quarta-feira, 4 de março de 2009

CAPÍTULO X
“A minha felicidade está sonhando
Nos olhos de minha namorada
É como esta noite
Passando, passando
Em busca da madrugada”
(Vinícius de Morais)

Era começo de ano novo e recebi muitos telefonemas de parabéns, agradecia meio constrangido, pois não achava que passar num vestibular não era motivo para tanta celeuma. Uma noite, já estava quase dormindo quando telefone tocou mais uma vez, já estava meio aborrecido, atendi com uma voz um tanto sem graça, quando reconheci a voz. Era Aliel. Nossa que coisa boa me estava acontecendo. O mais estranho era que sua voz no telefone me levava no tempo há quase mil anos, era a voz de Ranjicniami . despertei para entender o que ela falava:
─ Oi, cê tá me ouvindo?
─ Estou, claro, tudo bem? – Falei enquanto me recompunha do susto.
─ Você não me ligou, tá sumido. – Falou ela.
─ Liguei sim – retruquei já refeito – é que você nunca estava. Então pensei que você não queria falar comigo.
─ Pois ninguém me deu recado algum.
─ E por que você não ligou?
─ Eu tinha perdido o telefone, rapaz, acredita? – Falou, como um garoto – Só hoje é que eu achei. E eu pensei assim: num vou ligar não, se o Daniel quisesse falar comigo ele tinha me ligado.
─ Tá bom – disse eu já quase sem palavras.
─ E quando eu te vejo? – Indagou ela de súbito.
─ Não sei, quando você quiser... e o seu namorado?
─ Namorado! Você quer dizer noivo... é minha mãe resolveu que nós devemos ficar noivos e casar no próximo ano. Sim mas a gente podia se ver... ou você não quer?
─ Claro! – disse eu – Mas onde?
─ No shopping, naquele mesmo lugar. Tá bom?
─ Tá ótimo.
Fiquei por muito tempo saboreando a voz daquela menina que estava destinada a mim, mas que ia casar-se. Não sei por que eu não pensava no fato de ela estar noiva eu só pensava em sua voz milenar e eu via o rosto de Ranjicniami e o cheiro do mar invadindo minhas narinas.
No dia seguinte eu estava como combinado à sua espera na praça de alimentação quando chegou o garçom e me entregou um bilhete no qual estava escrito: “passei mais cedo e deixei esse bilhete com o garçom porque não posso vir ao seu encontro, desculpa tá.” Nossa que angústia medonha eu senti. Que chato. Eu me preparara desde a manhã para ser feliz e de repente vejo minha felicidade roubada por um pedaço de papel. Chamei o garçom, paguei a conta e quando ia me levantando ouvi uma voz no meu ouvido, baixa e em forma de uma melodia de ninar “enganei o bobo na casca do ovo”. Era aliel, que sorria a minha frente. Eu não sabia o que pensar ou o que dizer, eu estava abobalhado. Não sabia se sorria ou ficava sério. Só quem ama e se defronta com a mulher amada inesperadamente sabe o aspecto patético com que eu fiquei. Eu não me contive, num gesto súbito tresloucado, apaixonado eu a beijei, enquanto ela ria. Aos poucos seu sorriso foi sumindo e seus olhos fechando e eu pude senti-la. Ah, meus amigos, o que eu senti naquele momento foi algo indescritível, sentir o sabor de seus lábios o contato com sua pele é algo que nunca vou conseguir descrever por mais que me esforce. Depois não iria beijar muitas mulheres, mas aquela sensação de beijar Aliel tenho certeza que não há igual eu... Depois de nos recompormos, eu não tinha palavras. Ela foi quem começou:
─ Eu adorei esse beijo e esperava por eles há tempo, mas eu sou uma moça noiva, seu Daniel, o que as pessoas vão pensar. Deixa que eu faço. – e me beijou de novo, enquanto ria.
Durante o resto da tarde ficamos juntos. Ela me contou a história de seu noivado, que esperava que o noivo desistisse desse casamento, que havia sonhado comigo, e eu embebido fitando aquele rosto lindo. Depois eu falei de minha aprovação no vestibular, das angústias que sentia toda vez que ligava para ela e ninguém a chamava. Rimos brincamos um com o outro e nos beijamos como se a vida fosse um beijo e nós estivéssemos simplesmente vivendo. E ela sempre com suas brincadeiras e seu jeito brejeiro só me fazia amá-la mais ainda. À noite, enquanto repassava o dia, pensava como seria embriagante ter Aliel nos meus braços, para nunca mais nos despedirmos, mas até eu duvidava de que esse dia chegasse. Às vezes imaginava ser inacessível ficarmos juntos para todo o sempre, e ninguém ou nada nos separar. Quanto ao noivado, eu não me importava, como se já esperasse por isso, como se já soubesse o desenrolar dos acontecimentos, como se previsse que não era chegado ainda o momento, e, pior, que esse dia nunca chegaria, e minha sina fosse andar pela terra feito um sonâmbulo em busca da felicidade plena que me era já clandestina.
A partir daquele dia passamos a nos ver quase todas as tardes, e eu passei a cogitar a idéia de que nunca mais fôssemos deixar de nos encontrar. Aliel pouco falava de seus problemas a ponto de eu os esquecer. Estava vivendo um momento singular. Por um lado a faculdade que me realizava a cada dia como ser humano. Era aquilo para que me havia destinado; do outro, Aliel que me embriagava com suas brincadeiras, seu sorriso e seus beijos, como se a vida fosse o meu desejo, beijar o seu sorriso sem cansaço era o portão do paraíso que se me abria em terra, às vezes me beliscava para ver se não estava sonhando. Noutras pensava se aliel não estava era brincando comigo. E no meio dessas reflexões era surpreendido por um beijo ou uma atitude inesperada dela..
No entanto esse idílio teve fim, o que era doce se acabou, e o que me restou foi o doce amargo da resignação. Um dia estava a sua espera, quando uma senhora se aproximou de mim, sentou-se a minha frente e me encarou. Percebendo meu semblante questionador, ela me estendeu um papel. Era um atestado médico, nele havia escrito um diagnóstico nada agradável para mim. Segundo o papel Aliel sofria de perturbações mentais, esquizofrenia que se alternavam com estados de euforia compulsiva.
─ Desde que era uma garotinha – explicou a mulher – Aliel alternava estados de depressão e alegria. Falava constantemente de um irmão que nunca teve...
Nesse ponto eu a interrompi para lembrar-lhe que eu a havia conhecido na praia há dez anos. A mulher, no entanto, ignorou minhas palavras e continuou impassível:
─ ... No início nós pensávamos que era só mania de criança. Com a mente muito fértil, elas costumam imaginar coisas. No entanto o caso se agravou e tivemos de levá-la ao médico. O resultado infelizmente é esse que você está vendo. Nós procuramos fazer tudo para que ela se sentisse uma criatura normal, mas ela nos desobedece e tem novas recaídas. Numa de suas crises, Dr. Ernani iniciou um tratamento, e ela melhorou sensivelmente. Com o tempo e o convívio ele acabou se apaixonando por ela e a pediu em casamento. Ele é viúvo, não tem filhos e é tão dedicado a ela que eu e meu marido achamos interessante a idéia. Porque se ele é psiquiatra e se dedica tanto a ela, daria um bom marido. O Senhor não acha? – como não obteve resposta para sua pergunta cretina, foi em frente – O senhor é um rapaz novo, inteligente deve compreender o que é melhor para Aliel. Por favor, afaste-se dela, ou melhor, esqueça-a, se acaso você a encontrar, o que vai ser um pouco difícil – nesse momento a mulher deixou escapar um leve sorriso de desdém – diga a ela que não lhe quer mais, que ama outra. Passar be... – ia se despedindo, mas eu a interrompi:
─ E onde está sua filha?
─ foi passear com o noivo, foram à Europa, ele disse que os ares europeus vão ajudá-la no tratamento. E por favor, deixe-a em paz – disse isso e afastou-se.
Eu fiquei arrasado, pensando em quem estava mentindo, ela ou Aliel, e que noivo misterioso era esse, um vizinho ou um psiquiatra viúvo. E me lembrei de Ranjicniami e de seu problema com o pai, também viúvo. Tive vontade de levantar dali, seguir aquela mulher para ver onde ela morava, no entanto pairou sobre mim uma inatividade que me perturbava. Não havia nada que eu pudesse fazer, a não ser esperar, como se a vida me fosse essa eterna angústia de esperar o dia seguinte ou a vida seguinte.





CAPÍTULO XI
“Amontoei também prata e ouro e tesouros de reis e de províncias; provi-me de cantores e de cantoras e das delícias dos filhos dos homens: mulheres e mulheres.”
(Eclesiastes: 2 – 8)


Nos dias que se seguiram liguei para Aliel, mas fiquei sabendo que o número havia sido mudado, busquei pistas em lugares que ela, nas nossas conversas, havia citado. Debalde, nada nem ninguém a conhecia. Foi então que lembrei que ela sempre falava da casa de uma tia cujo endereço ela sabia direitinho. Parecia que de seus familiares em segundo grau o único endereço que ela conhecia de fato era esse. O de sua casa ela nunca mencionava. Sempre que eu me referia a ele, ela desconversava, me embromava, me beijava e eu acabava esquecendo. Já a localização de onde morava essa tia ela vez por outra estava mencionando. A ponto de eu o memorizar. Diante dessa possibilidade, um dia, ao sair da faculdade, tomei o ônibus e fui até lá. Tratava-se de um casarão abandonado, no meio de uma rua bastante movimentada. Todo o espaço que separava as grossas grades de ferro do prédio principal estava tomado pelo mato. Os pujantes cadeados impediam que os portões fossem transpostos de forma natural. Ao fundo, a casa de dois pisos e duas varandas que cercavam os cômodos internos em toda sua extensão, o telhado, ao estilo europeu, terminava nos quatro cantos em calhas por onde escorria a água da chuva que era conduzida aos lençóis subterrâneos por dutos de bronze que caiam na vertical. Os janelões, circundando a sala, indicavam tempos áureos de festas e saraus, no centro da platibanda o brasão trazia o nome da família. Isso tudo eu via de longe. Porém não resisti e, diante dos olhos dos passantes, eu transpus o muro de ferro. Com carrapichos pendurados nas calças e nos tênis eu me dirigi à casa, receando pisar em alguma cobra. No interior, a mansão se mostrava mais portentosa, havia marcas ainda dos que ali habitavam, a louça dos lavabos e sentinas quebrados era riquíssima, as torneiras, arrancadas por vândalos, deviam ser de metal caro, o mesmo de alguns porta-toalhas que jaziam intactos nas paredes. Enquanto explorava os corredores e quartos, encontrei uma escadinha apertada que levava ao sótão e lembrei que Aliel me falou certa vez de uma escada estreita que havia na casa da referida tia e onde costumava se esconder quando brincava com os primos. Ela me contou que uma vez, no topo da escada avistou um parapeito e tentou subir até lá para se esconder dos primos, com quem brincava de esconde-esconde. Mas ao colocar o pé direito no parapeito e tentar levar o esquerdo até lá, teve medo e assim ficou, com uma perna no topo da escada e outra no balcão, numa altura de quase quatro metros, por mais de uma hora, sob o riso baixinho dos primos, que zombavam de seu choro assustado. Até que um empregado da casa veio-lhe em socorro. Lembrando essa história, eu olhei para cima e avistei, ao lado do topo da escada, a um passo dele, um pequeno balcão que saía da parede e finalizava com o formato de uma cabeça de leão, símbolo do brasão que se encontrava na fachada da casa. Fiquei sem saber o que dizer, pois se aquela história contada por Aliel fosse verdade, ela era uma lembrança de uma vida anterior, pois aquela casa estava abandonada há pelo menos meio século. De súbito uma sensação estranha me ocorreu e eu me senti como em uma máquina do tempo, cenas passavam rápido em minha frente e eu desmaiei.
Eu estou na mesma casa só que totalmente nova, sem rabiscos na parede ou marcas quaisquer de abandono. Está chovendo muito, os trovões parece que vão jogar a casa pelos ares, enquanto os relâmpagos iluminam o interior em curtos espaços de tempo. Eu procuro alguém. Ando pelo comprido corredor, cujas cerâmicas brilham sob meus pés, subo a escadinha estreita que dá para o sótão. Empurro com jeito a entradinha, acendo uma lanterna a gás, ilumino o interior, mas não vejo nada, só o gato de pêlos eriçados esconde-se num canto. Entro num dos quartos, ergo a lanterna mais uma vez e nada. Vou passando pela cozinha, quando ouço um gemido, entro e vislumbro um vulto por trás do fogão. A menininha corre para mim, me abraça e me diz com voz sumida:
─ Eu tô com medo. Cadê a mamãe?
─ Tá bom, Miciane, não chore, eu tô aqui, nada de ruim vai acontecer.
─ E se os monstros destruírem nossa casa? O Emerson e o Marcílio disseram que o trovão são as pedras que vão matar todo mundo. – e volta a choramingar com sua vozinha de falsete – Eu tô com medo.
─ Calma. Aqueles primos são uns chatos, só querem fazer medo a você.
─ Cadê mamãe? – Pergunta novamente.
─ Mamãe está viajando, mas vai voltar logo.
─ É verdade que nós vamos ter de mudar daqui?
─ É, mas ainda vai demorar, relaxa – nesse momento me sobe um nó pela garganta e eu me abraço mais ainda à menina – relaxa, tá – mas minha voz sai atropelada pelo nó e as lágrimas escorrem devagar pelo rosto. De repente, um trovão ecoa tão forte e tão próximo que eu sinto a casa balançar.
Despertei com alguém me sacolejando. À minha frente está um homem que penso ser algum mendigo, entretanto percebo algo na sua voz que denota condição diferente.
─ Cê tava desmaiado, o que foi que houve?
─ Desculpe, eu tava aqui e de repente o mundo rodou... Você mora aqui? – perguntei.
─ É, eu durmo aqui. – disse – Você sabe que horas são?
Só aí foi que eu percebi que já era noite e que o chegante iluminava a casa com uma lamparina.
─ Nossa, faz tempo que eu tô aqui. – assustei-me, pensando que aquelas curtas cenas demoraram tanto para se passarem – Que horas são?
─ Vão dar oito horas – disse ele tirando um relógio, ou melhor, uma cabeça de relógio do bolso traseiro da calça.
─ Pois eu já vou, desculpe, tá.
─ Espere pra tomar um café. A gente aproveita e conversa, eu não converso muito. – Disse isso e apontou para a solidão dos aposentos em ruína.
Aceitei. E enquanto tomávamos café ele me contou parte de sua vida. Narrou que era filho de pessoas pobres e que cresceu sonhando em enricar. Começara a trabalhar desde cedo e quando já estava desistindo de ter uma vida de talões de cheque e carros importados, a vida lhe aprontou uma surpresa. Através de uma sociedade escusa com algumas pessoas ligadas a sindicatos, apossou-se de uma bolada e viu aí a oportunidade de abrir uma empresa. Logo era empresário no ramo de calçados e a vida tornou-se um entrar de dinheiro em sua conta bancária que não tinha fim. Era paparicado por muitos e desprezava a todos. “Tinha a impressão de que todos queriam o meu dinheiro, achava que as pessoas só se aproximavam de mim pela minha riqueza, pela minha opulência. E tratei de me afastar deles, principalmente dos amigos da infância e da adolescência, pois via neles o atraso, o passado de privações, as dificuldades em conseguir dinheiro para tomar uma cerveja, o aperto dos coletivos e a angústia de se não ter trabalho. Cheguei até a esnobar aqueles que me eram outrora os mais próximos, exibindo a eles, sem lhes oferecer, copos cheios de uísque caro. Com o tempo passei a esnobar também meus familiares e me isolei na minha fábrica e na minha mansão, com mulheres e falsos amigos. Ainda bem que não casei, não tive filhos, por isso, como diria Machado de Assis, não transmiti a ninguém o legado de minha miséria. Tudo o que a vida dá ela toma. Não importa o que seja. Se ela vir que você não merece, ela vem e leva. Pode ser não só riqueza material, mas também a miséria moral, a pobreza, ou uma doença. Ela te dá e ela vem buscar. Se você é bom, solidário ela tira de você essa bondade e te dá riqueza. Mas a sua bondade é inata, ela te deixa a opulência e devolve tua bondade, tua solidariedade em dobro. Mas se tua bondade é só fachada, ela te leva a opulência e te devolve não a bondade, mas a angústia e o orgulho para viver sem ninguém. Comigo foi assim. Quando dei por mim estava sem nada e sem ninguém. A ruína me veio rápido, como a opulência, confiei em pessoas às quais não devia dar crédito, aplicaram-me um golpe sujo e mero, zerei, até a casa a justiça confiscou. Os falsos amigos e as mulheres viraram gases, evaporaram, sumiram, não me queriam, como nunca me quiseram. O meu orgulho não me deixou sequer voltar para a casa de meus pais. Um dia, desesperado, tendo gasto os últimos centavos numa refeição, subi no alto de um prédio para me jogar, mas ouvi a conversa entre dois funcionários de serviços gerais do edifício. Um falava para o outro do filho que ia nascer, era o terceiro. Quando o outro perguntou se dava para alimentar três filhos mais a mulher, ele respondeu que sim, que cada filho que nasce é a resposta de Deus de que devemos continuar lutando pela sobrevivência, é a resposta de Deus de que o mundo deve continuar. Ele falava do filho que ia chegar com tanto carinho, com tanto amor que sua voz embargava. E eu ali querendo me matar. Naquele momento eu tomei uma decisão. Decidi que ia voltar a trabalhar para depois conquistar as amizades que jogara fora, principalmente a de meus pais e meus irmãos. Mas algo me incomodava, eu não podia continuar ali no Maranhão eu precisava purgar meus erros longe dali. Foi aí que resolvi vir aqui para Fortaleza. Cheguei faz duas semanas. Como não tinha onde morar, vim para cá. Coloquei minhas roupas que sobraram no chão e elas me servem de cama, enquanto eu as engomo com a quentura e o peso do corpo, numa relação de cooperação. Uso somente duas mudas de roupas. Quando estou usando uma, a outra está enxugando e assim vai. No começo desta semana consegui um emprego, amanhã talvez eu alugue uma quitinete...” Ao dizer essas últimas palavras, com a voz pausada, ele se virou simulando remexer o fogo para esquentar o café. Aproveitei o silêncio para me despedir. Já na rua, após saltar as grades, ainda o ouvi chamar:
─ Ei, não se esqueça do que lhe contei, não faça jamais como eu fiz.
Acenei para ele, num gesto afirmativo e saí.
Chegando a casa, tentei dormir logo, mas foi em vão. O acontecimento da tarde e a história ouvida à noite se embaralhavam em minha cabeça, até que, como num processo seletivo natural, o transporte aos tempos áureos da casa e as aflições de Aliel, agora encarnada numa garotinha de nome Miciane, tomou todo o espaço de meus pensamentos. O que eu estava fazendo ali? Está claro que eu era ali o irmão a que Aliel se referia. É certo também que nós éramos bastante ligados. E nossa mãe, o que realmente acontecera a ela? De uma coisa eu tinha certeza: eu e Aliel estávamos cada vez mais ligados um ao outro através das existências. Urgia, pois, que eu a encontrasse, para que juntos desatássemos os nós que nos engodavam o destino e pudéssemos enfim ficar juntos. Mas agora eu precisava dormir, já que as provas semestrais se aproximavam.




terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

DE VIDAS, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO IX
“Mais vale o bom nome do que as muitas riquezas, e o ser estimado é melhor do que a prata e o ouro.”
(Provérbios: 22; 1)


Quando despertei daquele transe, o garotinho continuava a me olhar impassivelmente com um meio sorriso nos lábios. A mãe, em vão, puxava-o. Até que ele estendeu a mão de amigo, eu a apertei, e ele se foi com a mãe. Olhei para o relógio e vi que aquelas cenas duraram aproximadamente míseros quinze segundos. Enquanto o garçom se aproximava com a bandeja, vi que o garotinho ainda me olhava de esgueira, enquanto a mãe ralhava com ele, possivelmente dizendo-lhe algo, como “não converse com estranhos”. Logo lembrei as palavras de Charles Chaplin: “Não há estranhos, o que existem são amigos que ainda não nos foram apresentados.” Essa lembrança me fez refletir que o revés também é possível, que não há estranhos, mas inimigos em potencial. Todas as pessoas que existem no mundo são nossos amigos ou inimigos, só depende de nós. Daí a necessidade de olharmos as pessoas com benevolência, sorrirmos para elas mesmo que apresentem um semblante carregado, pois assim elas ficarão mais propensas a nos abraçar e menos a nos esmurrar.
Enquanto almoçava pensava em Juliete. Tive ímpetos de ir até a mesa onde estavam a mãe e Juliete reencarnada. Tive vontade de perguntar-lhe o nome, saber se ele se lembrava de mim, fazer amizade. Mas concluí que não devíamos nada um ao outro, pois se aquela criança, como Juliete, me dedicara tanto cuidado, eu, como seu pai, lhe havia salvado a vida, e com certeza não éramos estranhos, o destino se encarregaria de nos aproximar, ou não.
E assim o ano declinou, dia após dia entre livros. Não queria nem pensar que poderia não ser aprovado, queria recuperar o tempo perdido. Não pensava em aliel, ou melhor, pensava, mas buscava não pensar e meus pensamentos se voltavam para os bizus. Finalmente chegou o grande momento da realização das provas. A ansiedade agora era a espera do resultado. As questões iam e vinham na minha cabeça e eu me perguntava “será que marquei a alternativa correta? Será que o somatório era aquele mesmo?” E veio a grande surpresa: o nono lugar num dos cursos mais concorridos do país indicava que eu me preparara devidamente, era bem mais do que eu poderia esperar. E eu não pulei, não gritei apenas saí tranqüilamente em direção da praia e lá fiquei refletindo sobre tudo o que havia acontecido nos últimos dias. Depois de conhecer o resultado, eu sabia que entrar para uma faculdade como Medicina não era bicho de sete cabeças, mas foi bom eu ter imaginado que era o obstáculo mais difícil da minha vida, pois os obstáculos são assim quanto mais complicados os imaginamos, melhor nos preparamos para eles e mais simples se tornam Somos, pois, como Alice, que despreparada para enfrentar um rato, via-o como se fosse um rinoceronte, grande ameaçador; mas devidamente cônscia de seus atributos e de seus medos, ao ver um rinoceronte, encava-o como a um simples camundongo. No entanto não devemos temer nem a um nem a outro, aquele é imenso, porém lento e manso; este, ao contrário do que diz a fábula, não assusta nem elefante. O que devemos temer de fato são os tigres, com suas garras e dentes ameaçadores e sua eterna fome de carne, os lobos que rodeiam a presa para alimentar os filhotes. Os homens somos tigres e somos lobos sempre em busca da presa fácil, com os dentes escancarados, rindo enquanto o cordeiro jaz a nossos pés.
É incrível a força e a leveza do pensamento! Naquele momento eu refletia sobre o meu sucesso e fui aos poucos catapultado a essa reflexão sobre os homens e não sei por que eu chorei. Apesar de ser homem, de apreciar o domínio sobre coisas e até mesmo sobre outros homens, vem-me à boca um amargo por saber que numa sociedade de consumo, numa sociedade de tigres e lobos, o prazer de alguns requer o sacrifício de muitos. Eu subitamente me inquieto e as contradições afloram em meu cérebro e minha alegria é triste e meu brilho é fosco. Eu não sou um ser evoluído, e talvez nunca virei a sê-lo. Nunca serei como Ernesto Guevara, que trocou o conforto de sua família, o colo de sua esposa e o sorriso de suas filhas para se transformar no peregrino da revolução; como Gandhi, que libertou seu povo sem que para isso fosse necessário disparar um tiro; como Francisco, que abandonou uma vida de luxo e de luxúria para se dedicar aos pobres e aos animais; tampouco feito Jesus, que com o seu amor imensurável se doou num ideal de solidariedade a ponto de derramar seu sangue pela humanidade. Também não me arvoro em sê-lo. Tenho primeiramente que continuar minha tarefa aqui, e o tempo se encarregará do resto.
Em tudo isso eu pensava, quando uma mão leve como uma pluma tocou meu ombro. Não virei o rosto para mirá-lo, era como se eu já o esperasse. Um vulto de pele clara, quase transparente, sentou-se ao meu lado e me disse:
─ Chora, pois o choro é o óleo que vem untar nossos olhos para vermos com mais clareza as nossas necessidades e as dos outros e percebermos que a doação é a nossa grande missão, pois, como nós lavamos uma roupa e nos preparamos para uma festa, as lágrimas lavam nossa alma para a festa de novidades que renovarão nossos dias. Os que não choram, permanecem cegos diante do sofrimento seu e alheio, não irão a nenhum baile, no máximo dirigir-se-ão a uma bacanal, onde carregarão mais ainda suas roupas de nódoas, que lhe pesarão sobre os ombros o os vergarão para a terra, numa apoteose decadentista. Por isso chora, não tenhas pejo de fazê-lo, sozinho ou diante de outrem. Não se preocupe com a evolução. Ela é lenta, mas é gratificante e, vidas menos vidas, ela virá.
Dizendo isso, esse espírito de luz sumiu e me deixou só com minhas dúvidas que aos poucos se dissiparam e foram substituídas por uma certeza: viver é um sacrifício que devemos aceitar, não como um fardo, mas como uma tarefa a ser cumprida, e é a sua realização que nos torna feliz. A felicidade é isso é o prazer das coisas cumpridas.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO VIII
“Adeus, pálida amante dos meus sonhos!
Adeus, vida! Adeus, glória! amor! anelos!”
(Castro Alves)



Durante o restante do ano não tive mais contato com Aliel. Todas as vezes que telefonei para sua casa ela não estava ou quem atendia ao telefone fora devidamente orientado para dizer que ela não se encontrava. Por outro lado ela não me ligou em momento algum. E eu ficava pensando que aquela menina com jeito brejeiro estava pilheriando comigo. Mais uma vez me veio a idéia do tempo e refleti: Não é bastante que queiramos algo, é necessário que aquilo que desejamos esteja preparado para acontecer. Não podemos, portanto, nos afligirmos ou forçar os momentos, quando chegar a hora tudo se resolverá. E assim me preparei para receber o Ano bom.
Urgia que organizasse meus horários de estudo, pois precisava distribuir esse tempo entre as atividades da escola e o estudo pára o vestibular de Medicina. Por isso durante todo o ano não tive tempo para nada. Estudava pela manhã, ao chegar a casa, tomava banho, almoçava, e livro. À tardinha ia para uma lagoa que ficava próximo à minha casa, fazia Cooper, voltava para casa, tomava banho, lanchava, e livro. À noite, enquanto dormia, para descansar, os livro me apareciam, e vinham as fórmulas matemáticas e físicas a que se misturavam átomos de carbono, e tudo isso junto formava um texto sobre os motivos das Cruzadas. Algumas vezes acordava mais cansado do que quando tinha ido dormir.
Entretanto quando o cansaço acumulava, eu não voltava para casa. Ia almoçar no centro da cidade. Aproveitava esses momentos para buscar rostos conhecidos de outras vidas. Era uma brincadeira para mim. Entrava sempre no mesmo restaurante, daqueles cujo público alvo são comerciários e bancários ou simplesmente pessoas que estão fazendo compras quando a barriga ronca. Eu entrava, sentava-me numa posição privilegiada para observar o público e de lá buscava rostos conhecido de outras vidas. E os encontrava. Fechava então os olhos e ficava tentando lembrar de que vida nos conhecíamos, eram meros figurantes de momentos que eu não conseguia vislumbrar com exatidão.
Certa vez aconteceu que eu estava num estabelecimento desses, quando adentrou nele uma moça puxando uma criança pelo braço. Era um menininho negro, de sorriso desenxabido e olhos grandes. A moça o conduzia para uma mesa próxima à que eu me encontrava. Subitamente, ele empacou como uma mula e me olhou, seus olhos me queriam cumprimentar, um leve sorriso bailou em seus lábios. Eu senti um formigamento iniciando na nuca e correndo espinha a baixo.
De repente eu estou numa cena totalmente diferente. O ambiente é um salão imenso, aristocrático, em que há várias mesas cobertas com toalhas vermelhas acetinadas. Nelas, homens conversam e bebem champanha, com grossos charutos entre os dedos. Eu estou numa mesa bem afastada do centro, trajo um terno amarelo e uso um chapéu de massa de cor marrom. Estou apreensivo devido à demora de alguém. Sinto um enorme alívio quando ela entra no recinto. É bela, tem os olhos grandes, usa um chapéu amarrado ao queixo, traz um leque na mão esquerda e um guarda-chuva na outra. Traja um vestido branco cheio de arabescos de renda azul-clara, apertado na cintura e rodado abaixo com um decote discreto acima. Ela mais parece uma imagem saída de um quadro de Monet. Antes que ela chegue, eu me levanto para saldá-la. Já devidamente acomodada, eu lhe pergunto o motivo da demora, ao que ela responde que foi a mãe que a atrasou, ela passara em sua casa para pegar umas encomendas... Suas palavras são um tanto vazias, mas eu deixo para lá. Ela então começa a tossir. Quando eu lhe pergunto se ela pegou sereno, ela diz que não foi nada. Entretanto a tosse se intensifica a ponto de as pessoas em volta se incomodarem. Mando chamar o carro e a levo para casa. Já devidamente acomodada, dou-lhe um chá. Debalde! A tosse é tanta que ela estremece toda. Já estou desesperado quando o médico chega, coloca o estetoscópio, manda-a falar trinta e três e lhe recomenda repouso absoluto. Contrato no mesmo dia uma enfermeira, que lhe administra os medicamentos receitados. Debalde! A tosse só se intensifica, e o meu desespero aumenta, eu não saio do quarto durante toda a noite e, a todo instante, eu olho para ver se ocorreu um milagre. O médico vem novamente várias vezes no dia seguinte, e cada vez minha angústia só e maior ao ver a cara do médico mais compungida. Eu insto com ele para que me diga algo, ao que ele responde “tenha calma, meu jovem, tenha calma”. Mas eu não tenho e o sacolejo agarrado ao seu jaleco branco. Pego-me com todos os santos e choro ao ver a pele da minha amada descorada e seu corpo exânime sobre o leito. Na manhã do terceiro dia, o médico apenas balança a cabeça, como a justificar seus esforços. E eu perco o sentido das coisas. Vem o padre e resmunga mecanicamente algumas palavras de extrema unção. Depois vem o pessoal da funerária, tiram-lhe medidas, vestem-na numa mortalha de cor marrom, mas eu exijo que lhe coloquem outra de cor branca, que melhor simbolizaria sua pureza. Depois de realizado esse desejo, jogam-na numa sepultura, sob os olhos espantados dos que a amavam, entre eles eu, que não aceito aquela separação repentina. Meu coração estremece ao lembrar o pouco tempo que permanecemos juntos, apenas um ano. Entretanto eu deveria me conformar, pois naquele pouco tempo vivemos um amor nunca vivido antes por criatura alguma. Nossos dias e noites eram festa, amávamos com tanto fervor que a Cidade das Luzes tornava-se mais iluminada, não havia cansaço, não havia brigas, eu conhecia todos os seus poros, todos os seus cheiros, e ela retribuía tal carinho na mesma moeda, com o mesmo empenho, com o mesmo amor. Talvez por isso eu não me conformasse com sua partida. Ao fim, todos se vão e eu fico diante da lápide onde há um epitáfio que diz: “Aqui jaz Judite Proudon, em vida amou a ponto de dar sua vida pelos seus, na morte continua no seio dos que a amaram.” Um amigo chega toca no meu ombro, mas eu me recuso a sair, recuso-me a deixá-la exposta à voracidade dos vermes. Em minha cabeça há uma idéia fixa, passar mais uma noite ao seu lado. E lá na cidade dos mortos me deixo ficar, sento-me à sombra de um cipreste e brinco com suas sementes vermelho-claras. Sem me dar conta, adormeço. Quando desperto, já é noite fechada e a única luminosidade vem da lua, que me observa austera, como uma mãe a ralhar com o filho, sem dizer palavra. Tiro o relógio do bolso e tento ver as horas, em vão. Mas neste momento o sineiro toca o seu instrumento doze vezes. De repente, um calafrio me sobe a espinha, e eu não sei se tenho frio ou medo. Apesar de cético, por ter sido criado no seio de uma família ligada à ciência, vêm à tona todas as superstições que me contam histórias de almas penadas e criaturas da noite. É com grande esforço que não me desespero e não saio a correr. Em meus ouvidos soam barulhos, como os de pés esmagando gravetos, em seguida ouço o pio de uma coruja, tão perto que me enregela o sangue. Olho mais uma vez para sua sepultura, beijo-a e saio a passos largos sem me voltar, pois os sons se multiplicam, como se naquele momento os mortos levantassem de seus leitos derradeiros e iniciassem um seminário. Fora dos muros da pequena cidade, dirijo-me a uma taberna que se encontra aberta. O ambiente me causa repugnância, sobe-me à boca uma náusea, meu estômago revira e por pouco não vomito ali. Sento-me diante do balcão, recoberto por um acolchoado vermelho-sangue. Olho em volta para sondar o recinto, quase vazio àquela hora. Apenas algumas mulheres dançam para alguns velhos babões, numa lareira produzida pela disposição das mesas. Peço um conhaque. A loira aquilina que me atende comenta:
─ Nossa, que estado, que decadência! Parece que fugiu do cemitério! Você deveria tomar era um leite quente.
Eu insisto, e ela me traz o conhaque. Naquela noite não vou para casa, não agüentaria passar aquela primeira noite sem Judite. Entro no primeiro hotel, subo para o quarto e me jogo na cama. Por muito tempo me reviro numa insônia sem fim até que adormeço, sem fechar as janelas. No dia seguinte e nos dias que se seguem ardo em febre e tenho fortes alucinações, nelas Judite está ao meu lado e me pede desculpas por me trair, diz que me amava, mas sua índole leve como uma pluma a impedia de ser só de alguém. A princípio eu queria morrer, mas depois desisto. Não quero mais encontrá-la, estou certo de que as alucinações me foram uma revelação. No hotel, onde os médicos se desdobram em cuidados, há uma jovem que não sai do meu lado. É ela que me enxuga o suor do rosto e me administra as ampolas deixadas pelas figuras hipocráticas. Finalmente saio daquele torpor e aos poucos torno à vida. Volto para casa e por muito tempo lembram-me as alucinações tidas durante a enfermidade. Tenho medo, mas me iludo fingindo ser pejo, de mexer nas gavetas de Judite. Às vezes desperto durante a noite, abro nosso guarda roupa e ilumino as gavetas que lhe pertenciam, mas não as abro e volto a revirar na cama até o dia clarear. Por gratidão, visito as pessoas do hotel onde passei os dias de enfermo. Lá encontro sempre solícita a moça que me acompanhou naqueles dias, após dia. Seu nome é Juliete e me é muito familiar. Para retribuir sua dedicação, levo-a a passear, sentamos-nos num quiosque, tomamos suco, depois vamos até às margens do Sena, ficamos conversando e admirando a serenidade de suas águas. Um dia tomo coragem e lhe pergunto o motivo de sua dedicação para com um estranho, principalmente doente. Ao que ela me responde com grande naturalidade:
─ Gratidão. Quando o vi pela primeira vez, na rua, há algum tempo, eu sabia que nós éramos ligados um ao outro, até que o tempo o trouxe até mim. Certa noite, enquanto dormia, tive um sonho revelador. Há muito tempo, nós vivíamos numa tribo e você era meu pai. Numa madrugada fomos atacados por uma tribo inimiga. Eles eram canibais, e você morreu para me salvar.
Ao ouvir aquele pequeno relato, eu devo achar que aquela moça é louca, mas ela fala com tanta convicção e seus olhares são dotados de tanta gratidão, que me comovem. Um ano depois nos casamos. Sua primeira atitude a qual não posso impedir é revirar todas as gavetas que pertenciam à minha ex-mulher. Desfaz-se de tudo que lá há, com exceção de um pacote de cartas amarradas por uma fita vermelha. Ela mo entrega e nunca pergunta sobre o conteúdo das missivas. Eu as leio, sem derramar uma lágrima, depois as incinero, seus conteúdo agora não me importa mais. Vivo tranqüilo ao lado de Juliete. Não a amo, mas nutro por ela um carinho especial. Ela também não me ama, o que sente é gratidão, e assim nós vivemos o resto daquela vida.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

DE VIDAS, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO VII

“Amor, e o que é o sofrer
para mim que estou jurado
pra morrer de amor!”
(Djavan)

Eu ando por uma rua cheia de pedras e chego a uma oficina onde com um serrote um homem transforma uma tora de madeira em vários pedaços, em seguida ele com um formão vai moldando-os até dar a eles forma de encaixe. Estou numa oficina de manufatura lá fazemos diversos móveis, além de molduras para quadro e esculturas. Eu sou o responsável por essas últimas, sou uma espécie de artista. Com as sobras de madeiras eu faço o meu trabalho de formas diversas, esse é o meu modo de expor meus sentimentos. Ao chegar à referida oficina sento-me e vou terminar um trabalho. Depois de lixar bastante várias conchas, eu as colo com cuidado, encaixando-as umas às outras formando a moldura de um quadro em que há a xilogravura de uma jovem. Enquanto executo esse trabalho sou abordado pelo meu companheiro, que trabalha ao lado:
─ E aí Brhadzag, já desistiu da moça?
─ Claro que não, nós nos amamos e nada vai fazer com que desistamos um do outro, nem que para isso seja preciso mil anos.
─ Já tinha ouvido dizer que os artesãos eram malucos, mas você é pior que uma mula. Você sabe que o pai a quer para si e, mesmo sendo isso contra as leis sagradas, é ele quem manda na aldeia. Se você se interpuser entre ambos ele o eliminará. Ele já deliberou isso para quem quisesse ouvir.
Eu não respondo nem comento essas palavras. Em minha cabeça só reside uma idéia: a de fugir com Ranjicniami dali daquela aldeia.
A aldeia fica numa ilha afastada de qualquer coisa que podemos chamar civilização, pelo fato de ser constantemente assolada por ondas gigantes. Seus antigos moradores viram ali uma forma de fugirem da miséria imposta pelo estado de fato e aos poucos foram se habituando às ondas gigantes que chegam sem aviso e destroem tudo que encontram pela frente. Às vezes com maior ou menor intensidade. Já houve vezes em que a aldeia foi totalmente destruída, para ser novamente edificada, pois os moradores preferem ser vítimas da natureza a voltarem à miséria de então. A maioria dos aldeãos, resignada, crê que as ondas vêm lavar os pecados dos antigos habitantes dali, que foram tragados pela terra a mando do demônio, e agora o mar, a mando do altíssimo, lava-lhes os pecados com fortes ondas.
Ronstabrhami é o pai da moça. É ele quem manda na aldeia, manipula os pescadores e odeia os artesãos, que vivem à revelia de suas ordens. Se dependesse dele não haveria manufaturas por ali. Entretanto trata-se de uma necessidade coletiva, como em toda sociedade. As mulheres usam sempre um manto de cor marrom enquanto os homens vestem-se à vontade. Trata-se de uma cultura patriarcal em que as mulheres não têm direito algum sobre nada. Apesar de vivermos numa sociedade sem estado de fato, aqueles que se colocam como líder, entre eles Ronstabrhami, trouxeram o ranço do poder e dominam com palavras os submissos, sobremaneira as mulheres “que não podem erguer a voz contra os homens, não podem vestir-se de tal forma que lhe apareça partes do corpo, pois o altíssimo, aquele que criou o mundo, que nos deu a vida, lançará sobre nós todas estrelas do céu.” O povo saiu do fogo e caiu na brasa. Havia aqueles que procuravam não baixar a cabeça, mas o temor a Deus era implacável.
A moça é Ranjicniami, filha de Ronstabrhami. A vila inteira comenta em surdina que o pai, ao perder a mulher durante parto, odiara a filha e assim decidira que quando ela chegasse à puberdade ele a possuiria em lugar da esposa. Embora desde criança conhecesse a família de Ronstabrhami, não conhecia Ranjicniami. Certa vez quando me dirigia ao deserto para o jejum anual, que todos fazemos em data escolhida, passando por umas ruínas da antiga civilização, ouvi som de choro baixinho. Dirigi-me até lá e vi o rosto mais bonito que já vira até então, que mesmo imaginado por um artista não teria tanta beleza. Mesmo envolto em véu e lágrimas, não perdia a feição quase sacra. Era Ranjicniami, que ao me ver encolheu-se a um canto:
─ Calma – disse-lhe eu – não vou machucá-la. O que faz você aqui?
Ela então me contou entre soluços que seu pai a queria possuir. Havia alguns meses que ele começara a reivindicar que ela desse a ele aquilo que lhe tirara ao nascer e cada dia o assédio tornava-se mais amiúde. Não sei o que me ocorreu diante de ser tão belo e ao mesmo tempo tão necessitado de proteção, só sei que não me contive e a beijei. Ela assustou-se e se afastou de mim.
─ Desculpe-me, – falei desorientado – não foi por mal, perdão – instei.
Ela aproximou-se novamente de mim, pousou o rosto no meu peito e falou baixinho com segurança:
─ Então é você! Agora eu o reconheço.
Eu é que não estava entendendo. Mas vendo meu semblante interrogativo continuou:
─ Ontem à noite eu tive um sonho. Eu estava desesperada e me apareceu uma imagem feita de luz e me disse que em breve eu encontraria uma pessoa que me ajudaria no meu calvário. Eu então perguntei como identificaria essa pessoa, ao que a luz me respondeu: “Ela lhe dará o sinal.” Você acaba de me dar esse sinal. Pois não é o beijo o sinal da eternidade?
Eu, apesar da surpresa, não achava a situação estranha, era como se tudo aquilo fosse acontecer e estivesse apenas esperando o momento certo (há tempo certo para tudo). Depois passamos a nos ver com freqüência e cada vez a amava com mais intensidade. Ela era a minha razão de existir, todas as minhas imagens tinham o seu rosto. Mas o óbvio se deu. Ronstabrhami descobriu nosso idílio e surrou a filha, trancando-a em seguida num quarto. Ele era mais covarde do que eu imaginava. Como não havia homens a sua disposição, não enfrentava seu desafeto, preferia castigar a filha para obrigá-la a submeter-se a ele. Tentei todos os meios de vê-la. Debalde foi, pois Ronstabrhami passava os dias de guarda, como um cão, e as mulheres que trabalhavam em sua casa temiam por suas vidas.
Eu estou na praia catando conchas para a moldura de um quadro de uma senhora morta, solicitado pelo viúvo, que me pagaria bem pelo rosto da esposa. Com essas moedas somadas às que eu tinha guardado eu pretendo, construir um barco e com ele atingir o continente junto com Ranjicniami. De repente eu ouço um barulho ensurdecedor, semelhante ao ruído de um leão, viro-me e vejo a onda gigante que desponta no horizonte. No meu desespero só penso em ajudar umas crianças que brincam próximo ao dique. Corro para lá e vejo o torpor impressos nos rostos infantis. Não tenho dúvida, preciso salvá-las. Pego-as e num esforço heróico transporto-as até o ponto mais alto, livre do alcance das águas. No entanto, quando me viro, vejo Ranjicniami, correndo desesperada para mim. Num relance eu imagino o que aconteceu. Ela conseguira se libertar do pai e fora atrás de mim, imaginando onde eu me encontrava, fora à praia. Eu vejo a onda gigante se aproximando com furor mais intenso, normalmente ela leva entre vinte e trinta segundos quando desponta no horizonte até rebentar no dique. Resta-me, pois, alguns segundos para salvar Ranjicniami. Salto por cima das rochas ferindo as pernas, sem sentir dor, quando chego até ela, ouço-a dizer “você não deveria ter descido até aqui”. Resignado do que nos espera, abraço-a. Somos arremessados contra a parede de rocha com tanta violência, que nossos ossos estalam ao mesmo tempo que sinto os pulmões serem invadidos pela água. Em seguida não sinto nada. Estou com Ranjicniami nos braços, ela me sorri me beija e ficamos olhando as águas revoltas que cobrem toda a praia. Vejo nitidamente as pessoas se aproximando, olhando assustadas a água. Dali podemos ver alguns corpos boiando, inclusive o meu e o de Ranjicniami, abraçados. Olho para ela pasmo, mas ela não tem o mesmo sentimento, apenas sorri. Uma luz nesse instante desce sobre mim e outra sobre ela. Uma luz tão intensa que a luz do sol parece trevas se comparada a ela. Sou levado para um lado e Ranjicniami para o outro.
Acordei, já com dia claro. O sol já me entrara pela janela, minha mãe batia na porta com violência dizendo que eu estava atrasado para o compromisso que assumira com ela de ir fazer o restante das compras de Natal.
─ Já vou. – Respondi, mas fiquei um bom tempo refletindo a respeito daquele sonho. Com certeza era um regresso à mais importante das minhas vidas passadas. Era esse o meu destino, encontrar Aliel e fazê-la feliz, nesse ínterim eu deveria ajudar outras pessoas. Lembrei-me então de Wellington. Eu deveria escolher uma profissão que salvasse vidas, tendo ao mesmo tempo que encontrar a mulher que me fora destinada há quase dez séculos.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

DE VIDAS, DE SONHOS, DE ENCONTROS


CAPÍTULO VI
“Graças a Deus que as pedras são só pedras
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.”
(Fernando Pessoa)
No dia seguinte deixei o hospital e voltei para casa. Sentia-me um novo homem. Edificara em mim uma nova pessoa. Não sentia vontade alguma de fumar ou beber. Em mim só havia uma vontade grande de redescobrir a existência, de recuperar o tempo perdido, entretanto não havia pressa. Eu sabia que o futuro vem com o tempo, que eu conseguiria realizar aquilo para que fui destinado. Era final de ano e eu procurei dar vazão às coisas mundanas. Matriculei-me novamente no terceiro ano para me preparar para o vestibular, arrumei meu quarto, joguei papéis inúteis fora e me desfiz de tudo que fosse supérfluo. Precisava reorganizar minha biblioteca, meus discos. Até minha cama eu mudei de lugar. Antes ela ficava entre a janela e a parede, agora eu a pus ao lado da janela para durante as noites admirar a lua e as estrelas.
Às véspera de natal eu estava mais próximo de minha família, como forma de buscar energias para o futuro. Eu nunca havia percebido isso antes, mas o final de ano é um momento par refletir o nosso estar no mundo e nos prepararmos para o ano seguinte, quando temos de escolher caminhos e nos ausentarmos de casa. É nesse período que precisamos de fato armar a estratégia de ação para o ano vindouro. É certo que a questão tempo cronológico, como o concebemos, é apenas uma convenção, algo criado pelos homens para gerar o ciclo social. Mas não é menos certo que ao encerrarmos um ano encerramos uma etapa de nossa vida, pó isso é nesse momento que devemos nos preparar para a etapa seguinte. Isso tudo me fez reflexivo e eu pensava que o meu encontro com Aliel estava próximo, em uma dessas andanças das estrelas pelo céu, talvez sob a constelação de Virgem ou Libra, nós nos reencontraríamos.
Mas foi Ângela que encontrei, numa loja de um shopping. Eu remexia numa arara de camisas em promoção quando ela tocou de leve meu ombro. Ergui a cabeça e a vi sorrindo para mim, não sei se de alegria ou cinismo. Meu coração disparou e eu tive de me segurar para não desabar, meu rosto devia ter ficado branco e eu não encontrei palavra. Ao que ela indagou simplesmente:
─ Te assustei?
─ Que é que você acha? – Respondi, meio sem jeito.
─ Posso falar contigo? – Perguntou ao perceber que a resposta seria sim, pois notara todo o meu desmoronamento.
Saímos e nos dirigimos à praça de alimentação. Alguma coisa me inquietava, como se eu estivesse sendo conduzido para um abismo, como se eu pudesse dizer não, mas não conseguisse. Ela ia séria como um carrasco que leva o condenado ao cadafalso. Sentamos-nos e ficamos alguns minutos em silêncio. Ela pediu um chope e eu um refrigerante.
─ Você vai tomar refrigerante? O que você tem? Aliás, onde você esteve todo esse tempo? Te procurei por todo canto e ninguém tinha notícias.
Eu passei algum tempo calado enquanto ela esperava minha resposta. Até que eu abri a boca para responder e os meus olhos quiseram se encher de lágrimas.
─ Olha – comecei – eu passei por maus pedaços, estive doente, quase morro. Nesse ínterim descobri muita coisa sobre minha vida, tanta coisa que se eu fosse contar você não teria tempo para ouvir...
Ela levantou-se de onde estava e sentou-se ao meu lado, puxando a cadeira para o mais próximo possível de mim. Esse gesto me fez parar. Já sentada ela me beijou. Seus lábios mornos colaram-se aos meus, o cheiro de sua boca me invadiu e eu revi todos os momentos que tive ao seu lado. As lágrimas enfim romperam a barreira do desespero e banharam meu rosto. Eu tive uma vontade louca de abraçá-la, sentir seu cheiro, amá-la ali mesmo para depois adormecer em seus braços, enfim começar tudo de novo. Mas aí eu ouvi a voz do Wellington dizendo “Outras (pessoas) há cuja função é fazê-lo sofrer. Elas precisam desesperadamente de que você sofra, mas você não precisa passar por isso.” Foi então que eu, chorando, fitei-a nos olhos e lhe disse:
─ Eu te quero como nunca quis nada no mundo, às vezes penso que você é a coisa mais importante do mundo para mim, mas você me faz mal e eu não quero mais essa paixão, esse sofrimento. – Era assim que eu me sentia, tão louco por ela que o corpo inteiro reclamava o seu, por isso foi grande o esforço com que eu disse essas palavras.
Ela levantou-se me beijou nos olhos, disse-me “até mais” e se foi, deixando-me em soluços. Naquele momento, ainda com a vista turvada pelas lágrimas que não se queriam conter, eu vislumbrei um rosto me olhando. Era uma menina que estava parada a alguns metros. Fui me detendo e aos poucos pude reconhecer a dona dele. Ela se aproximou de mim e me indagou:
─ Desculpe, mas nós não nos conhecemos?
Enxuguei as lágrimas rapidamente para vê-la melhor. Era Aliel que me reaparecia. Tinha agora quatorze anos e era uma bela moça, os olhos verdes contrastavam com a pele morena, os cabelos soltos davam a ela um ar mais maduro do que a idade. Diante da minha hipnose, ela brincou:
─ Alôô, tem alguém aí? – e simulou bater na janela dos meus olhos. Eu sorri e lhe respondi:
─ Desculpe é que eu estava meio perdido. Senta por favor. – E lhe puxei uma cadeira.
─ Nós não nos conhecemos? – Tornou a perguntar demonstrando seu espírito de criança, que não desiste depois de fazer uma pergunta.
─ Aliel. É este seu nome, não é?
─ E o seu éé...
─ Você não sabe, quando nos vimos você era muito pequena, e eu não lhe disse meu nome, não houve tempo, lembra foi numa praia, creio que Canoa Quebrada, faz tempo.
─ ...Daniel! Acertei? – exclamou ela como se acabasse de acertar a pergunta de um milhão. E emendou – Foi numa praia mesmo, estava me afogando e você veio e me tirou da água, eu devia ter seis ou sete anos, depois eu desmaiei e quando acordei estava em seus braços, você me fez respiração boca a boca, minha mãe que disse. Quando ela chegou feito louca eu ainda estava desmaiada. Quando voltei a mim, havia um monte de gente ao redor, e todas falavam de sua coragem. Quando mamãe me pegou pelo braço eu perguntei seu nome e você disse. Não foi isso?
À medida em que ela ia relatando esse fato eu ia recordando dele e até antecipava algo que ela ainda ia dizer. Eu estava confuso, muito confuso, pois não fora assim que nos conhecemos. E lembrei-me das palavras de sua mãe, quando a encontrei há quase dez anos, que me dissera que a tinha filha o hábito de imaginar coisas. No entanto eu não disse meu nome a ela, e como ela o soube? Talvez tenha ouvido Ângela dizê-lo. Foi isso só podia ser isso. Eu estava perdido nesses pensamentos, enquanto minha antiga amiga pediu um sorvete e agia com muita naturalidade, como se todos os dias nos encontrássemos e ficássemos olhando um para o outro. Para quebrar o silêncio das palavras eu indaguei?
─ Você tem quantos anos, Aliel?
─ Que falta de educação perguntar o nome de uma dama, Sr. Daniel – brincou, como parecia ser a única coisa que fazia a vida inteira – mas para você eu digo, quatorze, fiz agora em setembro. Por quê, você quer namorar comigo?
Eu estava pasmo diante daquela garota, tinha uma espiritualidade que deveria irritar muita gente, e resolvi entrar no jogo.
─ Quero. Aliás, Aliel, eu espero por você há quase mil anos ou mais. Forjei um ar poético para recitar Leoni e comecei: sempre tive a impressão de que...
“Nascemos um para o outro dessa argila
De que foram feitas as criaturas raras
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu trago a alma dos faunos na pupila.

Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranqüila

E é tanta a glória que nos encaminha
Nesse Amor de seleção profundo
Que ouço ao longe o oráculo de Elêusis:

Se um dia eu fosse teu e fosses minha
O nosso amor conceberia o mundo
E de teu ventre nasceriam deuses.”

E você quer me namorar? – Arrematei.
─ Quero, mas não posso. – falou sério – eu namoro um menino lá do condomínio. Nossos pais são muito chegados, dizem que nós vamos casar.
─ Você gosta dele? – Perguntei.
─ Não sei, a gente passou a infância toda junta, temos a mesma idade. Às vezes acho que ele é um irmão e tenho pejo de beijá-lo. – nesse momento seu rosto readquiriu o brilho habitual e ela disparou com os olhos de criança – que coisa bonita essa que você falou, e aquela moça que deixou você chorando, quem é? É sua namorada né, seu pérfido, brigou com a namorada e já está querendo arranjar outra...!
─ Você é linda demais – interrompi-a – queria vê-la de novo, pode ser?
─ Claro, podemos ser grandes amigos. Anota o meu telefone que eu anoto o teu e a gente se fala...
Conversamos por mais de uma hora. Depois nos levantamos, eu a beijei no rosto e ela se foi. À noite eu liguei para ela. Quem atendeu foi a mãe. Quando perguntei por Aliel, a mulher, com uma voz austera, quis saber quem queria falar. Tive vontade de dizer que era o menino que encontrou Aliel, perdida, na praia, há dez anos, mas achei estúpido e lhe disse que era um amigo. “Aliel não está” Respondeu a voz do outro lado mais austera ainda. Agradeci e desliguei.





quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

CAPÍTULO V

CAPÍTULO V

“Mas Deus que é soberanamente justo e bom, concede ao Espírito tantas encarnações quantas as necessárias para atingir seu objetivo – a perfeição.”
(Allan Kardec)

Os dias e as noites que passei naquele ambiente nunca serão esquecidos. Entravam e morriam pessoas todos os dias. Foi lá que eu vi de frente a cara da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Pessoas que mais pareciam zumbis do que gente. À noite ouviam-se gritos de portadores da AIDS em estado terminal, eles negavam-se a morrer e horas depois já estavam sobre a pedra à espera de terra e dos vermes, que lhes roeriam as frias carnes. Já estava bem melhor, mas ficara no hospital porque meu pai tinha medo de que eu interrompesse o tratamento. Uma manhã, vagueando pelos corredores, enquanto pensava num mundo de coisas, vi um rapaz discutindo com uma enfermeira. Aproximei-me e percebi que ele reclamava da falta de higiene das dependências do hospital.
Chamava-se Wellington, tinha 23 anos, era portador de AIDS e estava em estado terminal. O que mais me impressionou era o contraste entre sua decrepitude física e sua disposição e consciência, para falar e cobrar melhor tratamento aos pacientes. À tarde, voltei ao corredor e ouvi-o cantando. Foi com certo constrangimento que me dirigi a ele e fiquei sabendo por ele mesmo que talvez não visse o dia seguinte raiar. Ao que comentei:
─ Mesmo assim você me parece disposto, alegre. Diria feliz.
Ele me deu um sorriso magro, que lhe repuxou a pele do pescoço, entretanto era um sorriso vivo, franco, animador. Ele me questionou:
─ E qual seria a saída? Chorar desesperar-me como esses coitados que choram até expirar? Meu caro, o que lhe trouxe aqui com certeza foi algo fruto de suas próprias culpas, para que você tenha tanto medo da morte. No meu caso, não. Já nasci predestinado a este estado, uma vez que sou hemofílico, esse meu sofrimento não passa de uma casca de um fruto deleitável que saborearei em breve, por isso ela me dá coragem e resignação, expio minhas últimas façanhas aqui na terra e conheço esse meu destino. O mundo material deve ser muito importante para você. Existe algo aqui que você tem medo de perder. Você não sabe que estar vivo significa aprender, para melhorar. Quando soube que tinha AIDS, minha preocupação foi me desculpar com as pessoas deste mundo às quais dissera algo que as magoasse. Eu estou partindo hoje, amanhã ou depois de amanhã, meu irmão já partiu antes de mim. Infelizmente ele era ainda verde e se foi com muita dor, eu vou tranqüilo porque sei que é preciso. Ninguém nesse mundo nasce ou morre sem motivo. É necessário nascer e morrer para que possamos nos purificar e melhorar para nascermos em outro mundo ou outro momento que precise de nós. Você não vai agora, ainda há muito que aprender. Nesse plano existem pessoas que precisam de você. Mas urge que as procure. Outras há cuja função é fazê-lo sofrer. Elas precisam desesperadamente de que você sofra, mas você não precisa passar por isso. Aquilo por que procura, você não encontra porque não está sabendo olhar. Olhe com os olhos do espírito, porque os olhos do corpo só vêem o que o mundo lhe mostra, mas os olhos da alma esses lhe mostrarão os objetivos de sua estada aqui, pois se você pensa ser eterno está enganado, se você pensa ser mais importante do que um irmão que acaba de desencarnar, engana-se também. Não pense que você está aqui nesse hospital por acaso. Nesse momento meu espírito, que sou eu, está feliz por encontrar você, algo me diz que a minha última missão acaba de ser concluída.
Já se ia afastando, mas se virou e arrematou:
─ Só mais uma coisa: confie nos seus sonhos, eles não se repetem por acaso.
Dizendo essas últimas palavras ele se retirou e foi dar atenção a um enfermo que andava cabisbaixo e me deixou com um frio na espinha.
À noite tive um sonho, no mínimo estranho, mas que me pareceu bastante familiar. Nele eu me vejo encarnado na pele de uma jovem negra, escrava de uma fazenda de cana de açúcar. Era madrugada e eu estou me preparando para ir para o eito junto com vários outros escravos. Quando vamos saindo, aproxima-se de mim um homem bem vestido, barba negra, luzidia. É o dono do engenho. Ele chega, puxa-me de lado e me sussurra ao pé do ouvido algo como “hoje é a sua última chance, quando voltar do eito eu a estarei aguardo no meu escritório”.
Para aquele dia, nós havíamos organizado uma fuga. Nós seríamos ajudados pelo feitor, que tinha se enamorado de uma escrava e iria nos facilitar a liberdade, para em seguida se juntar a nós. Depois de fugirmos, seguiríamos um caminho indicado por ele por onde chegaríamos a um quilombo seguro, ao qual os capitães-do-mato não tinham acesso. Eu me lembrava então do muito que havia sofrido naquela fazenda. O assédio imposto pelo Senhor do engenho era constrangedor para todos. A própria Senhora sabia de suas intenções para comigo, desde que eu era uma garotinha. Ele, despudoradamente, me cercava, me olhava com os olhos da lascívia e me tocava, como se toca um animal para saber se está pronto para o abate. Quando me achou pronta, passou a me dizer coisas obscenas, a fazer convites para ocupar a cama da Senhora, os quais eu recusava amiúde, pela recusa levava alguns safanões, que depois se tornaram agressões físicas mesmo. Quando bebia, à noite invadia a senzala, chamava o feitor e mandava-o açoitar, não a mim, mas aqueles que sabia serem de meu apreço. Algumas escravas se compadeciam do meu martírio, outras, no entanto, se compraziam com ele. Havia uma, chamada Almerinda. Essa moça me odiava a ponto de não me deixar em paz um só minuto. Nela eu percebi o mesmo espírito de Ângela encarnado. Que mistério estaria por trás de nossas vidas? Quando estávamos na roca, ela me atrapalhava para que eu não cumprisse a produção. Houve uma vez que me quebrou o tear para me ver no tronco. Como continuava a me negar a ir para a cama com o Senhor, ele me mandou para o eito. Era o inferno de cortar e carregar cana de um lado para o outro. Por essa época o feitor, homem de maus bofes, envolveu-se em uma briga numa venda, que abastecia de cigarro e cachaça os homens livres, e morreu com um tiro no peito. Alguns negros fizeram até uma pequena festa com dança e bebida africanas. Para ocupar seu lugar foi contratado João Afonso, um açoriano que trabalhava na fazenda vizinha e tinha fama de ser carrasco com os negros. Diziam que lá na outra fazenda morria um escravo por semana no relho. Mas aí o amor, esse mistério que não se desvenda aos olhos humanos, abrandou aquele coração de pedra. Ele se enamorou de Rita, uma negrinha sisuda e de nariz empinado que não ria de graça. Mas o amor é inexplicável. E amar só se aprende amando, mesmo que não o compreendamos. No fundo todos nós nascemos para morrer de amor. Todo o conhecimento humano seria totalmente desnecessário e não teria emergido das profundezas do cérebro da humanidade se não fosse por amor. É bastante que encontremos o objeto de amação para sabermos amar. Hoje eu o compreendo. Assim, João Afonso, ao chegar à fazenda, viu Rita e contraiu o amor. Todos tínhamos medo de sua fama, mas ao amar uma escrava ele compreendeu os sentimentos que vão nas veias sob a pele negra. Não chegou a dar uma chicotada em lombo algum. Quando o patrão lhe reclamava, ele adquiria um ar mais austero do que o normal e dizia não ser necessário, pois “negro nenhum ousa desafiar meu chicote”. Quando Rita ficou grávida, João Afonso entrou em contato com alguns abolicionistas, seus inimigos de fato, mas que, ao reconhecer-lhe as mudanças da alma, lhe revelaram o paradeiro de vários quilombos. Ele nos reuniu e planejou a fuga para aquela manhã.
E assim se dá a empresa. Ao chegarmos a certa altura do caminho rumo ao eito ele pede que outros feitores sob suas ordens voltem para pegar alguns implementos que esquecera na senzala. E empreendemos fuga. Mas fomos traídos, possivelmente por Almerinda, que preferiu continuar cativa a ver o sorriso de felicidade nos olhos de alguém. Logo na saída somos surpreendidos pelos cabras da fazenda, que nos estão esperando. Na frente do grupo, o patrão, sorrindo com desdém. Alguns escravos desesperados pela frustração da fuga correm mato a dentro, mas são alcançados pelas balas dos cabras e caem inertes ali mesmo. Os demais somos conduzidos à fazenda, amarrados ao tronco e chicoteados oitenta vezes cada. O feitor é preso por facilitar a fuga de escravos, crime gravíssimo à época. Os dias que se seguiram são de total angústia. Rita não sobrevive a tremendo castigo e falece. O patrão quer dar terrível castigo a nós para inibir outras tentativas de fuga, para ele o prejuízo financeiro de perder alguns escravos não representa nada se comparado ao prejuízo moral de ver o comentário que de sua fazenda fugiram alguns negros.
Quando eu me recupero dos ferimentos causados pelo couro, meu sofrimento moral se intensifica. Sou levada para uma sala e lá fico presa. À noite sou amarrada a uma trave, banhada com água de cheiro, por uma preta banza que balbucia um canto ininteligível. Em seguida, sou envolvida em uma túnica de algodão cru. Mais tarde ele vem, me fala palavras obscenas, enquanto joga baforadas de fumo no meu rosto até me entorpecer. Desnorteada, sou possuída até sua exaustão. No dia seguinte, sempre na mesma hora, ele vem até mim e pergunta se eu não mudara de idéia, se não quero uma vida de Senhora. Diante da minha recusa, a noite anterior se repete indefinidamente. Quando percebo estar grávida, fico desesperada, preciso fugir dali o mais rápido possível. Mas como? Com ajuda de quem? Uma noite, crio coragem e conto meu estado para a escrava que me prepara. Ela sorri pela primeira vez e me diz que minha criança não pode rebentar ali e que me vai ajudar. Eu sinto grande alívio, no entanto meu temor aumenta quando penso que Almerinda não pode saber, pois, apesar de dividir a cama com o Senhor, ela me odeia por não ser predileta. Havia nas imediações da fazenda uma cabana habitada por um curandeiro. Poucas pessoas sabiam da existência dela e dele. Assim numa madrugada a negra vem e com a ajuda de um moleque me conduz engenho a fora. Mas a coisa não se dá facilmente. Tenho de me esconder durante todo o dia seguinte e creio que só não sou capturada por obra divina. Chove fino e isso dificulta a busca, mas pelo resto daquela existência eu não pude esquecer a voz do capataz entoando uma espécie de canto: “Negra fujona, quando eu te pegar, ah, negra, toda vai-te urinar; meu chicote, negra, é feito de couro cru, ele fere mais que espinho de mandacaru.” Já era noite quando chego a tal cabana, tusso bastante e sinto falta de ar. Sou recebida pelo velho Sabino, negro vindo de Moçambique quando ainda pequeno, fugira cedo de uma fazenda das imediações. Passando a viver às margens da região, construíra uma cabana e lá recebia negros fujões feridos e curava-os para que continuassem a fuga. Nele vi o espírito de Wellington encarnado, com certeza essa não foi a primeira vez que convivi com ele (na verdadeira acepção da palavra). Seus conhecimentos de curandeiro advinham de seus avós ainda em Moçambique. Muitas pessoas criam que ele não passava de uma lenda. Contava-se que certa vez um grupo formado por dezenas de capitães-do-mato varreu toda a região à caça do velho, sem encontrá-lo. Formaram-se então as dissidências entre os que criam na sua existência e os que acreditavam ser apenas uma lenda. Dessa forma posso passar lá todo o período de gestação, incomodada somente pela tosse e pela falta de ar. Velho Sabino sai de manhã cedo e volta trazendo frutas, e carne de alguma presa para me alimentar. Devia ter mais de oitenta anos, mas apesar da idade avançada tinha uma disposição e uma memória invejáveis. Conta-me histórias de seu povo e me faz sorrir e tossir contando piadas de Senhores de engenho. Uma noite acordo com a falta de ar intensificada e uma dor terrível no ventre. Ele vem e me diz:
─ Chegou a hora, minha filha, é nesse momento que se emendam as duas dobras da existência.
Eu não entendo suas palavras, mas o ar cada vez me fica mais escasso enquanto a dor me rasga o ventre. Tento agarrar-me à vida, mas percebo que isso é impossível, devido às lágrimas que escorrem pela face do ancião. A vida me é levada pela vida, é dela que termina aquela minha estada aqui. Ainda tenho forças para erguer os olhos e ver o rosto da criança que acaba de nascer. Num último esforço digo ao velho:
─ Adeus!
E ouço-o dizer:
─ Até breve.
E acordei. Os sonhos são interessantes. Às vezes sonhamos pouco por toda a noite. Noutras, sonhamos muito em pouco tempo. Esse sonho que eu tive não deve ter durado mais que uma hora, entretanto ali se passaram anos na mesma seqüência que lhes narrei, como num filme. Foi uma regressão a uma vida passada. E eu compreendi as palavras do Wellington. Durante o resto da noite tive sonhos normais. Sonhei com Ângela, com meus pais, com a escola, tudo de forma desconexa.
Na manhã seguinte procurei Wellington e soube que morrera durante a madrugada. Fui então até o necrotério e vi algumas pessoas ao lado de seu corpo acertando os últimos detalhes com os funcionários de uma funerária. Morto, ele tinha as feições de vivo, morrera quase sorrindo, não havia sofrimento em seu rosto. Virei-me para essas pessoas, que estavam ao lado da pedra, e perguntei:
─ Vocês são parentes do Wellington?
Uma senhora franzina, usando óculos fundo de garrafa e cujo rosto não demonstrava nenhuma dor, foi quem respondeu:
─ Sim, eu sou a mãe. E você quem é?
─ Desculpe-me – falei meio constrangido – é que eu o conheci ontem e ele me parecia tão disposto. – ao que a senhora respondeu:
─ Ele cumpriu sua missão na terra e teve de desencarnar. Meu filho é um espírito evoluído, nesse momento ele deve estar aí pelos corredores, tentando confortar alguém. Em breve ele se elevará para nascer em um outro momento que precise dele.
Ao ouvir aquelas palavras eu senti algo roçar meus lábios, senti um calafrio e voltei para o quarto, com as últimas palavras que ele me dissera no dia anterior.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

CAPÍTULO IV
“Achei cousa mais amarga do que a morte: a mulher cujo coração são redes e laços e cujas mãos são grilhões; quem for bom diante de Deus fugirá dela, mas o pecador virá a ser seu prisioneiro.”
(Eclesiastes: 7; 26)



Tinha dezessete anos e um vício: tabagismo. Tudo começou quando tinha doze anos. Sempre que saíamos da escola um ou outro colega aparecia com um cigarro. À época não conhecia as conseqüências de um hábito como o de fumar ou de qualquer outro vício, pois não havia publicidade contra eles. E para mim, o que interessava era experimentar, saber que gosto tinha aquela brasa que meu tio puxava como se fosse o ato mais prazeroso da existência humana. Quando os colegas começaram a fumar depois da aula, eu fui embalado nessa onda, que além de tudo era proibido pela escola e aumentava a idéia de prazer. O que eu não sabia era que aquele momento de “curtição” iria passar, com o tempo, para os meus colegas, mas para mim não. Tornou-se necessidade a ponto de em pouco tempo eu não conseguir mais esconder de ninguém. Para meus pais foi uma dor de cabeça, mas como sempre acontece, com o tempo, acabaram se acostumando à idéia, mas sempre que podiam listavam-me todos os males causados por esse vício idiota. Eu tentava explicar-lhe que a coisa fugira ao meu controle. Eu já fumava, com quinze anos, trinta a quarenta cigarros diários. Era compulsivo. O vício preenchia todos os eventos diários. Depois do café acendia um cigarro; saía de casa, acendia mais um; se chegava, outro; se ia tomar banho, também, e assim por diante. Tudo era motivo para fumar. O resultado disso foram os dentes amarelados e uma pouca resistência física. Para subir, por exemplo, dois lanços de escada, era-me uma tormenta.
Por isso é que eu digo: tinha dezessete anos e era escravo de um vício. Tentei de diversas formas parar com esse mau hábito, mas todas as tentativas foram inúteis. Tentei uma solução lida em um livro, desses que vendem nas livrarias aos montes. O método consistia em paulatinamente diminuir os cigarros diários, ir cortando-os em determinados horários até que só restasse o último, o da hora de dormir. E assim eu fiz. Cortei primeiro o que eu fumava depois do café da manhã, em seguida um da tarde e assim fui. Até que me restaram cinco cigarros diários e uma angústia terrível. O rendimento escolar caiu. Eu não pensava noutra coisa senão no próximo cigarro. As pernas formigavam e a cabeça não se detinha em nada que queria fazer. Para não ser reprovado, fumei todos os cigarros que os nervos me ordenavam fumar, tirei o atraso. Abandonei de vez o método e voltei a ser “normal”. A partir daí assumi novamente o vício, como se fosse algo que fizesse parte de mim, sem remorso. Pois o cigarro era meu prazer e na minha cabeça começou a se formar a idéia fixa de que quem quisesse me aceitar teria que ser do jeito que eu era. Passei a adotar frases para desarmar os antitabagistas, como “Sei que o cigarro mata devagarinho, mas eu não tenho pressa de morrer”, ou “Desconfia dos que não fumam, eles não têm mundo interior, eles não têm sentimento, pois fumar é uma forma disfarçada de suspirar.”
Foi nesse ínterim que conheci Ângela. Uma colega de 2ª série do Ensino Médio. De repente nos pegamos falando as mesmas coisas, ouvindo as mesmas músicas e fumando os mesmos cigarros. Foi paixão imediata. Era nos nossos beijos que me encontrava e me realizava. Íamos para a Ponte Metálica (Ponte dos Ingleses) e lá ficávamos até o manto noturno desabar completamente sobre a terra, inventávamos versos, cifras. Depois passamos a inventar posições, era o prazer sexual que finalmente me vinha despertar as mais loucas sensações; seus lábios eram doces como favos de mel e as alucinações que me sussurrava azeitavam o meu viver, enquanto sua língua, penetrando meus ouvidos era aguda como espadas. Quando estava só, lembrava-me de Aliel e por onde passava buscava-a. Ela devia ter então onze anos e eu não a encontrava, só em setembro é que ela me abria os braços em desespero, e as lágrimas me vinham pela manhã por não poder salvar a mulher da minha vida.
Passava o dia inteiro fora de casa, trazia sempre às costas a mochila da escola, que continha pouco material escolar e mais revistas de cifras, poemas diversos e livros de filosofia, além é claro de duas ou três carteiras de cigarro. Tinha sempre o cuidado de não deixar faltar meus “inseparáveis companheiros”. Mais da metade do dinheiro que meus pais me davam para o lanche e para o transporte era consumida pelo vício. E eles me davam sempre mais do que o necessário, já prevendo isso. Apesar de estudarmos na mesma sala, Ângela fazia questão de só nos vermos fora da escola. E assim à tarde nos encontrávamos e eu me transmudava para o mundo da paixão.
Um dia, Flávio, um dos poucos amigos que tinha no colégio, chegou e me disse que Ângela fazia jogo duplo. Namorava ao mesmo tempo comigo e com um garoto da 3ª série. O chão abriu-se sob meus pés, fiquei desnorteado e esbofeteei meu amigo para depois desaparecer de sua frente. Não podia ser verdade! Ela me amava! À tarde fui enfático com ela e lhe pedi a verdade. Ela negou tudo, disse que o Flávio queria era fazer intriga, que vivia dando em cima dela, que eu não tinha motivos para desconfiar dos seus sentimentos, por fim chorou. Era só o que eu queria e num abrir e fechar de ouvidos cri na sua versão para os fatos.
Mas o pior veio em seguida quando descobri que era tudo verdade. Ela não fazia jogo duplo, fazia jogo triplo, jogo quádruplo e até com um professor da escola ela transava. Soube depois da existência de um tal clube da Ângela, formado por homens de todas as idades que, entre doses de uísque, revezavam a posse de seu corpo. Diante da queda da máscara da mulher que eu amava como louco, eu me desesperei. Mesmo assim, ela continuava negando e eu esperava essa negação para cair em seus braços novamente. Ela era o meu segundo vício. Meu corpo agora dependia do duplo: dela e do cigarro. Faltava-me o terceiro: o álcool. Para enganar a mim mesmo e imaginar que era amado por Ângela e que ela só pertencia a mim, unicamente, comecei a beber. Quando ela saía de meus braços, eu entrava no primeiro bar que encontrava e tomava algumas cervejas. Com o tempo adotei uma espelunca, próximo a minha casa. Lá, enquanto se jogavam cartas, eu bebericava e conversava com um e outro e só tornava a casa quando estava completamente bêbado. O fim de tudo era o amargo na boca semelhante ao jiló, que me levava ao inferno aqui mesmo na terra.
Mas para minha sorte caí doente, gravemente doente. Uma tosse crônica ocupava meu tempo, aos poucos perdi o apetite e comecei a perder peso. Um dia, sem coragem de me levantar, tive um acesso de tosse seguido de sangue e pus, desmaiei no meio da rua. Acordei num hospital, na manhã seguinte, sem lenço e sem documentos, pois haviam roubado minha inseparável mochila. Quando procurei saber onde me encontrava, fiquei surpreso quando me disseram ser o Hospital São José, lugar onde se curam doenças infecto-contagiosas. Pensei estar com AIDS e agradeci a Deus por não ter documentos, só assim meus pais não me encontrariam. Mais tarde o médico me deu o diagnóstico: “Você contraiu uma moléstia causada pela Mycrobacterium tuberculosis, também conhecida como bacilo de Koch.” Era a tuberculose, o mal do século XIX que vitimou Castro Alves, Álvares de Azevedo e quase toda uma gerações de jovens, que agora vinha me salvar.
Foi lá nesse antro de sofrimento e lamento que comecei a entender e a compreender o meu destino.