sacudi-la, ela abriu os olhos, foi então que a menina percebeu que a sala tresandava álcool, exalado pela mãe. O que mais a espantou era o fato de ela nunca beber. Espalhadas pelo chão havia algumas latas de cerveja vazias, e a tevê estava ligada. Foi com muito esforço que Larissa conseguiu conduzir a mãe para a cama. Tomadas pelo cansaço físico e moral, dormiram juntas, abraçadas.
No dia seguinte, a jovem não foi ao colégio. Sentia-se indisposta, envergonhada. A mãe não insistiu, por pensar que sabia o motivo principal da indisposição da filha. Ela própria não tinha muita coragem de olhar no olho da menina, depois da carraspana do dia anterior. A distribuição dos salgados para as padarias saiu atrasada e cara, pois tivera de pagar um motobói que lhe percebendo o transtorno lhe arrancou os olhos da cara. Tentou diversas vezes contatar com o marido para tentar negociar a devolução do carro, mas foi em vão, ninguém para onde ligou sabia de seu paradeiro. O remédio foi ficar no prejuízo enquanto não comprava outro transporte. Teve finalmente que contratar definitivamente os serviços do motobói, para realizar as entregas. A ausência do corpo do marido lhe doía menos do que as interrogações que se-lhe faziam cada vez que encontrava alguém. Além do mais havia os olhares libidinosos que os homens lhe lançavam, como se ela fosse um quarto de pensão que, uma vez desocupado, estivesse à disposição de qualquer um. Isso lhe doía bem mais do que a lacuna na cama deixada pelo companheiro. Mas nada lhe doeu tanto quanto os ares de “bem que eu te disse, bem que eu te avisei” dos irmãos e dos pais. Era algo contra o qual ela sempre lutara e pelo qual suportara tanta inépcia do ex-marido.
Larissa foi paulatinamente se recuperando do choque daquele nefasto domingo. A princípio se ausentou do grupo, tinha vergonha de si mesma e evitava encontrar as amigas e principalmente Viviane. Como a mulher que traiu pela primeira vez o marido, ela tinha a impressão de que todas as pessoas liam sua falta escrita na testa. Mas o tempo é engenheiro, não há mal que ele não cure, não há constrangimento que não apague nem pudor que não dissipe. Com uma ajuda fortuita tudo se resolve. Estava ela na parada do ônibus, para a escola, quando chegou Clarinha e a cumprimentou:
─ Oi Lissa. Quanto tempo!
─ Oi.
Respondeu Larissa tentando desviar os olhos, mas foi abraçada pela interlocutora, que, mantendo sua fama de falante compulsiva, colocou-lhe a par das poucas novidades. Sua voz era tão espontânea que a outra aos poucos foi-lhe olhando de frente e respondendo com um meio sorriso. Sua cabecinha fazia e respondia uma infinidade de questionamentos, como “o que terá realmente acontecido naquela noite?” “Será que as outras garotas viram o que aconteceu?”, “Será que não lembram?”, “Será que faziam o mesmo?”. As respostas eram-lhe dadas pelas palavras francas da amiga, pelos gestos expansivos com que Clarinha lhe contava coisas. Quando o ônibus chegou Larissa estava novamente à vontade para olhar quem quer que fosse de frente. Antes de entrar no veículo, ainda ouviu Clarinha gritar:
─ Ah! Ígor perguntou ontem por ti.
─ Obrigada. Disse com um brilho novo no olhar.
CAPÍTULO VII

“Com as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia.”
(Poética)


Com efeito, as coisas se reorganizaram na cabeça de nossa amiga, enquanto em casa a vida tomava seu curso natural, agora sem a presença, digamos incômoda, do pai. Na escola, o ano letivo havia iniciado seu segundo semestre e Larissa voltava a estudar com o intuito de voltar a tirar boas notas. Quanto a amizades, continuava sem tê-las às mancheias, se tinha uma aula em branco, ela recorria à biblioteca para folhear um livro ou uma revista, ou ia à sala de computação teclar com alguém.



No condomínio havia uma novidade nada interessante: falta de água. O síndico não havia pago a conta e ainda processara a Companhia por juros indevidos. Aí, enquanto a situação não se resolvia, a imensa população teve de recorrer às antigas cacimbas, há muito fechadas. Essas cacimbas tinham sido construídas ainda durante as fundações das quadras, cada uma, portanto, possuía a sua, para onde acorriam todas as manhãs os moradores. Era um vaivém de pernas e um tilintar de baldes de ferir os ouvidos. À beira dos cacimbões fazia-se um zunzunzum infernal, em que se misturavam vozes que variavam entre falsetes e graves, num abrir de bocas que não cessava, fosse para cumprimentar alguém, ralhar com uma criança presepeira ou para esculhambar a mãe do responsável por aquela desordem compulsória. Mas como em todo contratempo há sempre quem tire proveito, nesse não podia ser diferente. Era lá, entre um lançamento de balde e outro, que mulheres e homens, preocupados com os bem-estar ou mal-esestares dos outros, se punham a falar da vida alheia. Dava-se notícia de tudo, do novo amante da Iolanda, uma biscate que a cada dois anos mudava de companheiro para com ele ter um filho e assim aumentar sua “aposentadoria”, ao carro novo de seu Armando, um indivíduo que andava feito esmoler, mas que trocava de carro mais do que de cueca. Essas interlocuções ao pé da cacimba eram realizadas com tanto empenho que as protagonistas esqueciam as mãos, e o balde acabava por cair dentro da cacimba, ao que logo acorria um dos meninos, sempre de plantão, para se jogar na água em busca do escorregadio objeto, em troca, é claro, de uma moeda. Mais motivo para falatório:
─ Menino do inferno sai daí, cê tá sujando a água, diabo.
Aquele vaivém de pernas e braços arrefecia no meio da manhã para voltar com todo gás à tarde, mais discussões, mais risos e mais interlocuções. Mas quem realmente tirava proveito da situação era o Cleiton, um grandalhão metido a poeta que não perdia tempo de galantear uma moça, desde que desimpedida, era precavido nosso Shakespeare eternamente apaixonado. Gozava fama de conquistador e tinha sempre um elogio na ponta da língua, para dirigir a um sorriso de mulher. E não era ali, na cacimba de sua quadra, a mais povoada do condomínio, um belo recanto para se fazer uma conquista?
─ Oi – chegava-se ele dirigindo a uma moça, depois de examinar-lhe a mão esquerda – deixe-me ajudá-la. E encetava papo aguado, daqueles que não constroem nenhum Dom Juan, mas que também não saem de moda, já que há sempre alguém emocionalmente abalado à procura de um ombro de aluguel. E assim Cleiton ia edificando sua fama de cordial, gentil, romântico. Outro proveito que ele tirou da estressante situação foi a produção de um cordel, que lhe deu uns bons trocados. Cinco dias depois de o infortúnio começar lá estava ele ao pé das cacimbas divulgando seu novo trabalho:
─ Não perca o imperdível cordel “A hora e a vez do balde”.
A hilária ambigüidade do título foi a grande responsável pelo sucesso do livreto, logo transformado em entradas para o filme do momento, pacotes de pipoca e amassos no escurinho do cinema. E assim nosso folclórico amigo levava a vida, brincando de fazer versos e de amar. Quando alguém fazia algum comentário sobre seu modus vivendi, ele argumentava com uns versos de Vinícius “A gente só leva desta vida a vida que a gente leva”, dava um sorriso e saía.


Foi numa dessas excursões à cacimba que Larissa reencontrou-se com Ígor. Ela acompanhava Gorete, que naqueles dias estava com trabalho dobrado na oficina e na cacimba. Preparava-se para ir embora quando o viu com um balde em cada mão. Ela não sabia se o ignorava ou cumprimentava-o. Foi ele quem teve a iniciativa.
─ Oi. Que que cê tá achando de tudo isso?
─ Chato, né. Mas fazer o quê!
─ Nunca mais tinha te visto.
─ É que eu tava tirando nota baixa e minha mãe mandou estudar. – Mentiu ela.
─ Hoje à noite o pessoal vai se reunir pra vê a história do natal da favela. Cê vai?
Larissa então lembrou que em todo final de ano quando se aproxima o natal os meninos e as meninas se reúnem para angariar roupas e mantimentos para o pessoal de uma favela que fica nas proximidades do condomínio. E aquela era uma boa oportunidade de ver Ígor.
─ Vou, vou sim. Clarinha já tinha me falado. – Mentiu de novo.
─ Tá bom. Te vejo lá. Tchau.
Larissa eclipsou-se das vistas do rapaz, e lembrou-se de que o professor de Português falou uma vez que quem inventa uma mentira tem que inventar mil para encobrir a primeira, e acompanhou Gorete que a esperava adiante.




CAPÍTULO VIII


“Tudo isso pelo encanto
Desse beijo de um minuto
(...)
Mas que cria em seu transporte
De um minuto, a eternidade
E a vida de tanta morte.”
(Um Beijo)












À noite, com efeito, as meninas e os meninos se reuniram na sala contígua à administração do condomínio para decidirem as diretrizes das ações para o natal da favela, como chamavam. As ações foram traçadas. Ficou decidido que além de pedirem roupas e mantimentos no condomínio, eles também o fariam nos condomínios vizinhos e que as meninas utilizar-se-iam de seu chame para convencer as pessoas a fazerem as doações e que os meninos iriam buscá-las. No final da reunião, Ígor se aproximou de Larissa, que deu graças a Deus por essa ocorrência. É que Viviane durante a reunião não tirou os olhos de cima dela, a ponto de Clarinha comentar:
─ Por que a Viviane só fala olhando pra você? Parece até que só tem você aqui!
Ao final da reunião a loira se aproximou de Larissa:
─ Oi. Aonde você andou? Nunca mais tinha te visto – e segredando-lhe no ouvido – eu já estava com saudades dos teus olhos.
─ É, eu tava estudando. Disse a menina com uma voz meio sumida.
─ Eu não consigo deixar de pensar em você – Tornou Viviane, insinuante.
Larissa sentiu uma sensação estranha a qual não conseguia explicar. Não sabia se era uma vontade de correr, esbofetear a garota, retirar-se dali. Era tudo misturado, mas algo a paralisava. Os olhos de Vivi exerciam certo poder sobre ela, o cheiro do suor da menina penetrava suas narinas e a deixava com todos os sentidos alerta. Foi nesse momento que o menino se aproximou. Houve um silêncio constrangedor entre o trio, até que Vivi, sentindo-se de mais, despediu-se:
─ Tchau, Lissa. Depois eu te ligo.
Ígor começou então a falar sobre o que ficou decidido na reunião, depois falou sobre a cacimba, sobre um acidente que havia ocorrido na avenida, sobre o perigo de se andar de moto, do exorbitante preço da gasolina, das eleições para presidente, enquanto isso Larissa ruminava como é interessante o cérebro humano, como as pessoas mudam de assunto sem mesmo se dar conta disso. Os assuntos vão-se sucedendo de tal forma que se começa a falar de ouro e se conclui com couro. Depois pensou em Vivi. Como aquela menina a irritava! Naquele momento foi resgata ao plano dos imortais por alguma coisa que o rapaz dissera, algo como namorar. Os dois estavam em pé, ainda perto da sala onde ocorrera a reunião. Os outros já haviam sumido, estavam praticamente sós, apenas um ou outro passante se dirigia à frente do condomínio. Ela aproximou o rosto do rosto do menino e o beijou nos lábios. Movido pela surpresa ele teve quase o impulso de se afastar, mas ela segurou-lhe o rosto impedindo-o de fazê-lo. As duas bocas uniram-se como se quisessem eliminar uma a outra. Suas línguas se tocaram e os narizes sentiram mutuamente os cheiros que se confundiam. Durou pouco, entretanto foi suficiente para que ambos percebessem que havia algo neles que os tornava um par, mas que eles não sabiam ainda o que era. Era a química de seus corpos, o cheiro emanado de suas entranhas era bem recebido pelo outro. Estava explicado por que quando um chega próximo ao outro, seus corpos pedem a fusão. O silêncio que tornava o barulho de um grilo audível foi quebrado pela menina:
─ Desculpa, mas deu vontade. Sua boca é tão bonita. – falou ela corajosamente, com um frio terrível na espinha.
Foi a vez de Ígor repetir o gesto da menina, e a confusão de bocas se repetiu. Depois os dois foram para a frente do condomínio e mostraram-se aos outros numa atitude libertária, sem pejo. Ela estava feliz. Mas não lhe passou despercebido o olhar fuzilante que lhe dirigiu Vivi.


Chegando a casa a menina contou, com certo temor, a novidade à mãe. D. Fernanda tomou um susto:
─ O quê, menina, cê tá namorando, com quem?
─ Com o Ígor, mãe, cê num conhece, não. Ele é super legal depois eu te apresento.
Dona Fernanda olhou para a filha e lembrou-se de quando ela era uma meninazinha. As lágrimas vieram-lhe aos olhos. “Como o tempo passa rápido, Meu Deus, minha filha já está uma moça! Abençoe-a, por favor.”
No quarto, Larissa sentiu-se nova, diferente da menina que acordou de manhã. Era realmente singular o que sentia, uma vontade de gritar, de abrir a janela e acenar para quem passasse lá embaixo. Ela tinha um namorado, podia trazê-lo para casa, ir ao cinema com ele ou ao shopping. Sobre o que conversariam? Tudo aquilo era realmente novo. Levantou-se da cama e foi até o computador para teclar com Juliana e contar-lhe a novidade. Mas desistiu, voltou para a cama, desligou a luz, tentou dormir, embalde. Seu corpo fervilhava, havia uma energia extra que não lhe permitia pregar olho. Ligou novamente a luz, pegou o porta-retrato sob a cabeceira e leu mais uma vez o poema presenteado por tio Jonas. Seus olhos se fixaram, dessa feita, nos dois últimos versos da segunda estrofe:
Pronta a amar, augusto, a quem aprouver,
Ó impudente luz de dourada beleza.

De posse do dicionário, Larissa procurou o significado das três palavras cujo significado desconhecia: aprouver, augusto e impudente. Só bem tarde conseguiu dormir certa de que havia decifrado mais uma sequência do poema feito para si.

Nos dias que se seguiram edificou-se profunda mudança na menina. Estava mais falante. As colegas foram as primeiras a elogiar seu novo comportamento. Até sua pele ficou mais viçosa, mais limpa, seus cabelos adquiriram novo brilho e o sorriso, característica inata dos leoninos, bailava em seus lábios. Só Vivi não estava gostando daquilo e remoía um plano para acabar com aquela alegria.


quinta-feira, 2 de julho de 2009

REFLEXÃO SOBRE ÉTICA

REFLEXÃO SOBRE éTICA

Certa vez um aluno chegou-se a mim e perguntou sobre a questão da crase facultativa. Depois de devidamente esclarecido, ele me disse que sua professora tinha considerado incorreta uma questão sobre pronome possessivo e o uso do acento grave. Eu o aconselhei a falar com ela, que com certeza se enganara e, assim, reveria sua posição. Fiquei então pensando como a professora ficaria feliz por seu aluno ter aprendido as regras do uso do sinal de crase, inclusive os casos facultativos!
Entretanto a professora passou-lhe uma descompostura, conseguiu que ele fosse suspenso por desacato e ainda por cima acusou-me de não ter ética profissional. Fiquei então pensando o que é ética. Eu sou assim, conheço um monte de coisas que ninguém sabe e desconheço aquilo que é lugar comum. Fui então pesquisar sobre o assunto. Li um monte de coisas a respeito, mas nada me foi elucidador. Vi várias definições de filósofos, sociólogos, psicólogos, e nada. Depois compreendi que esses caras não sabem nada e pensam que sabem tudo.
Resolvi, pois, ver isso na prática. Decidi acompanhar jornais e revistas que trazem notícias sobre as atitudes dos seres humanos mais éticos. Analisei posturas de políticos e sua insaciável fome de poder; atitudes de pessoas ligadas à lei, muitos vendendo sua alma ao diabo por uma quantia em dinheiro, para, ao morrer, deixar aos herdeiros de suas misérias morais; pessoas comuns e profissionais diversos negando aos clientes o direito de ser verdadeiramente beneficiados com seu trabalho...
Depois de algum tempo, compreendi finalmente o que é ética (nego-me a usar inicial maiúscula) e o que é ter ética. ética é a arte de conviver com a raça humana. Sim porque lidar na selva, por exemplo, com leões famintos, hienas carniceiras, sol causticante e lutar pela sobrevivência é fichinha diante da difícil convivência com a volúpia humana. Ter ética é mentir e deixar mentir. Se não quiser mentir, não o faça, mas não impeça que outros mintam. Roubar e deixar roubar. Não quer roubar? Não precisa, mas o que você tem com o roubo dos outros? Burle a lei, transforme o princípio da publicidade da gestão pública em atos secretos. Não quer? Deixe para seu colega no senado que ele gosta. Se você quer ser responsável no seu trabalho, problema seu, mas querer que outros sejam também! Pô já é faltar muito com a ética. Ser desonesto é uma dádiva do indivíduo ético. Feche os olhos, você não tem nada a ver com isso, ou então tenha: junte-se a eles. A traição e a ingratidão são talvez a maior virtude das pessoas éticas, seja em casa, no trabalho ou com os amigos, depois é só dizer que foi necessário, abraçar os seus e está tudo novo.
Depois de chegar a essas conclusões, fique feliz por, como disse a professora mencionada, não ter ética, pois sendo assim não faço nenhum mal a sociedade. Mas depois fiquei triste por saber que a grande massa humana está sob a regência dos detentores dessa alta virtude.
(Professor Alves)

terça-feira, 30 de junho de 2009

PARA UMA CRIANÇA DE OITO ANOS

PARA ISABELE, NO SEU ANIVERSÁRIO DE OITO ANOS


Isabele, hoje que você está comemorando seus oito anos, tenho algumas palavras para você. Primeiro queria dizer-lhe que me esforcei para fazer um poema bem bonito, que você lesse e ficasse com orgulho e dissesse para suas amigas: “Vejam só o que meu padrinho fez para mim!!” Mas não deu. Talvez minha já parca inspiração tenha se intimidado diante desse momento tão grandioso. Sim porque fazer OITO anos é o momento mais significativo da nossa existência. Afinal aos oito anos já estamos em um décimo da vida. Casimiro de Abreu fez seu mais belo poema em homenagem aos seus oito anos. Ou (a inspiração) tenha se inibido diante de sua beleza e de sua esperta sapiência.
Segundo, queria deixar meus sinceros votos de felicidade, e dizer-lhe que para ser feliz não é preciso muito esforço. É suficiente, para isso, que não envelheça por dentro, é preciso manter eterna a criança que nos habita aos oito anos de idade. É preciso que mantenha acesa a inocência desse momento, mesmo que depois o mundo se descortine com suas maldades e perversidades. Feche os olhos e os ouvidos a tudo isso e os mantenha anchos para as coisas boas, para as coisas simples, para a bondade humana. Admire o voo das borboletas, mas não deixe de torcer pela sorte da lagarta; ilumine-se nos raios de sol, mas não deixe de refletir o mundo por entre os pingos da chuva; deixe seus lábios sempre abertos em pétalas de sorriso, mas sem edificá-lo na amargura alheia. Não esqueça o mais importante: cultive amigos! Amigos de verdade, que estejam com você em todos os momentos, como naquela história do homem e do peixinho (lembra?). Tenha-os em abundância, como o jardineiro às flores, como o avaro ao dinheiro. Quando crescer, escolha uma profissão que lhe dê um mundo de conforto, mas que seja útil ao semelhante; que lhe dê prazer em realizá-la, mas também que apraza aos outros, principalmente aos mais necessitados.
Desculpe-me pela ausência da poesia. Sei que ela um dia virá, fomentada no sorriso que baila em seus lábios e na inocência que rodeia seu ser. Não será digna de uma publicação, mas espero que traga consigo uma boa dose de pureza e sabedoria.

Professor Alves