CAPÍTULO VII
“Amor, e o que é o sofrer
para mim que estou jurado
pra morrer de amor!”
(Djavan)
Eu ando por uma rua cheia de pedras e chego a uma oficina onde com um serrote um homem transforma uma tora de madeira em vários pedaços, em seguida ele com um formão vai moldando-os até dar a eles forma de encaixe. Estou numa oficina de manufatura lá fazemos diversos móveis, além de molduras para quadro e esculturas. Eu sou o responsável por essas últimas, sou uma espécie de artista. Com as sobras de madeiras eu faço o meu trabalho de formas diversas, esse é o meu modo de expor meus sentimentos. Ao chegar à referida oficina sento-me e vou terminar um trabalho. Depois de lixar bastante várias conchas, eu as colo com cuidado, encaixando-as umas às outras formando a moldura de um quadro em que há a xilogravura de uma jovem. Enquanto executo esse trabalho sou abordado pelo meu companheiro, que trabalha ao lado:
─ E aí Brhadzag, já desistiu da moça?
─ Claro que não, nós nos amamos e nada vai fazer com que desistamos um do outro, nem que para isso seja preciso mil anos.
─ Já tinha ouvido dizer que os artesãos eram malucos, mas você é pior que uma mula. Você sabe que o pai a quer para si e, mesmo sendo isso contra as leis sagradas, é ele quem manda na aldeia. Se você se interpuser entre ambos ele o eliminará. Ele já deliberou isso para quem quisesse ouvir.
Eu não respondo nem comento essas palavras. Em minha cabeça só reside uma idéia: a de fugir com Ranjicniami dali daquela aldeia.
A aldeia fica numa ilha afastada de qualquer coisa que podemos chamar civilização, pelo fato de ser constantemente assolada por ondas gigantes. Seus antigos moradores viram ali uma forma de fugirem da miséria imposta pelo estado de fato e aos poucos foram se habituando às ondas gigantes que chegam sem aviso e destroem tudo que encontram pela frente. Às vezes com maior ou menor intensidade. Já houve vezes em que a aldeia foi totalmente destruída, para ser novamente edificada, pois os moradores preferem ser vítimas da natureza a voltarem à miséria de então. A maioria dos aldeãos, resignada, crê que as ondas vêm lavar os pecados dos antigos habitantes dali, que foram tragados pela terra a mando do demônio, e agora o mar, a mando do altíssimo, lava-lhes os pecados com fortes ondas.
Ronstabrhami é o pai da moça. É ele quem manda na aldeia, manipula os pescadores e odeia os artesãos, que vivem à revelia de suas ordens. Se dependesse dele não haveria manufaturas por ali. Entretanto trata-se de uma necessidade coletiva, como em toda sociedade. As mulheres usam sempre um manto de cor marrom enquanto os homens vestem-se à vontade. Trata-se de uma cultura patriarcal em que as mulheres não têm direito algum sobre nada. Apesar de vivermos numa sociedade sem estado de fato, aqueles que se colocam como líder, entre eles Ronstabrhami, trouxeram o ranço do poder e dominam com palavras os submissos, sobremaneira as mulheres “que não podem erguer a voz contra os homens, não podem vestir-se de tal forma que lhe apareça partes do corpo, pois o altíssimo, aquele que criou o mundo, que nos deu a vida, lançará sobre nós todas estrelas do céu.” O povo saiu do fogo e caiu na brasa. Havia aqueles que procuravam não baixar a cabeça, mas o temor a Deus era implacável.
A moça é Ranjicniami, filha de Ronstabrhami. A vila inteira comenta em surdina que o pai, ao perder a mulher durante parto, odiara a filha e assim decidira que quando ela chegasse à puberdade ele a possuiria em lugar da esposa. Embora desde criança conhecesse a família de Ronstabrhami, não conhecia Ranjicniami. Certa vez quando me dirigia ao deserto para o jejum anual, que todos fazemos em data escolhida, passando por umas ruínas da antiga civilização, ouvi som de choro baixinho. Dirigi-me até lá e vi o rosto mais bonito que já vira até então, que mesmo imaginado por um artista não teria tanta beleza. Mesmo envolto em véu e lágrimas, não perdia a feição quase sacra. Era Ranjicniami, que ao me ver encolheu-se a um canto:
─ Calma – disse-lhe eu – não vou machucá-la. O que faz você aqui?
Ela então me contou entre soluços que seu pai a queria possuir. Havia alguns meses que ele começara a reivindicar que ela desse a ele aquilo que lhe tirara ao nascer e cada dia o assédio tornava-se mais amiúde. Não sei o que me ocorreu diante de ser tão belo e ao mesmo tempo tão necessitado de proteção, só sei que não me contive e a beijei. Ela assustou-se e se afastou de mim.
─ Desculpe-me, – falei desorientado – não foi por mal, perdão – instei.
Ela aproximou-se novamente de mim, pousou o rosto no meu peito e falou baixinho com segurança:
─ Então é você! Agora eu o reconheço.
Eu é que não estava entendendo. Mas vendo meu semblante interrogativo continuou:
─ Ontem à noite eu tive um sonho. Eu estava desesperada e me apareceu uma imagem feita de luz e me disse que em breve eu encontraria uma pessoa que me ajudaria no meu calvário. Eu então perguntei como identificaria essa pessoa, ao que a luz me respondeu: “Ela lhe dará o sinal.” Você acaba de me dar esse sinal. Pois não é o beijo o sinal da eternidade?
Eu, apesar da surpresa, não achava a situação estranha, era como se tudo aquilo fosse acontecer e estivesse apenas esperando o momento certo (há tempo certo para tudo). Depois passamos a nos ver com freqüência e cada vez a amava com mais intensidade. Ela era a minha razão de existir, todas as minhas imagens tinham o seu rosto. Mas o óbvio se deu. Ronstabrhami descobriu nosso idílio e surrou a filha, trancando-a em seguida num quarto. Ele era mais covarde do que eu imaginava. Como não havia homens a sua disposição, não enfrentava seu desafeto, preferia castigar a filha para obrigá-la a submeter-se a ele. Tentei todos os meios de vê-la. Debalde foi, pois Ronstabrhami passava os dias de guarda, como um cão, e as mulheres que trabalhavam em sua casa temiam por suas vidas.
Eu estou na praia catando conchas para a moldura de um quadro de uma senhora morta, solicitado pelo viúvo, que me pagaria bem pelo rosto da esposa. Com essas moedas somadas às que eu tinha guardado eu pretendo, construir um barco e com ele atingir o continente junto com Ranjicniami. De repente eu ouço um barulho ensurdecedor, semelhante ao ruído de um leão, viro-me e vejo a onda gigante que desponta no horizonte. No meu desespero só penso em ajudar umas crianças que brincam próximo ao dique. Corro para lá e vejo o torpor impressos nos rostos infantis. Não tenho dúvida, preciso salvá-las. Pego-as e num esforço heróico transporto-as até o ponto mais alto, livre do alcance das águas. No entanto, quando me viro, vejo Ranjicniami, correndo desesperada para mim. Num relance eu imagino o que aconteceu. Ela conseguira se libertar do pai e fora atrás de mim, imaginando onde eu me encontrava, fora à praia. Eu vejo a onda gigante se aproximando com furor mais intenso, normalmente ela leva entre vinte e trinta segundos quando desponta no horizonte até rebentar no dique. Resta-me, pois, alguns segundos para salvar Ranjicniami. Salto por cima das rochas ferindo as pernas, sem sentir dor, quando chego até ela, ouço-a dizer “você não deveria ter descido até aqui”. Resignado do que nos espera, abraço-a. Somos arremessados contra a parede de rocha com tanta violência, que nossos ossos estalam ao mesmo tempo que sinto os pulmões serem invadidos pela água. Em seguida não sinto nada. Estou com Ranjicniami nos braços, ela me sorri me beija e ficamos olhando as águas revoltas que cobrem toda a praia. Vejo nitidamente as pessoas se aproximando, olhando assustadas a água. Dali podemos ver alguns corpos boiando, inclusive o meu e o de Ranjicniami, abraçados. Olho para ela pasmo, mas ela não tem o mesmo sentimento, apenas sorri. Uma luz nesse instante desce sobre mim e outra sobre ela. Uma luz tão intensa que a luz do sol parece trevas se comparada a ela. Sou levado para um lado e Ranjicniami para o outro.
Acordei, já com dia claro. O sol já me entrara pela janela, minha mãe batia na porta com violência dizendo que eu estava atrasado para o compromisso que assumira com ela de ir fazer o restante das compras de Natal.
─ Já vou. – Respondi, mas fiquei um bom tempo refletindo a respeito daquele sonho. Com certeza era um regresso à mais importante das minhas vidas passadas. Era esse o meu destino, encontrar Aliel e fazê-la feliz, nesse ínterim eu deveria ajudar outras pessoas. Lembrei-me então de Wellington. Eu deveria escolher uma profissão que salvasse vidas, tendo ao mesmo tempo que encontrar a mulher que me fora destinada há quase dez séculos.
“Amor, e o que é o sofrer
para mim que estou jurado
pra morrer de amor!”
(Djavan)
Eu ando por uma rua cheia de pedras e chego a uma oficina onde com um serrote um homem transforma uma tora de madeira em vários pedaços, em seguida ele com um formão vai moldando-os até dar a eles forma de encaixe. Estou numa oficina de manufatura lá fazemos diversos móveis, além de molduras para quadro e esculturas. Eu sou o responsável por essas últimas, sou uma espécie de artista. Com as sobras de madeiras eu faço o meu trabalho de formas diversas, esse é o meu modo de expor meus sentimentos. Ao chegar à referida oficina sento-me e vou terminar um trabalho. Depois de lixar bastante várias conchas, eu as colo com cuidado, encaixando-as umas às outras formando a moldura de um quadro em que há a xilogravura de uma jovem. Enquanto executo esse trabalho sou abordado pelo meu companheiro, que trabalha ao lado:
─ E aí Brhadzag, já desistiu da moça?
─ Claro que não, nós nos amamos e nada vai fazer com que desistamos um do outro, nem que para isso seja preciso mil anos.
─ Já tinha ouvido dizer que os artesãos eram malucos, mas você é pior que uma mula. Você sabe que o pai a quer para si e, mesmo sendo isso contra as leis sagradas, é ele quem manda na aldeia. Se você se interpuser entre ambos ele o eliminará. Ele já deliberou isso para quem quisesse ouvir.
Eu não respondo nem comento essas palavras. Em minha cabeça só reside uma idéia: a de fugir com Ranjicniami dali daquela aldeia.
A aldeia fica numa ilha afastada de qualquer coisa que podemos chamar civilização, pelo fato de ser constantemente assolada por ondas gigantes. Seus antigos moradores viram ali uma forma de fugirem da miséria imposta pelo estado de fato e aos poucos foram se habituando às ondas gigantes que chegam sem aviso e destroem tudo que encontram pela frente. Às vezes com maior ou menor intensidade. Já houve vezes em que a aldeia foi totalmente destruída, para ser novamente edificada, pois os moradores preferem ser vítimas da natureza a voltarem à miséria de então. A maioria dos aldeãos, resignada, crê que as ondas vêm lavar os pecados dos antigos habitantes dali, que foram tragados pela terra a mando do demônio, e agora o mar, a mando do altíssimo, lava-lhes os pecados com fortes ondas.
Ronstabrhami é o pai da moça. É ele quem manda na aldeia, manipula os pescadores e odeia os artesãos, que vivem à revelia de suas ordens. Se dependesse dele não haveria manufaturas por ali. Entretanto trata-se de uma necessidade coletiva, como em toda sociedade. As mulheres usam sempre um manto de cor marrom enquanto os homens vestem-se à vontade. Trata-se de uma cultura patriarcal em que as mulheres não têm direito algum sobre nada. Apesar de vivermos numa sociedade sem estado de fato, aqueles que se colocam como líder, entre eles Ronstabrhami, trouxeram o ranço do poder e dominam com palavras os submissos, sobremaneira as mulheres “que não podem erguer a voz contra os homens, não podem vestir-se de tal forma que lhe apareça partes do corpo, pois o altíssimo, aquele que criou o mundo, que nos deu a vida, lançará sobre nós todas estrelas do céu.” O povo saiu do fogo e caiu na brasa. Havia aqueles que procuravam não baixar a cabeça, mas o temor a Deus era implacável.
A moça é Ranjicniami, filha de Ronstabrhami. A vila inteira comenta em surdina que o pai, ao perder a mulher durante parto, odiara a filha e assim decidira que quando ela chegasse à puberdade ele a possuiria em lugar da esposa. Embora desde criança conhecesse a família de Ronstabrhami, não conhecia Ranjicniami. Certa vez quando me dirigia ao deserto para o jejum anual, que todos fazemos em data escolhida, passando por umas ruínas da antiga civilização, ouvi som de choro baixinho. Dirigi-me até lá e vi o rosto mais bonito que já vira até então, que mesmo imaginado por um artista não teria tanta beleza. Mesmo envolto em véu e lágrimas, não perdia a feição quase sacra. Era Ranjicniami, que ao me ver encolheu-se a um canto:
─ Calma – disse-lhe eu – não vou machucá-la. O que faz você aqui?
Ela então me contou entre soluços que seu pai a queria possuir. Havia alguns meses que ele começara a reivindicar que ela desse a ele aquilo que lhe tirara ao nascer e cada dia o assédio tornava-se mais amiúde. Não sei o que me ocorreu diante de ser tão belo e ao mesmo tempo tão necessitado de proteção, só sei que não me contive e a beijei. Ela assustou-se e se afastou de mim.
─ Desculpe-me, – falei desorientado – não foi por mal, perdão – instei.
Ela aproximou-se novamente de mim, pousou o rosto no meu peito e falou baixinho com segurança:
─ Então é você! Agora eu o reconheço.
Eu é que não estava entendendo. Mas vendo meu semblante interrogativo continuou:
─ Ontem à noite eu tive um sonho. Eu estava desesperada e me apareceu uma imagem feita de luz e me disse que em breve eu encontraria uma pessoa que me ajudaria no meu calvário. Eu então perguntei como identificaria essa pessoa, ao que a luz me respondeu: “Ela lhe dará o sinal.” Você acaba de me dar esse sinal. Pois não é o beijo o sinal da eternidade?
Eu, apesar da surpresa, não achava a situação estranha, era como se tudo aquilo fosse acontecer e estivesse apenas esperando o momento certo (há tempo certo para tudo). Depois passamos a nos ver com freqüência e cada vez a amava com mais intensidade. Ela era a minha razão de existir, todas as minhas imagens tinham o seu rosto. Mas o óbvio se deu. Ronstabrhami descobriu nosso idílio e surrou a filha, trancando-a em seguida num quarto. Ele era mais covarde do que eu imaginava. Como não havia homens a sua disposição, não enfrentava seu desafeto, preferia castigar a filha para obrigá-la a submeter-se a ele. Tentei todos os meios de vê-la. Debalde foi, pois Ronstabrhami passava os dias de guarda, como um cão, e as mulheres que trabalhavam em sua casa temiam por suas vidas.
Eu estou na praia catando conchas para a moldura de um quadro de uma senhora morta, solicitado pelo viúvo, que me pagaria bem pelo rosto da esposa. Com essas moedas somadas às que eu tinha guardado eu pretendo, construir um barco e com ele atingir o continente junto com Ranjicniami. De repente eu ouço um barulho ensurdecedor, semelhante ao ruído de um leão, viro-me e vejo a onda gigante que desponta no horizonte. No meu desespero só penso em ajudar umas crianças que brincam próximo ao dique. Corro para lá e vejo o torpor impressos nos rostos infantis. Não tenho dúvida, preciso salvá-las. Pego-as e num esforço heróico transporto-as até o ponto mais alto, livre do alcance das águas. No entanto, quando me viro, vejo Ranjicniami, correndo desesperada para mim. Num relance eu imagino o que aconteceu. Ela conseguira se libertar do pai e fora atrás de mim, imaginando onde eu me encontrava, fora à praia. Eu vejo a onda gigante se aproximando com furor mais intenso, normalmente ela leva entre vinte e trinta segundos quando desponta no horizonte até rebentar no dique. Resta-me, pois, alguns segundos para salvar Ranjicniami. Salto por cima das rochas ferindo as pernas, sem sentir dor, quando chego até ela, ouço-a dizer “você não deveria ter descido até aqui”. Resignado do que nos espera, abraço-a. Somos arremessados contra a parede de rocha com tanta violência, que nossos ossos estalam ao mesmo tempo que sinto os pulmões serem invadidos pela água. Em seguida não sinto nada. Estou com Ranjicniami nos braços, ela me sorri me beija e ficamos olhando as águas revoltas que cobrem toda a praia. Vejo nitidamente as pessoas se aproximando, olhando assustadas a água. Dali podemos ver alguns corpos boiando, inclusive o meu e o de Ranjicniami, abraçados. Olho para ela pasmo, mas ela não tem o mesmo sentimento, apenas sorri. Uma luz nesse instante desce sobre mim e outra sobre ela. Uma luz tão intensa que a luz do sol parece trevas se comparada a ela. Sou levado para um lado e Ranjicniami para o outro.
Acordei, já com dia claro. O sol já me entrara pela janela, minha mãe batia na porta com violência dizendo que eu estava atrasado para o compromisso que assumira com ela de ir fazer o restante das compras de Natal.
─ Já vou. – Respondi, mas fiquei um bom tempo refletindo a respeito daquele sonho. Com certeza era um regresso à mais importante das minhas vidas passadas. Era esse o meu destino, encontrar Aliel e fazê-la feliz, nesse ínterim eu deveria ajudar outras pessoas. Lembrei-me então de Wellington. Eu deveria escolher uma profissão que salvasse vidas, tendo ao mesmo tempo que encontrar a mulher que me fora destinada há quase dez séculos.