sexta-feira, 19 de junho de 2009

ESSE É O PRINCIPEZINHO

NOTAS DAS AVENTURAS DO PEQUENO PRÍNCIPE


O principezinho, depois de deixar seu pequeno planeta, chega a um outro não muito maior. Lá encontra o monarca absoluto e mantém com ele um diálogo, do qual subscrevo o seguinte trecho:

O principezinho, depois de deixar seu pequeno planeta, chega a um outro não muito maior. Lá encontra o monarca absoluto e mantém com ele um diálogo, do qual subscrevo o seguinte trecho:

“ ─ Majestade... sobre quem é que reinais?
─ Sobre tudo, respondeu o rei, com uma grande simplicidade.
─ Sobre tudo?
O rei com um gesto discreto, designou seu planeta, os outros, e também as estrelas.
─ Sobre tudo isso... respondeu o rei.
Pois ele não era apenas um monarca absoluto, era também um monarca universal.
─ E as estrelas vos obedecem?
─ Sem dúvida, disse o rei. Obedecem prontamente. Eu não tolero indisciplina.
Um tal poder maravilhou o principezinho. Se ele fosse detentor do mesmo, teria podido assistir, não a quarenta e quatro, mas a setenta e dois, ou mesmo a cem, ou mesmo a duzentos pores-do-sol no mesmo dia, sem precisar sequer afastar a cadeira! E como se sentisse um pouco triste à lembrança do seu pequeno planeta abandonado, ousou solicitar do rei uma graça:
─ Eu desejava ver um pôr-do-sol... Fazei-me esse favor. Ordenai ao sol que se ponha...
─ Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor a outra como uma borboleta, ou escrever uma tragédia, ou transformar-se em gaivota, e o general não executasse a ordem recebida, quem – ele ou eu – estaria errado?
─ Vós, respondeu com firmeza o principezinho.
─ Exato. É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar, replicou o rei. A autoridade repousa sobre a razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance ao mar, farão todos revolução. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis.
─ E meu pôr-do-sol? Lembrou o principezinho, que nunca esquecia a pergunta que houvesse formulado.
─ Teu pôr-do-sol, tu o terás. Eu o exigirei. Mas eu esperarei, na minha ciência de governo, que as condições sejam favoráveis.”
(O Pequeno Príncipe, Exupéry. tradução de dom Marcos Barbosa, Agir, 39ª edição, pp. 38 à 40)

Observemos que apesar de toda a autoridade nosso rei é sábio. Entende que as pessoas não são aquilo que queremos que elas sejam, nem as situações estão sempre favoráveis à nossa vontade. É preciso que haja condições para que tenhamos o que desejamos com tanta impaciência. É preciso esperar o momento adequado e que nossas vontades, sonhos sejam razoáveis.


quarta-feira, 17 de junho de 2009

A MORTA

Hoje tive um sonho interessante. Sonhei que estava em sala de aula falando para nossos alunos sobre um dos mais interessantes contos que já li: A Morta, do escritor francês Guy de Maupassant. Lembrei-me também de uma pessoa muito importante para mim e que é, como eu, apaixonada por esse conto. Transcrevo-o abaixo para deleite de algum visitante desafortunado.
A Morta

Eu a amara perdidamente! Por que amamos? É realmente estranho ver no mundo apenas um ser, ter no espírito um único pensamento, no coração um úni­co desejo e na boca um único nome: um nome que ascende ininterruptamente, que sobe das profundezas da alma como a água de uma fonte, que ascende aos lábios, e que dizemos, repetimos, murmuramos o tem­po todo, por toda parte, como uma prece.
Não vou contar a nossa história. O amor só tem uma história, sempre a mesma. Encontrei-a e amei-a. Eis tudo. E vivi durante um ano na sua ternura, nos seus braços, nas suas carícias, no seu olhar, nos seus vestidos, na sua voz, envolvido, preso, acorrentado a tudo que vinha dela, de maneira tão absoluta que nem sabia mais se era dia ou noite, se estava morto ou vivo, na velha Terra ou em outro lugar qualquer.
E depois ela morreu. Como? Não sei, não sei mais.
Voltou toda molhada, nutria noite de chuva, e, no dia seguinte, tossia. Tossiu durante cerca de uma semana e ficou de cama.
O que aconteceu? Não sei mais.
Médicos chegavam, receitavam, retiravam-se. Traziam remédios; uma mulher obrigava-a a tomá-los. Tinha as mãos quentes, a testa ardente e úmida, o olhar brilhante e triste. Falava-lhe, ela me respondia. O que dissemos um ao outro? Não sei mais. Esqueci tudo, tudo, tudo! Ela morreu, lembro-me muito bem do seu leve suspiro, tão fraco, o último. A enfermeira excla­mou: "Ah! Compreendi, compreendi!"
Não soube de mais nada. Nada. vi um padre que falou assim: "Sua amante." Tive a impressão de que a insultava. Já que estava morta, ninguém mais tinha o direito de saber que fora minha amante. Expulsei-o. Veio outro que foi muito bondoso, muito terno. Cho­rei quando me falou dela.
Consultaram-me sobre mil coisas relacionadas com o enterro. Não sei mais. Contudo, lembro-me muito bem do caixão, do ruído das marteladas quando a enterraram lá dentro. Ah! meu Deus!
Ela foi enterrada! Enterrada! Ela! Naquele bu­raco! Algumas pessoas tinham vindo, amigas. Cami­nhei durante muito tempo pelas ruas. Depois voltei para a casa. No dia seguinte, parti para uma viagem.

Ontem, regressei a Paris.
Quando revi o meu quarto, o nosso quarto, a nossa cama, os nossos móveis, toda essa casa onde ficara tudo o que resta da vida de um ser depois da sua morte, o desgosto apoderou-se de mim novamente, de uma forma tão violenta que quase abri a janela para atirar-me à rua. Não podendo mais permanecer no meio daqueles objetos, daquelas paredes que a tinham encerrado, abrigado, e que deviam conservar em suas fendas imperceptíveis milhares de átomos seus, da sua carne e da sua respiração, peguei meu chapéu para sair. De súbito, ao atingir a porta, passei diante do grande espelho que ela mandara colocar no vestíbulo para mirar-se, dos pés à cabeça, todos os dias antes de sair, para ver se toda a sua toalete lhe ia bem, se estava correta e elegante, das botinas ao chapéu.
E parei, de chofre, diante desse espelho que tan­tas vezes a refletira. Tantas, tantas vezes, que também deveria ter guardado a sua imagem.
Fiquei lá, de pé, trêmulo, os olhos fixos no vidro liso, profundo, vazio, mas que a contivera toda, que a possuíra tanto quanto eu, tanto quanto o meu olhar apaixonado. Tive a impressão de que amava aquele espelho - toquei-o - estava frio! Ah! recordação! recordação! Espelho doloroso, espelho ardente, espelho vivo, espelho horrível, que inflige todas as torturas! Felizes os homens cujo coração, como um espelho onde os reflexos deslizam e se apagam, esquece tudo o que conteve, tudo o que passou à sua frente, tudo o que se contemplou e mirou na sua feição, no seu amor! Como sofro! Saí e, involuntariamente, sem saber, sem que­rer, dirigi-me ao cemitério. Encontrei seu túmulo, um túmulo singelo, uma cruz de mármore com algumas palavras: "Ela amou, foi amada, e morreu."
Lá estava ela, embaixo, apodrecendo! Que hor­ror! Eu soluçava, a fronte no chão.
Fiquei lá por muito tempo, muito tempo. Depois, percebi que a noite se aproximava. Então, um desejo estranho, louco, um desejo de amante desesperado apoderou-se de mim. Resolvi passar a noite junto dela, a última noite, chorando no seu túmulo. Mas me ve­riam, me expulsariam. Que fazer? Fui esperto. Levan­tei-me e comecei a vagar pela cidade dos desaparecidos. Vagava, vagava. Como é pequena essa cidade ao lado da outra, daquela em que vivemos! Precisamos de casas altas, de ruas, de tanto espaço, para as quatro gerações que vêem a luz ao mesmo tempo, que bebem a água das fontes, o vinho das vinhas e comem o pão das planícies.
E para todas as gerações dos mortos, para toda a série de homens que chegaram até nós, quase nada, um terreno apenas, quase nada! A terra os toma de volta, o esquecimento os apaga. Adeus!
Na extremidade do cemitério habitado, avistei subitamente o cemitério abandonado, onde os velhos defuntos acabam de misturar-se à terra, onde as pró­prias cruzes apodrecem, e onde amanhã serão coloca­dos os últimos que chegarem. Está cheio de rosas silvestres, de ciprestes negros e vigorosos, um jardim triste e soberbo alimentado com carne humana.
Estava só, completamente só. Agachei-me perto de uma árvore verde. Escondi-me completamente en­tre os galhos grossos e escuros.
E esperei, agarrado ao tronco como um náufra­go aos destroços.
Quando a noite ficou escura, bem escura, dei­xei o meu abrigo e comecei a caminhar de mansinho, com passos lentos e surdos, por essa terra repleta de mortos.
Vaguei durante muito, muito tempo. Não a en­contrava. Braços estendidos, olhos abertos, esbarran­do nos túmulos com as mãos, com os pés, com os joe­­lhos, com o peito, e até com a cabeça, eu vagava sem encontrá-la. Tocava, tateava como um cego que pro­cura o caminho, apalpava pedras, cruzes, grades de ferro, coroas de vidro, coroas de flores murchas! Lia nomes com os dedos, passando-os sobre as letras. Que noite! Que noite! Não a encontrava!
Não havia lua! Que noite! Sentia medo, um medo horrível, nesses caminhos estreitos entre duas filas de túmulos! Túmulos! Túmulos! Túmulos. Sempre túmulos! À direita, à esquerda, à frente, à minha volta, por toda parte, túmulos! Sentei-me num deles, pois não podia mais caminhar, de tal forma meus joelhos se dobravam. Ouvia meu coração bater! E também ouvia outra coisa! O quê? Um rumor confuso, indefinível! Viria esse ruído do meu cérebro desvairado, da noite impenetrável, ou da terra misteriosa, da terra semeada de cadáveres humanos? Olhei à minha volta!
Quanto tempo fiquei ali? Não sei. Estava parali­sado de terror, alucinado de pavor, prestes a gritar, pres­tes a morrer.
E, de súbito, tive a impressão de que a laje de mármore onde estava sentado se movia. Realmente, ela se movia, como se a estivessem levantando. Com um salto, precipitei-me para o túmulo vizinho e vi, sim, vi erguer-se verticalmente a laje que acabara de dei­xar; e o morto apareceu, um esqueleto nu que empur­rava a lápide com as costas encurvadas. Eu via, via muito bem, embora a escuridão fosse profunda. Pude ler sobre a cruz:
"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinquenta e um anos de idade. Amava os seus, foi honesto e bom, e morreu na paz do Senhor."
O morto também lia o que estava escrito no seu túmulo. Depois, apanhou uma pedra no chão, uma pedrinha pontiaguda, e começou a raspar cuidadosamente o que lá estava. Apagou tudo, lentamente, con­templando com seus olhos vazios o lugar onde ainda há pouco existiam letras gravadas; e, com a ponta do osso que fora seu indicador, escreveu com letras lumi­nosas, como essas linhas que traçamos com a ponta de um fósforo:
"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinquenta e um anos de idade. Apressou com maus tratos a mor­te do pai de quem desejava herdar, torturou a mulher, atormentou os filhos, enganou os vizinhos, roubou sempre que pode e morreu miseravelmente."
Quando acabou de escrever, o morto contemplou sua obra, imóvel. E, voltando-me, notei que todos os túmulos estavam abertos, que todos os cadáveres os tinham abandonado, que todos tinham apagado as mentiras inscritas pelos parentes na pedra funerária, para aí restabelecerem a verdade.
E eu via que todos tinham sido carrascos dos parentes, vingativos, desonestos, hipócritas, mentirosos, pérfidos, caluniadores, invejosos, que tinham rou­bado, enganado, cometido todos os atos vergonhosos, abomináveis, esses bons pais, essas esposas fiéis, es­ses filhos devotados, essas moças castas, esses comerciantes probos, esses homens e mulheres ditos irrepreensíveis.
Escreviam todos ao mesmo tempo, no limiar da sua morada eterna, a cruel, terrível e santa verdade que todo mundo ignora ou finge ignorar nesta Terra.
Imaginei que também ela devia ter escrito a verdade no seu túmulo. E agora já sem medo, correndo por entre os caixões entreabertos, por entre os cadáve­res, por entre os esqueletos, fui em sua direção, certo de que logo a encontraria.
Reconheci-a de longe, sem ver o rosto envolto no sudário.
E sobre a cruz de mármore onde há pouco lera:
"Ela amou, foi amada, e morreu", divisei:
"Tendo saído, um dia, para enganar seu amante, resfriou-se sob a chuva, e morreu”.

Parece que me encontraram inanimado, ao nas­cer do dia, junto a uma sepultura.
(31 de maio de 1887)
com as devidas adaptações para nova ortografia.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO XXII
“Nascemos um para o outro dessa argila
de que foram feitas as criaturas raras”
(Raul de Leôni)



Desde então tornamos-nos inseparáveis, aliel e eu. Não havia lugar que eu fosse que ela não estivesse ao meu lado. Passeávamos juntos, íamos às compras um ao lado do outro, levávamos os filhos para o mesmo passeio. Até que, a despeito do que as pessoas poderiam vir a comentar, Aliel mudou-se para nossa casa, como se dela tivesse saído para fazer um passeio. O nosso amor finalmente desabrochou como as pétalas de uma rosa ansiosas por verem a luz do sol. Nadiel e Leila ganharam uma mãe e um pai, e os quatro formamos uma família feliz. As lembranças do passado foram guardadas no fundo do nosso consciente e tacitamente sem palavras fizemos um acordo de nele não tocar. Aliel continuou a fazer seu curso de Turismo e sempre que podia aparecia no hospital para me ajudar apesar das reclamações dos colegas. Eu ria do modo como ela invadia as enfermarias cantarolando algo para animar os pacientes, tomando-lhes a pressão, acariciando um e outro sem nenhum receio de contaminação. Quando um médico perguntava por que ela não fazia um curso de enfermagem, ela respondia que não, “basta um em casa ter a obrigação de não viver lá”, fazia um muxoxo e saía para olhar outro doente.
Em outros momentos, ficava em casa cuidando de nossos filhos. Dava a eles toda a atenção possível. Era esfuziante quando brincava com eles, inventando-lhes desenhos, contando-lhes histórias ou fazendo-os rir com mungangos. Quando estávamos juntos, eu não conseguia fazer outra coisa senão mirar sua beleza e, como as crianças, rir dos suas brincadeiras pueris. Por outro lado nunca reclamava de minhas ausências, quando eu virava plantão após plantão sem descanso. Quando eu voltava para casa, dessa muitas vezes inúteis batalhas contra a morte, ela estava me esperando e passava horas velando meu sono.
E assim o tempo passou como uma flecha. Nunca mais fui atormentado por sonhos de outras vidas. Vez por outra reconhecia alguém de uma outra existência ou tinha um leve transe em que revia uma cena de encarnações anteriores, mas nada que me molestasse ou que fosse de grande relevância. Uma noite sonhei com Ernani. No sonho ele era uma criança e estava vestido com um uniforme escolar. Aproximou-se de mim, abraçou-me e me chamou de pai. No dia seguinte, ao chegar do hospital, Aliel me deu a feliz notícia de que estávamos esperando um bebê. Eu chorei, pois agora entendia o significado daquele sonho: Ernani viveria na pele de nosso filho.

EPÍLOGO
“Se este mundo é um demônio
nós somos dele uma parte
e se a vida é só um sonho
que seja um sonho de arte.”
(Fagner/Brandão)

No meu aniversário de cinquenta anos, pedi um presente a Aliel: que ela casasse comigo. É que nos faltara tempo para ter uma lua-de-mel. Ela riu muito antes concordar. A cerimônia foi simples, com poucos amigos e familiares. No dia seguinte partimos para Veneza, um sonho de criança. Depois vim a saber que Aliel também sempre sonhara conhecer a cidade mais romântica do mundo.
No décimo dia nessa maravilhosa cidade, estávamos num restaurante à noite, enquanto eu me embriagava com as brincadeiras de minha amada esposa, vislumbrei a fisionomia de um brasileiro. Seu ar impaciente diante do reflexo das luzes no canal me chamou a atenção. Ele me era familiar, de onde eu o conhecia? Não, não era de onde, mas de que vida! Como sempre, fiquei apenas com a certeza de que era alguém conhecido. Quando Aliel saiu para ir ao toalete, dirigi-me até ele e mantivemos um rápido diálogo, para logo nos familiarizarmos. Ele também era de Fortaleza e isso foi motivo para longa conversa. Quando soube que o Sr. Rodrigo, era esse seu nome, era escritor tive a idéia de lhe contar nossa história para que ele a romanceasse. Algumas vezes eu mesmo tentara fazê-lo, mas meu talento para a literatura era o de leitor, por isso desisti. Nosso novo amigo, encantado por Aliel (impossível, Sr. Rodrigo, alguém não ficar encantado por ela), durante uma semana ouviu de mim essa história de sonhos e de encontros.


FIM

quarta-feira, 3 de junho de 2009

CAPÍTULO XX
“Todo vale será aterrado, e nivelado todos os montes e outeiros; os caminhos tortuosos serão retificados, e os escabrosos, aplanados.”
(Lucas: 3 – 5)

Quando despertei desse transe, estava na enfermaria do cemitério. Ao meu lado, Aliel, vestida de preto, me sorria e com seu habitual jeito brejeiro me falou:
─ Pensei que você também ia me deixar.
Depois de alguns minutos, mais recuperado, contei a ela o que havia ocorrido, ao que ela, meneando a cabeça, disse:
─ Imaginei que houvesse sido isso mesmo, é tanto que, por incrível que pareça, fui eu que acalmei os demais sobre seu estado.
Sua voz era pausada, calma. Soava como se tivesse além de palavras um enorme sentimento de revolta contra o destino, contra tudo que conspirava para que sua existência não fosse normal. Desde quando ela tivera direito a um tempo longo de descanso espiritual, de serenidade, para realmente edificar seu ser. Em quantas de suas mais de cinqüenta vidas estivera plena? Que lhe lembrasse nenhuma. Será que alguém o seria, seria possível aqui na terra, com todas as suas contradições, alguém atingir essa plenitude? Talvez pensasse também em mim, em minha desventura. Pois não éramos os dois desventurados? No entanto não estava o destino conspirando para que ficássemos juntos? Mas Será que se deveria agradecer a esse Senhor tão onipotente por decidir sobre os caminhos de seres tão frágeis, assim de forma tão desgraçada? O certo é que deveríamos nos conformar com Ele. Enquanto ela passava a mão em meus cabelos, uma lágrima caiu sobre mim, e nela pude ler mais interrogações que vinham de sua alma angustiada: “e se ele queria realmente nos juntar, e para tanto abrira uma ferida tão grande no peito de muita gente, pois nem nós nem nossas famílias seriamos os mesmos depois do que ocorrera, nossos filhos um dia saberiam o que havia acontecido de fato, e o que pensariam, não seria esse esforço para nos unir apenas mais uma de suas armadilhas urdida para depois nos destruir novamente, física e moralmente, como o fomos agora?”
Nossas vidas aos poucos ganharam novos rumos, ganharam uma nova rotina. Agora eu era pai e mãe de Leila. Enquanto me desdobrava em cuidados para com meus pacientes, pensava em várias formas de educá-la, dar a ela o carinho de mãe. Ah! Como ela sentia a falta da voz materna! Acordava durante a noite e, por mais que eu me esforçasse, não conseguia fazer com que parasse de chorar, às vezes ela adormecia de cansaço e eu ficava velando aquele ser tão carente do amor de mãe.
Para aliel a vida também não era fácil. Uma criatura que teve na infância a pena de ser torturada por imagens de outras vidas enquanto a mãe sempre censurando-a, certa de que ela era louca. Ela sentia agora um grande desespero pela perda do marido, que talvez tenha sido seu verdadeiro pai, porque soubera compreendê-la e reeducá-la. Naquele momento ela era uma mulher saudável, entretanto frágil e fragilizada. Nas vezes que fui visitá-la e levar sua afilhada para lhe pedir a bênção, encontrei os pais fazendo-lhe companhia. Havia, no entanto, certo desconforto entre ela e eles. Quando me via, A pobrezinha abria um sorriso de gratidão como se dissesse “obrigado por ter vindo, por me tirar desse constrangimento compulsório”. Em breve eles se iam e nós podíamos, às vezes em silêncio, confrontar nossas dores. Eu brincava com Nadiel, e Aliel se encantava com o riso espontâneo de Leila. Em outros momentos, deixávamos os dois brincando e nos dispúnhamos a uma partida de xadrez. Ficávamos a mirar as peças e a pensar em tudo que nos rodeava. Às vezes erguíamos os olhos um para o outro, como se quiséssemos dizer algo, mas as circunstâncias nos impediam. Outras vezes, íamos juntos ao centro espírita, depois a uma pizzaria ou coisa que o valha.
CAPÍTULO XXI
“Minha alma de sonhar-te anda perdida,
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois se tu és já toda minha vida!”
(Florbela Espanca)

Uma vez Aliel me surpreendeu. Era um sábado à tarde, eu estava atendendo um paciente quando a enfermeira me chamou para atender ao telefone. Apesar de o celular já ser quase moda, em 1997, nós médico éramos proibidos de usá-los dentro do hospital, como minha vida toda era dentro dele, eu nunca pensei sequer em comprar um. Só depois, pelos idos de 2002, é que a vida tornou-se impossível sem eles. Ao atender ao telefone, surpreendi-me com a voz de Aliel do outro lado da linha. Ela, com sua voz jovial, me perguntou se eu não queria dançar. A princípio eu não entendi, estava meio atônito. E ela percebendo meu embaraço, tratou de explicar:
─ Olha, eu tomei a liberdade de vir à sua casa e liberar a Marlene durante o dia para que ela venha à noite, pra gente sair um pouco. Ou você não quer?
Pensei um pouco, ainda surpreso com suas palavras. Naquele momento imaginei Aliel tomando conta das duas crianças. A casa devia estar uma bagunça só. Tive ímpetos de correr para casa para presenciar aquela cena, mas me contive. Como me demorei em responder, ela brincou:
─ Alô! Tem alguém aí? – ao que eu respondi:
─ Sim, claro, é que você me pegou de surpresa. Quando terminar o expediente eu vou para casa e a gente resolve.
─ Certo, mas eu quero dançar. Ouviu? – respondeu ela.
O restante da tarde se arrastou a passos de tartaruga, enquanto eu imaginava a cena pela qual eu esperava, mesmo que fosse de brincadeirinha. De súbito tive remorso daquelas idéias, mas algo mais forte do que eu me dizia “deixa de ser tolo, se o destino assim quis, que assim seja”. E me lembrei de uma frase lida ou ouvida em algum lugar: “É incrível a força que as coisas parecem ter quando precisam acontecer.” Repassei como num filme todo o meu passado, refleti sobre o de Aliel e concluí que não devemos ter medo de ser felizes, pelo menos por alguns instantes. Essa é a eternidade de que nos fala o poeta Vinícius de Morais: “Mas que seja infinito enquanto dure!” Era isso! O que eu realmente tinha medo era de sofrer mais uma vez, eu tinha medo da desilusão. Ademais eu nunca tive certeza dos sentimentos de Aliel, por isso temia um golpe mais forte. De repente as idéias me vieram cristalinas como as águas de uma lagoa azul: “vamos agir de forma espontânea, sem forçar o momento, deixar que nossos seres se encontrem de fato”. Pensando nisso, balancei a cabeça para espantar as minhocas que se enrolavam em meu cérebro e fui atender a um paciente.
Quando cheguei a casa, encontrei uma cena merecedora de um quadro. as crianças batiam palmas compassadamente ao som de uma música infantil cantada por Aliel que as rodeava, fazendo os movimentos que eram imitados por elas. Ao lado Marlene se deleitava, com a cena, formando o pano de fundo do quadro uma desarrumação completa: livros de histórias infantis pelo chão, papéis rasgados, tesouras, tubo de cola derramando o líquido pelo chão. A única coisa que estava organizada era a cabeça das crianças. Aliel estava suada com toda aquela trabalheira. Difícil foi fazer com que os pequenos lhe deixassem sair para tomar banho. Reclamavam a toda hora que queriam dançar, bater palmas, mas devido o adiantado da hora e a prática da Marlene eles se renderam ao cansaço e dormiram, ambos no sofá, tomando a mamadeira.
Quando por fim aquela bagunça saiu de minha retina, fui-me aprontar. Aliel demorou uma hora e meia para fazê-lo, enquanto eu tentava distrair a impaciência folheando sem ver uma e outra revista. Finalmente pudemos sair. Estava uma noite linda. A lua branca parecia nos premiar com sua luz imensa e amarela. Eu respirei o ar da noite, mirei as estrelas. Como é bela a noite! Infelizmente devido ao corre-corre do dia não vemos a noite, só sua negritude; assim como não admiramos o dia, só sentimos a luz e o calor do sol. As pessoas seriam, com certeza, melhores e bem mais felizes se vivessem mais o sol e menos o dia; a lua e a noite, menos a escuridão. Eu estava feliz, e Aliel possuía um sorriso de menino que acabou de inventar uma brincadeira, mas que não pode contar para os colegas.
Fomos à Praia de Iracema (Ah! que saudades!), depois a um restaurante para jantar. Por fim realizamos o desejo de minha companheira: dançamos. Fomos a um bar-restaurante e lá ficamos por muito tempo, nossos corpos se confrangeram e por toda a noite dançamos como se nunca tivéssemos feito outra coisa na vida. Embalado pela música e pelo perfume de Aliel não vi o tempo passar. Durante todo esse tempo, não falamos senão alguns monossílabos. Era que não havia necessidade, a música falava por nós, enquanto nossos corpos e nossas almas respondiam à altura. Até que em determinado momento eu a beijei. E ficamos assim, por um tempo que os relógios não marcam. O cheiro da boca de Aliel se confundiu com a maresia e com o cheiro de Ranjicniami: foi o beijo de uma eternidade.
Já era madrugada quando saímos do bar, mas aliel não estava satisfeita. Queria ver o nascer do sol. Voltamos para a praia e lá ficamos esperando o sol surgir com toda sua magnitude apolínea. Aliel dormiu no meu colo e não viu o espetáculo de Hélio. Eu assistia a tudo quando de súbito me vi em uma outra época bem remota. Eu era um menininho negro e estava aguardando o mesmo espetáculo do Sol, quando passou por mim um grupo de homens vestidos de lorica, trazendo à cabeça um elmo e na mão uma lança. Próximo ao líder do grupo, um indivíduo de pele curtida trajando uniforme civil, dizia algo como “dar-lhe-ei um beijo no rosto e vocês o reconhecerão”. Os olhos dele brilhavam, preso à sua cintura estava um saquinho de onde, com o movimento rápido dos pés por entre o chão pedregoso, tilintavam umas moedas que lá estavam. O homem ao seu lado ainda perguntou: “Tens certeza de que ele reagirá?” ao que ele respondeu: “Ele não deixará que o levem a termo.” O sol naquele momento nascia, mas sua luz era opaca, triste. Aliel como uma borboleta espanejou em meus braços. Eu acordei. Estivera dormindo? Aliel também despertou de seu sono e reclamou por eu não tê-la acordado para ver o nascer do sol. Fomos tomar café numa merendeira que já abrira suas portas. Depois fomos para casa. Naquele dia eu tinha plantão a partir de uma da tarde, por isso dormi feito uma pedra. Quando acordei, Aliel já tinha ido para casa, entretive-me um pouco brincando com Leila e fui para o hospital, onde me esperava uma legião de enfermos, para quem deveria dedicar toda a minha atenção.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO XVIII
“Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, amor!
E para as tuas chagas o ungüento
Com que sarei a minha própria dor.”
(Florbela Espanca)

Quando completou um mês de sua estada ali, Ângela foi para casa totalmente recuperada. Aliás, salvo algumas exceções, todos que chegavam ali saíam recuperados, a partir do milagre dos anti-retrovirais, tudo graças, não esqueçamos de falar, ao esforço conjunto do governo e de toda a sociedade. Infelizmente em países pobres, principalmente da África, seres esqueléticos morrem a toda hora vítima desse flagelo, e as perspectivas para o futuro não são nada animadoras. Espera-se, portanto, que o mundo se una num grande consórcio, sem interesses particulares, para socorrer esses miseráveis. Que nações representadas por seus governantes deixem de lado seus desafetos e suas fronteiras, parem de fomentar guerras para se juntar numa luta sem trégua pela salvação da humanidade. Pois bem, depois que saiu do hospital, Ângela passou a me visitar, mesmo nos dias em que não ia dar seqüência ao tratamento. Depois passamos a sair, íamos ao cinema, ao teatro, a shows e atividades afins. Quando demos pela coisa estávamos namorando. Às vezes eu lembrava da outra época, de nosso namoro de outrora. Naquele tempo nosso relacionamento parecia uma tromba d’água, as cataratas do Iguaçu. Agora, assemelhava-se a um manso lago azul, fazíamos amor, é óbvio, mas com o consentimento do momento e da ocasião, sem nos atropelarmos, sem os desatinos de então. Ela me levou pela primeira vez a conhecer seus pais, e eu fiz o mesmo. Num outro dia, fomos pela primeira vez para ela conhecer Aliel e seu esposo. Apesar de não querer demonstrar, Aliel se roeu de ciúme. Eu ria interiormente com a situação, no mínimo hilária, era ciúme fraterno. Descobri com o tempo que formávamos um quarteto, por isso resolvi casar com Ângela, para surpresa até mesmo minha. Foi uma decisão súbita. Eu estava dormindo quando no meio da noite despertei com aquela idéia me carcomendo o juízo. Eu estava prestes a terminar meu curso, as minhas funções iriam se intensificar e eu precisava de um porto seguro para garantir o retorno do navio cansado da labuta. Por outro lado, aliel e Ernani eram tão felizes que a esperança de vir a tê-la quase inexistia. Além disso, Ângela havia mudado e nossos seres se completavam. Pela madrugada consegui dormir, mas logo acordei despertado dessa vez pelas palavras do Wellington sobre alguém que queria me fazer sofrer e me veio à memória o que ela me fizera no passado, entretanto a idéia de sua metamorfose reforçava a decisão, e dormi convicto do que deveria fazer. Na manhã seguinte comuniquei aos meus pais que resolvera me unir em matrimônio com Ângela. Eles não acharam problema nenhum, principalmente depois de eu explicar que, mesmo tendo o vírus da AIDS, Ela poderia perfeitamente ter filhos, sem transmiti o HIV para o bebê. No final de semana oficializamos o noivado num almoço na casa de Aliel, que no fundo não escondia que estava sendo picada pelo mosquito do ciúme.
Dois meses depois estávamos casados e felizes. Pouco tempo depois, num passeio à praia, Aliel nos contou que estava grávida e que teria um bebê para dali a oito meses. No domingo seguinte foi a vez de Ângela revelar o que já suspeitávamos, também seríamos pais. É uma sensação singular esta de ser pai, poder transmitir seu ser a uma criança que vai nascer. Para nós quatro, esse sentido era maior porque ficávamos pensando quem encarnaria em nossos filhos, que espírito estava na fila para renascer um nosso rebento? Entre os cuidados que tinha com um paciente e outro, ficava pensando naquela criaturinha que se formava, como seriam seus traços físicos; como será seu gênio, tranqüilo, enfezado, tímido, extrovertido. Foi com grande expectativa que recebemos o resultado dos exames, e para nossa alegria o feto não era soropositivo.
Os bebês nasceram na mesma semana. Aliel dera à luz um lindo menino, e Ângela, uma espetacular menina. Conforme já estava combinado, nossa filha chamou-se Leila, Aliel de trás pra frente, e o filho de Aliel chamou-se Nadiel, anagrama de meu nome. Durante o primeiro ano de vida de Leila e Nadiel, éramos as seis pessoas mais felizes do universo. Encontrávamos, sempre que podíamos, em praças, clubes e ambientes afins. Quando estava de plantão ou quando o hospital requeria minha presença mais constante, Ângela ficava com Aliel, e assim nossos filhos cresciam unidos, irmanados pelo afeto que nos unia. Ângela dera uma ótima mãe, melhor do que eu poderia imaginar, atenciosa, carinhosa, prestativa. Não havia ressonar da Leila mais forte que ela não despertasse e fosse ninar a filha, eu estava feliz por tê-la encontrado naquele dia, no leito do hospital. Ernani também se mostrava bastante feliz pela situação, tornara-se amigo de Ângela, e eu ficava enternecido quando ia buscá-la juntamente com a nossa filha e encontrava os dois, ela e Ernani, conversando na sala, ou compenetrados numa partida de xadrez. Muita vez, Aliel dormia enquanto essas cenas ocorriam. Éramos, pois, felizes...



CAPÍTULO XIX
“De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.”
(Vinícius de Morais)


... Até o dia e que o mastro onde tremulava a flâmula de nossa felicidade ruiu sobre nossas cabeças, para assombro dos sobreviventes. Era meia noite de sábado e eu estava de plantão. Nesse dia os corredores pareciam mais lúgubres do que o costumeiro, o sofrimento daquelas criaturas me causava um calafrio inexplicável. Eu andava pelos corredores ouvindo-lhes a tosse ou os gemidos que se misturavam num lamento triste. Quando o bip chamou. Era aliel. Fui até o telefone mais próximo e liguei, apreensivo, pensando ter havido algo com Leila. Aliel chorava e pedia desesperadamente que fosse ao seu encontro. Os soluços não lhe permitiam palavras elucidativas, e eu, após chamar um amigo para me substituir, chispei para lá. No caminho minha cabeça girava e eu imaginava as mais diversas situações que poderiam ter ocorrido para aquele desespero de Aliel, mas jamais atinaria com a verdade. Chegando lá, encontrei-a do mesmo modo como estava ao telefone. Ela correu para mim, me abraçou e soluçando me disse:
─ Um acidente terrível com Ernani, vamos comigo. – Disse entre soluços!
─ Claro! – disse eu – vamos logo! – e pegue o telefone para ligar para Ângela, e fiquei surpreso por ela não estar. Quem atendeu foi Marlene, nossa diarista, que me dissera que Ângela lhe havia pedido para ficar com Leila. Outrossim, liguei para o IJF para saber se alguém já havia ido ao local de algum acidente na BR. A resposta foi afirmativa. E eu saí com aliel para o local do sinistro um pouco mais tranqüilo, pois se havia socorro era porque havia alguém para ser socorrido.
O local estava já cercado por policiais e equipes de reportagem. Nós nos identificamos e fomos liberados para ver a cena de perto. O carro do psicólogo estava totalmente destroçado. Os bombeiros tentavam a custo retirar as vítimas, duas, um homem, Ernani e uma mulher, cujos rosto estava coberto pelas ferragens. A escuridão também contribuía para que não identificássemos a companheira de Ernani. Aliel abraçada a mim, não chorava, apenas soluçava de vez em quando. Conversando com os policiais, ficamos sabendo que um caminhão, que se encontrava a alguns metros dali, havia avançado a contramão. Continuamos esperando apreensivos enquanto o local transformou-se num inferno de carros e curiosos. O socorro já chegara há algum tempo, mas não podia agir enquanto as vítimas não fossem retiradas dos destroços. Em pouco tempo alguém nos chamou, era o médico do socorro: “Infelizmente não foi possível salvá-los” Falou enquanto tirava as luvas e as atirava longe como um lutador que joga a toalha após a derrota. Foi quando finalmente pudemos ver os rostos dos corpos exânime: Ernani e Ângela haviam morrido abraçados sob as ferragens do que antes havia sido um automóvel de passeio. O choque para mim não fora menos cruel do que o fora para Aliel. Não compreendíamos o que estava acontecendo, se uma bomba estourasse próximo a nós não causaria tanto espanto, como foi o causado naquele momento por aquela surpresa. Aliel desmaiou nos meus braços, e tive de levá-la para casa. Chamei seus pais e, mesmo abalado, tive de fazer um esforço sobre-humano para me controlar. Sempre achei que as pessoas têm todo o tempo do mundo para se rasgarem, arrancar os cabelos ou bater com a cabeça na parede, menos quando precisam ter calma. Fui para casa ver como estava minha filha, tomei um banho, troquei a roupa e fui cuidar da burocracia que compete aos vivos para dar termo aos mortos.
O dia seguinte foi o mais longo de toda minha existência. O velório se realizou na igreja do cemitério Parque da Paz. Mesmo havendo profundo sofrimento envolvido no caso, não houve quem se opusesse a realização dos enterros no mesmo horário e lugar, a missa também foi uma só. Coincidentemente havia naquele domingo muitos enterros a se realizarem ali, o cemitério fervilhava de familiares de finados, parecia que era o dia dos mortos. Aliel estava abraçada a mim. Já não soluçava. Vez por outra me olha e fazia um gesto com a boca de quem pedia desculpas pelo ocorrido. Estávamos assim, quando senti uma sensação estranha, quase caí. Um amigo médico se aproximou, perguntou se eu estava passando bem, ao que eu disse:
─ Sim, estou bem. – e pedi – fique aqui com aliel, que vou tomar uma água.
Quando me dirigia para fora, pensando que o meu mal-estar era provocado pelo aglomerado, pois sempre tive um pouco de claustrofobia, desmaiei. Súbito vi quando as pessoas correram para mim, vi também Aliel desesperada. Meu amigo médico levou-me imediatamente para uma sala. Tudo sumiu. Ao redor de mim, vi Ângela, Ernani e vários outros recém desencarnados. Ernani estava abstraído, distante, perdido, dir-se-ia numa atitude quase resignada. Sua áurea demonstrava arrependimento. Ângela ao seu lado, falava palavras ensandecidas, gritava que sua fraqueza era não ter amor, pois se amasse a esposa não teria caído em sua armadilha e ria, sua áurea era negra, obscurecida por um gênio ruim, cujo imo era difícil de se atingir. Quando me viu, arreganhou os dentes e me perguntou:
─ Que foi? Já vieste te juntar a nós? Ou vieste apenas me agradecer pelo que te fiz? Vai, volta logo para os braços de Aliel. O caminho agora está livre e graças a mim. – falou com uma fala que me lembrou Almerinda, com um sarcasmo irritante.
─ Cala boca, seu espírito apodrecido, você não tem o direito de se reportar aos sublimes – gritei eu – você não se envergonha de, vida após vida, a única coisa que faz é seguir seus instintos, eu sempre soube o que realmente lhe dá prazer: é ver a vida das pessoas destruída.
Nesse momento ela se aproximou de mim, fez um muxoxo de quem está arrependida e me falou baixinho:
─ Mas o caminho agora está livre, meu bem, – repetiu – volte logo para os braços de sua Aliel, antes que nos venham buscar. Ou você pensa que eu nunca soube de sua história com ela, hem!? Aquele bobão me contou tudo. – e apontou para Ernani, que estava muito distante.
Eu a afastei de mim com força, e ela gargalhou sonoramente, fez um desdém e foi ter com os outros que estavam mais afastados e lá ficou fazendo terror sobre o que os esperava. Aproximei-me de Ernani, ele me fitou e me pediu desculpas, em seguida falou:
─ Durante toda minha existência eu me pautei a ser um homem digno, honesto, fiel. E o fui até o dia em que essa coisa ruim – e apontou para Ângela – entrou na minha casa e começou a me torturar. Eu devia ter resistido, pois é impossível uma pessoa ser tão dissimulada. Na frente de vocês, sua e de Aliel, era um anjo, seu olhar para mim era quase fraterno. No entanto, quando vocês não estavam, havia lascívia em seus olhos, luxúria em seus trejeitos, mel em suas palavras Quando dei por mim estava vivendo o céu em vida. Agora estou vivendo o inferno na morte. – e me pediu novamente desculpas e se afastou para o seu limbo.
Nesse momento todos os espíritos saíram para o campo verde, salpicado de branco da cal dos jazigos. Alguns choravam, lamentavam-se por abandonar a vida, outros como Ernani, pareciam estar num profundo estado de resignação. Sob toldos brancos abriram-se covas, as de Ernani e Ângela postaram uma ao lado da outra. Eu vi Aliel amparada pela mãe, enquanto os pais de Ângela ficavam a alguns passos atrás. Foi em silêncio, que os corpos desceram ao leito derradeiro. Alguns espíritos gritavam quando a luz chegou para levá-los, outros apenas baixaram a cabeça, Ângela ria alto, escandaloso. E eu assisti a tudo entristecido por ela. Quando nos encontraremos de novo? Terá ela tirado dessa sua estada aqui na terra alguma lição de fato para sua evolução? Infelizmente, assim como há pessoas, espíritos reticentes, é claro, também os há.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO XVI
“A encarnação é necessária ao duplo progresso moral e intelectual do espírito(...). a vida social é a pedra de toque das boas ou más qualidades.”
(Alan Kardec)

As aulas na faculdade se iniciaram no começo de fevereiro, portanto nesse mês não tive tempo para nada. Era mais ou menos pelo dia vinte quando Ernani me telefonou para dizer que o tal psiquiatra americano já estava em Fortaleza e que marcara o início das sessões de regressão para o sábado. Nos dois dias que antecederam a essa data eu me desdobrei para não deixar nenhuma atividade acadêmica para esse final de semana. Dessa forma sábado chegou, e nos reunimos na casa de Ernani para a já famigerada sessão. O médico explicou os procedimentos a serem executados e os problemas que poderiam ocorrer. Disse que mesmo nunca tendo presenciado ou tido notícias de efeitos negativos nos pacientes, era possível que eles ocorressem. Por isso o marido de Aliel teve de assinar um termo de compromisso, que foi guardado metodicamente pelo homem que se chamava Bob, apelido de Robert. Ele ainda perguntou a Aliel sobre seus traumas, suas fobias. Ela fez referência ao medo de tomar comprimido, “pois eles sempre ficam atravessados na garganta.” E colocou as duas mãos no pescoço e pôs a língua pra fora, fingindo estar sendo enforcada. Todos riram de sua atitude. Disse por fim um pouco séria sobre o principal motivo de estarmos ali, que era sua obsessão em achar que muitas pessoas as quais nunca vira parecerem-lhe familiares.
Depois dessa conversa que se deu de forma bem descontraída, o homem ligou o gravador e, em seguida, levou Aliel ao estado de hipnose. Aos poucos ela foi relatando o que via. Como se assistisse a um filme de trás pra frente. Chegou a idade de cinco anos e nos relatou alguns maus tratos infligidos pela mãe, que numa tentativa de mostrar às pessoas que a filha era normal, dava-lhe beliscões por baixo das mesas ou bicava suas pernas com a ponta da sandália. Nesses momentos Aliel parecia estar consciente e não hipnotizada, demonstrou bastante tristeza ao se referir aos fatos. Depois ela encolheu-se toda e ficou em posição fetal e pôs o dedo médio na boca. Aos poucos foi-se estirando novamente e em seus lábios apareceu um breve sorriso, que desapareceu dando lugar a uma expressão séria. E começou a falar:
“Eu ando por uma rua estreita, iluminada à luz de lampiões. Eu sou um homem, estou vestindo um terno azul, trago um chapéu na cabeça e tenho uma enorme barba. Entro por uma porta estreita e vejo meus camaradas, que me esperam. Estão todos taciturnos, preocupados. Todos me chamam de “o Escolhido” e também atendem por pseudônimos análogos. Há o Redentor, o Pensador e outros. O lugar onde me encontro é um espécie de bar e alguns gritam alto em espanhol “ ¿En este bar no hay nadie para servirnos?” E riem sem muita explicação. Do interior aparece uma mulher atarracada com algumas garrafas de vinho que distribui pelas mesas. Ao passar por nós ela diz algo como “Éste es vino de la medianoche”. É um código secreto. Agora eu me lembro, somos todos seguidores de Simon Bolívar e temos um plano de nos unirmos ao seu exército em Caracas. Entretanto há um mal estar, entre o grupo. Temos que esperar a meia-noite. Temos que aguardar com naturalidade para não despertar suspeitas nos outros freqüentadores do ambiente. Um dos camaradas retira do paletó um jogo de cartas e jogamos, outros bebem, mas pouco, mesmo assim a tensão não passa. Agora a porta se abre com violência e homens fardados e armados com carabinas entram no salão. Todos vamos presos. Fomos traídos pela taberneira que vai mostrando ao chefe dos fardados quem faz parte do grupo e quem não faz. Ficamos então sabendo que Simon já está refugiado em um país vizinho. Os soldados se aproximam de nós e com suas adagas cortam-nos a garganta. É grande o transtorno dos outros colegas vendo nossos corpos estrebucharem pelo chão coberto de sangue...”
Nesse instante Aliel tornou-se ofegante, com grande dificuldade de respirar. Ela por algumas vezes levou a mão em direção ao pescoço, mas seu ofego foi diminuindo, seu rosto se iluminando. Ela nos contou que fora levada por uma luz e que permaneceu nela um tempo que julgava infinito. Depois começou a espernear como fazem os bebês e nos narrou mais uma de suas vidas. Nesta ela era uma religiosa em missão de caridade numa comunidade pobre no sul da áfrica. Lá sua grande inimiga era a fome que consigo trazia toda sorte de moléstias físicas e morais, narrou-nos seu sofrimento ao ver o semblante da miséria estampada nos olhos e corpos daquelas criaturas desgraçadas. Contou-nos também de sua morte aos oitenta anos rodeada pelas pessoas que tanto ajudara, uma morte, como ela mesma descreveu, feliz.
Nos dias que se seguiram, as sessões se repetiram. Esse trabalho durou exatamente dez meses e aliel regrediu a mais de cinqüenta encarnações. Umas sem grande importância, outras contribuíram de forma decisiva para que ela e nós entendêssemos todos os males que a afligiam, todas suas angústias e temores foram desvendados nessas regressões. Entretanto para mim a mais significativa foi quando ela regrediu há aproximadamente mil anos e se viu como Ranjicniami. Nesse período eu estudava fora de horário e até de madrugada para não perder essas sessões, que depois eram cuidadosamente analisadas por nós e pelo psiquiatra, e das fitas eram tiradas, com o consentimento do casal, cópias, para, segundo ele, quando tivesse coragem, publicar um livro com essas experiências e assim enfrentar a comunidade cientifica.
Foi possivelmente, não lembro bem, na décima quinta sessão que Aliel lembrou pela primeira sua vida como Ranjicniami. Falou do nascimento, da infância, das ameaças do pai, das angústias, do medo que todos na ilha tinham das ondas gigantes. Na segunda vez ela relatou o nosso encontro e novamente lembrou seu nascimento e as ameaças do pai. Foi com grande aflição que, em uma outra sessão, relatou nossa morte causada pelas ondas gigantes que nos arremessaram contra as pedras. Às vezes ela passava inúmeras sessões sem lembrar dessa encarnação, seu ser se voltava para momentos sem grande importância como brincadeiras de infância ou simples discussões familiares. Depois ela voltava a lembrar-se de quando era Miciane e eu Daniel. E já nas últimas reuniões ela só regredia a duas vidas: como Ranjicniami e como Miciane. Essas duas existências de aliel eram os elos que nos ligavam, formavam aquilo que antes era o mistério de nossas vidas. Nós nos amávamos de duas formas diferentes, mas que se completavam. Eu a amava e a protegia enquanto ela era Miciane, e a amava, queria-lhe como um louco enquanto Ranjicniami. Entretanto não pude concluir aquilo que poderíamos chamar de nossa missão. Há mil anos fomos arrebatados pelas águas do oceano e tivemos nosso destino interrompido. Como seu irmão, coincidentemente com o mesmo nome que tenho agora, Daniel, não pude protegê-la das maldades perpetradas pela nossa tia, pois morri precocemente em um acidente de trem. Agora era diferente. Nesta vida tínhamos toda a oportunidade de nos realizarmos, de concluirmos aquilo que talvez seja o motivo de nossa estada aqui na terra: amarmos um ao outro em toda sua plenitude. Somos almas gêmeas que precisamos nos completar, somos as metades da laranja separadas pelo fio da faca do destino e que precisamos nos unir para que nossas almas tenham finalmente paz.
No mês de novembro, encerraram-se as reuniões. O americano deu seu trabalho por concluído. As vidas de Aliel haviam sido dissecadas, se havia uma ou outra que não vieram à tona eram sem grande importância. O próprio médico fez referência ao fato de o mistério de nossas existências estar na análise dessas duas vidas. Ernani sabia disso, mas sabia também que seu destino não o havia colocado diante de aliel por acaso, inclusive ele aparecia mais em suas outras vidas do que eu, era sempre seu pai, amigo, avô, confidente. Ele sabia da importância de seu papel na consecução do destino da esposa. Ele a amava e não abriria mão de seu amor. Ela compreendia agora todo o carinho que nutria pelo marido, com quem se dava muito bem. E isso é amor. Além do mais, conhecia seus compromissos como pessoa socialmente comprometida, não podia abdicar de seu matrimônio. Além de tudo isso, havia entre todos nós o Destino como mediador, diante do que foi visto durante todo esse tempo, nós sabíamos que infringir as suas leis era quebrar uma corrente que fora elada há milhões de anos e que, portanto, não havia nada que pudesse ser feito. Tudo devia continuar como estava: Aliel casada e amando seu marido; eu amando-a e respeitando sua condição; Ernani amando a mulher e sendo amada por ela, sendo meu amigo e crendo na minha fidelidade. Só uma coisa mudara, aliás duas: a cura definitiva de todos os males que acometiam Aliel e a nossa compreensão de tudo o que nos cercava. E só uma coisa não sabíamos: em que teias o futuro, que enreda destinos silenciosamente, nos iria jogar.







CAPÍTULO XVII
“Nasce o sol e não dura mais que um dia,
Depois da luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.”
( Gregório de Matos)


E assim o tempo passou. A faculdade absorveu todos os meus dias e parte de minhas noites. O tempo que me sobrava, quase nenhum, era dedicado a uma visita e outra a Aliel e seu marido. Ela passara, depois das sessões, por uma mudança impressionante. Tornara-se mais adulta, mais cônscia de sua existência material e mais ligada à sua realidade espiritual. Cursava Turismo na Escola Técnica e em seus momentos livres, dedicava-se a atividades beneficentes, como voluntária em uma creche na periferia e a fazer visitas periódicas a hospitais e presídios. Uma vez por mês passou a participar das reuniões no Centro Espírita Paulo e Estevão, no qual se tornou referência entre os colegas. Uma vez por outra eu ia junto. As reuniões e a consciência definitiva da existência desse mundo paralelo me confortavam e me alegravam. Entretanto o que eu esperava que acontecesse comigo não aconteceu. Eu esperava que a partir dali eu me transformasse num médium, psicógrafo ou coisa parecida, mas nada disso se deu, eu era apenas mais um freqüentante do Centro. Certa vez o regente da sessão percebeu meu desapontamento, chamou-me ao jardim e me disse:
─ O mundo dos espíritos ainda nos é muito inacessível, meu caro Daniel. É preciso muita paciência para compreendê-lo. O próprio Chico Xavier disse em determinado momento que não tinha conhecimento total de sua missão, que era apenas um instrumento nas mãos divinas. Por isso algumas vezes se pegava chorando, não de tristeza, mas por falta de compreensão, carência desse entendimento pleno. Possivelmente, apesar de tudo por que passou e vivenciou, as visões de encarnações passadas, a consciência que você tem de tudo isso, não esteja pronto ainda para assumir uma missão abstrata, espiritual. Sua missão ainda é entre os mortais, entre os vivos e não entre os espíritos.
Ele tinha razão! O meu trabalho agora era entre os vivos ou pelo menos entre os quase vivos. Devido às boas notas eu fora convidado a fazer um estágio no Hospital São José, estando ainda a três anos do final do curso, nossa como o tempo voa! Coincidentemente o mesmo hospital no qual me curei do mal-do-século XIX. Lá estava agora eu como médico residente. Lá, deparei-me novamente com a humanidade em frangalhos. Homens e mulheres mutilados pelas enfermidades mais cruéis que existem, a AIDS, Tuberculose, Meningite, entre outras. O pior é que a maioria das pessoas que lá chegavam além da moléstia que os derrotavam paulatinamente havia ainda a derrocada moral. Eles chegavam, em grande parte, com o moral tão em baixa que muitas vezes a morte antecipava sua chegada. A AIDS e a Tuberculose eram as piores na medida em que os pacientes na maioria das vezes eram os principais culpados pela sua estada ali e não há nada mais punitivo do que a culpa. Os gays e prostitutas compunham a maioria dos doentes de AIDS e outras DSTs. Quando a gente se aproximava deles sentia em seus semblantes quase um pedido de desculpas: “desculpa, eu não sabia o que estava fazendo, não me preveni como devia, foi a queda moral que me levou ao álcool, às drogas e ao completo descuido”. Entretanto quando a gente tentava um diálogo para confortá-los, o que ouvíamos eram palavras de insulto. No fundo se eles não davam fim a própria existência era por falta de coragem e não de vontade. Daí o nosso trabalho vinha em dobro, pois além de lutarmos pela cura daqueles indivíduos, tínhamos que resgatar a auto-estima deles, tirá-los do fundo do poço no qual haviam caído e sozinhos não tinham como sair. Nesse momento eu me lembrava de Wellington e de suas palavras sobre culpa. E as compreendia à medida que via certa resignação naqueles que não tinham culpa pela sua condição, o que não ocorria com os outros. Compreendia minha missão entre os vivos. E dia e noite estava ao lado deles, trocando fraudas, aplicando soros, medindo temperatura e conversando, contando minhas experiências de vidas passadas. Levava livros para eles, quando não podiam ler, eu mesmo o fazia em voz alta para que todos pudessem compartilhar os enredos, que deveriam ter conhecido na infância, mas que não puderam porque em muitos casos esse período foi-lhes roubado ou adulterado em proveito de outrem. Aliel passou também a freqüentar uma vez por semana o hospital, e eu ficava feliz por vê-la, pois era bom tê-la junto a mim.
Certa vez o diretor do hospital me chamou a sala dele e por muito tempo me falou da energia que os jovens têm da disposição que lhe é peculiar, e do idealismo que rege suas ações. Depois falou que com o tempo esse dinamismo se vai e trabalha-se com menos fervor. Tudo isso para me falar a respeito do risco que eu estaria correndo me envolvendo tanto com os pacientes. Eu me lembrei de um professor da faculdade que já deveria estar aposentado, entretanto o trabalhava com o mesmo interesse de quando iniciara no magistério, e refleti que é sempre assim: aqueles que não trabalham com amor, não importa em que área, sempre justificam a falta de compromisso, a ausência de denodo para enfrentar os desafios da profissão utilizando o argumentos da idade e da experiência. Pobres mortais não sabem que escolheram a área de atuação errada, seja médico, professor, padre e que estão ocupando o lugar de alguém que, com certeza, realizariam melhor a atividade.
Era sábado à noite e eu estava de plantão quando fui chamado para realizar os procedimentos iniciais de uma paciente recém chegada Como era praxe minha, não observei o nome que estava no formulário. Preferia perguntar ao enfermo para poder iniciar um diálogo enquanto fazia os procedimentos iniciais. Ao chegar à porta vislumbrei exânime sobre o leito, com a respiração por um fio, o corpo de Ângela. Sim, aquela que fora responsável pela minha estada ali, que quase me levara à cidade proibida, estava agora no meu lugar. Foi então que olhei o formulário e constatei o diagnóstico: Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; situação da moléstia: estado avançado. Mais do que depressa, realizamos todos os procedimentos necessários e quando o titular me pediu que cuidasse de outros pacientes, que Ângela ficaria sob seus cuidados, quase me desesperei. Felizmente ele compreendeu, bom homem, sem que eu falasse, que aquele caso era particular e me deixou cuidar dela. À noite toda não preguei olho e nem o tirei dela, depois de administrado o medicamento que fazia milagre entre os aidéticos. Consultava a todo instante sua temperatura, enxugava-lhe o suor do rosto e ouvi pela madrugada seus delírios. Eram sons monocórdios, misturados a risos e intercalados por ofegos. Já era dia quando fui convencido pela enfermeira a me retirar para casa. Ângela estava fora de perigo, pelo menos por enquanto.
À tarde, depois de assentadas cinco horas de sono, banho, barba feita e boa alimentação, retornei ao palco de desespero para me defrontar com Ângela. Quando cheguei ao quarto, fiquei sabendo que a minha paciente já estava conversando e sentando. Já havia almoçado normalmente junto com os outros. Fui então ter com ela. Encontrei-a sentada de costas para a porta, aproximei-me dela e falei:
─ Oi, está se sentindo melhor?
Ela quase saltou da cama ao reconhecer minha voz, mas logo recuperou o ar habitual e, como se nada de anormal estivesse acontecendo, falou:
─ Oi, que bom te ver!
Eu já esperava por aquela frase, ri por dentro e continuei:
─ Que bom que você está aqui – mas percebi a gafe e consertei – que bom que posso cuidar de você, apesar de preferir não fazê-lo.
Ela também riu por dentro, ao perceber que quanto mais eu tentasse corrigir, mais eu me complicaria. Deu-me a mão que eu solenemente beijei. Alguns pacientes me olharam, eles não entendiam como eu tinha coragem de colocar meus lábios naquela pele enfeitada pelos sarcomas de kaposi, pois eles tinham aprendido com a própria experiência e indiferença com que são tratados, que aidéticos são a escória, ainda existe o preconceito de que a AIDS é doença de veado, de prostituta, de macaco. Ângela, então, pediu para que eu sentasse ao seu lado para me contar sua história, a qual eu já sabia ser mentira. “Ela jamais me contará a verdade, quem sabe um dia aprenda a ser franca e resolva falar sobre o que acontece e não o que ela quer ou acha que acontece.” – pensei. Entretanto ao mover os lábios para me fazer seu relato, baixou a cabeça e me falou de seus desatinos, suas incoerências. Contou-me de sua alma inquieta e de seu vazio interior, o qual quanto mais tentava preencher, mais oco lhe parecia. Falou-me do que houve em seu passado recente, de suas orgias desenfreadas, da troca de parceiros como se fosse uma muda de roupa. Quando alguém falava para que ela se prevenisse de doenças como a AIDS ela ria, “pois não cria que isso pudesse acontecer comigo”. Em determinado momento de sua narração, ergueu os olhos para mim, e eles estavam cheios de lágrimas. Falou-me a verdade sobre o nosso relacionamento e me pediu desculpas por me ter feito passar por tudo pelo qual eu passei. Em seguida, abraçou-se a mim e soluçou. Eu lhe prometi que ela não iria morrer, que eu faria tudo para que logo ela estivesse boa.
Nos dias que se seguiram, chegou um grande lote de um novo medicamento que substituiria o AZT e assim alegrar aqueles que conviviam com a síndrome, se antes com o AZT eles tinham pouca sobrevida, agora eles poderiam comemorar o retorno a uma vida normal. Era o coquetel anti-retrovirais que reduz até 99 por centos dos vírus no organismo e deixa a doença sob controle, apesar de não eliminá-la, pois o 1 por cento que fica, se não observado e domesticado, pode destruir o paciente. Durante o período em que Ângela esteve no hospital, eu ia visitá-la com freqüência e ia percebendo a mudança física, os sarcomas já haviam desaparecido e o peso recuperado. Mas me impressionava mais sua mudança psicológica. Ela cuidava dos pacientes, confortava-os, coisa que ela não faria em outros tempos, dado o seu egoísmo. É incrível o poder de uma adversidade! Quanto orgulho já foi ralo abaixo após um grande sufoco imposto pela vida. Nesse momento eu abandono o hospital e as mudanças ocorridas em Ângela, para narrar um outro caso de transformação.
Era uma sexta-feira e Ernani havia me pedido para acompanhar Aliel à inauguração de uma instituição beneficente, que ocorreria no Centro Espírita Paula e Estevão. Eu fora, é claro, com todo prazer. Tratava-se de uma organização irlandesa que estava fundando sua sede aqui no Ceará. Seu objetivo era trabalhar junto às escolas públicas de periferia, para fomentar a consciência política e criar pessoas politicamente alfabetizadas para inibir a compra de votos e ações análogas, por parte de políticos inescrupulosos. Ao sair por volta de dez da noite, um fato me chamou a atenção: um carro estava parado numa esquina e um homem servia sopa em diversos pratos descartáveis a uma porção de gente faminta. Eram jovens, crianças, velhos e envelhecidos. O fato em si não me era totalmente estranho, pois existem muitos registros de pessoas que praticam essa atividade de compaixão ao próximo necessitado. O que me despertou o interesse pela cena era seu protagonista: Pedro César. Era exatamente ele, o homem que, rico, menoscabara os amigos e até familiares; pobre, fora desprezado por todos e se arrependera. Peguei Aliel pelo braço e me aproximei do grupo. O homem, reconhecendo-me, falou em tom jocoso:
─ Vai dois pratos de sopa aí, meu?
─ Por que não? Se é dado com amor!
Ele riu e me estendeu, sob os olhares ciumentos dos famintos, dois pratos, um para mim outro para Aliel, que lutava por entender o que estava acontecendo. Depois de todos os “clientes” com os pratos nas mãos se afastarem para saborear a refeição, a qual para muitos era a única do dia, ele me apertou a mão e disse:
─ Pois é parceiro, a vida me deu uma nova chance.
E em poucas palavras me contou sobre os últimos acontecimentos de sua vida. Falou-me do emprego que havia conseguido, sua rápida ascensão, as economias que fizera, as privações pelas quais passara e a aposta ao montar uma pequena lanchonete, que logo se transformara numa rede de restaurantes. Agora estava bem, não apenas porque recuperara seu padrão financeiro de antes, mas porque recupera o carinho e a amizade daqueles que desdenhara. Contou-me com ar compungido que não tivera, ao visitar a terra natal, pudor de ir ter com os eis amigos, apertar-lhes a mão e lhes pedir desculpas. Falou-me também, sem grande alarde, sobre o que estava fazendo ali e de como isso o alegrava. Contou-me ainda que casara e tivera um filho agora com um ano de idade, a quem ensinaria todas as lições que aprendera a custo. Eu fiquei muito feliz e saí satisfeito em saber que a humanidade tem jeito. Naquela noite dormi tranqüilo e imaginando um mundo melhor em que todos tenham direito a ser feliz, um mundo em que as pessoas, numa imensa corrente, não permitam que ninguém passe privações tão básicas quanto o direito à alimentação.

NA ESCURIDÃO MISERÁVEL

FERNANDO SABINO  “Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o m...