quinta-feira, 6 de agosto de 2009

SONETO PARA LARISSA

ROMANCE POR FRANCISCO ALVES DE ANDRADE
EPÍGRAFES RETIRADAS DO LIVRO:
VINÍCIUS DE MORAIS, POESIA COMPLETA E PROSA – RIO DE JANEIRO, EDITORA NOVA AGUILAR, S/A, 1986
CAPÍTULO I

“Que destino é o meu senão o de assistir ao meu
[destino
Rio que sou em busca do mar que me apavora?”
(A Vida Vivida)

Estava um dia por demais quente. O vento que soprava pelas frestas da janela era morno. E o ventilador, com seu barulho repetitivo, só aumentava a sensação de calor, sempre que mudava o foco da ventilação. Larissa, deitada na cama, de bruços, as pernas para cima, balançando os pés numa brincadeira surda, era a própria imagem do tédio. Os olhos zanzavam pela revista onde havia algumas fotos da Avril Lavigne, sua cantora predileta.
Ela fechou a revista. Procurou algo em volta para fazer, mas não havia nada. Desde que o computador fora para o conserto estava difícil abrir a janela para o mundo, vislumbrar uma luz no infinito do túnel. E nem mesmo esse objeto de comunicação moderno e tão indispensável, aos jovens, nos dias de hoje, lhe trazia alento. Era enorme a ausência interior. Lembraram-lhe uns versos de Djavan: “Nem que eu bebesse o mar, encheria o que eu tenho de fundo”. Não era apreciadora do cantor alagoano, mas ouvira a música que os continha, certa vez, possivelmente na casa do tio Jonas, e eles ficaram gravados em sua memória. E o pior era que o músico traduzia neles o que ela sentia. Precisava urgente descobrir o mistério de sua existência. Na cabeceira da cama ela vislumbrou pela trilhonésima vez o porta-retrato, que em vez de uma foto trazia um poema, presente do tio Jonas, quando ela fizera 10 anos. Sempre que se sentia assim, entediada, ela o lia. Foi isso que ela fez em voz alta, como para entender o que ele trazia naquele emaranhado de metáforas:


SONETO PARA LARISSA
(NO DIA DE SEU ANIVERSÁRIO)

O fogo de Leão, reino do sol,
Longe da água, mando canceriano,
Trouxe-te, Oxalá nunca leviano,
Te leve daqui, lar de rouxinol.

Pois vieste disposta a ser princesa
De um reino daqui, de nina a mulher,
Pronta a amar, augusto, a quem aprouver,
Ó impudente luz de dourada beleza.

Larissa, tu és assim: mar de pureza,
Vasta floresta tão desconhecida,
Depurada rosa de casto espinho.

Terás, tu, sempre essa eternal leveza
Posto sejas fixa imagem surgida
Em virgem terra, ares de passarinho.
Julho de 2000

Aos dez anos, aquele texto não lhe despertara nenhum interesse. Nem a ela nem a ninguém. Também aos dez anos sua vida era tranquila, não sentia as angústias que a assolavam agora. Morava numa pequena cidade do interior, estudava numa escola menor ainda e seus dias era brincar com as vizinhas de sua idade. Sentia ímpetos de beijar as pessoas, de abraçá-las e de cantar. Quando não estava com as colegas, ou na escola, estava montada na bicicleta rua acima rua abaixo, até cansar. Em julho, mês da padroeira, a cidade ficava abarrotada de gente que vinha de todos os pontos do país. Na casa dos avós maternos (era sua referência, pois os avós paternos, apesar de vivos, não tinham quase nenhum contato com ela) chegavam tios, tias, tias-avós. Nas bagagens vinham sempre presentes para ela, e isso a deixava em profunda expectativa sobre o que iria ganhar, pois aquele era também o mês do seu aniversário. Eram sem dúvida os melhores momentos de sua vida. Foi no aniversário de dez anos, que o tio Jonas lhe entregou um pacote. Ela o abriu como o fizera com os outros para ficar pasma com o que havia nele: um porta-retrato com uma folha cor de rosa e uma flor encimada à direita. No centro o referido soneto. Ele mesmo se encarregou de lê-lo. Todos aplaudiram, mesmo sem saber o que estava implícito naquele labirinto. Ele próprio tratou de desfazer a confusão que se fizera na cabeça da menina:
─ Não se preocupe, Larissa, com o tempo você vai compreender o que esses versos querem dizer. Falou profético.
A menina, ainda com dez anos, tentou várias vezes decifrá-lo, mas era desencorajada pela mãe: “Isso é loucura do teu tio, menina, deixa pra lá”. Sabia que havia algo a ver com o seu signo, Leão. O tio Jonas adorava astrologia, tanto que antes de morrer, num acidente aéreo, escrevera um livro intitulado “Os Segredos da Astrologia”.
Depois, sua família mudou-se para a capital. Ela acabara de fazer onze anos e não sabe se devido à idade ou à mudança de ares começara a ocorrer alterações violentas em seu comportamento. Num espaço de seis meses, mudaram três vezes de endereço por questões financeiras, sendo assim ela não conseguia montar um grupo de amigas. Até que finalmente seus pais conseguiram comprar um apartamento e fixaram residência. Nesse novo endereço ela começou a estabilizar suas ideias, começou a definir, a partir da escola, a sua faixa etária. Tinha finalmente onze anos completos.
Matriculada numa grande escola, conheceu Tiago, um garoto que, diferente dos outros, não passava o tempo todo falando em futebol. Estava sempre lendo algo, principalmente notícias interessantes, dessas que se publicam aos montes nessas revistas de curiosidade, tipo Superinteressante, Galileu etc. Lia todos os livros paradidáticos e fazia os trabalhos daquelas que se colocavam em seu redor. Percebe-se logo o motivo pelo qual todas as meninas da sua idade arrastavam asas para ele. O estereótipo de menino que Larissa conhecia incluía, além de futebol, muitos palavrões, piadas preconceituosas ensinadas pelos pais, além de certo ar de dominação. Tiago, com seus cabelos lisos, rosto angular e olhos vivos, transitava de um grupo ao outro da sala e da escola com uma facilidade incrível, não pertencia a nenhuma igrejinha e não optava por gênero para estabelecer uma conversa, o que surpreendia até os professores. Larissa empolgou-se com o menino, mas como não tinha coragem de revelar seus sentimentos, constituiu um diário para o qual todos os dias contava o que o menino havia feito e seus anseios para com ele:

“Hoje, amigo diário, Tiago estava lendo uma matéria sobre o futuro da água no mundo. Pela primeira vez de verdade ele me deu atenção. É bem verdade que eu fingi interesse no assunto, e ele me falou um monte de coisa, tipo que daqui a 50 anos não vai mais haver água, sei lá. Ele estava preocupado com isso. Eu estava era preocupada em ver seus olhos, de um brilho intenso, parecia querer encontrar solução pra tudo. Enquanto ele falava, eu imaginava um monte de bobagem, tipo abraçar ele, perguntar se ele queria namorar comigo, mas apareceu a enxerida da Raquel, se meteu na conversa e roubou a cena. Mas amanhã, eu prometo, querido diário, eu vou falar com ele de novo. Agora eu tenho que estudar para a prova de Português. Bom era até o ano passado quando eu só tinha duas professoras e elas não sabiam muita coisa. Boa noite.”

E assim os dias se passavam até que a ousada Raquel arrebatou o menino, e Larissa chorou em silêncio para o seu diário. Aninha, sua colega mais aproximada e que ostentava ares de entender de garotos foi quem lhe aconselhou:
─ Deixa pra lá, Larissa, cê deu muita bobeira, da próxima, cai matando.
A menina, devido à sua formação, não entendeu bem o que as palavras da colega diziam, mas sabia que era qualquer coisa como ser mais ousada da próxima vez. Um outro entrave que a inibia era o hábito de falar como se fosse adulta, enquanto as colegas falavam uma linguagem para ela às vezes inacessível, e isso a distanciava dos grupos, restavam-lhe, pois, algumas palavras aqui e ali com Raquel e Aninha. Aos poucos ela foi-se retraindo, tornando-se tímida.

Em casa nada lhe agradava, nem podia. Os pais sempre brigando, a mãe triste, com os olhos vermelhos. Apesar de nova, D. Fernanda já parecia uma velha. As tias, de bem mais idade, pareciam muito mais novas. Estava sempre reclamando do marido. Este sempre ausente. Era sempre assim, de súbito o pai desaparecia, passava um tempo fora, quando tornava a casa, chegava embriagado e passava semanas dentro de uma rede, fingindo ler alguma coisa. Aos poucos ele abandonava aquele marasmo e inventava uma nova ideia, (parece que havia um baú cheio delas) em que a mãe de novo acreditava poder dar certo e investia suas poucas economias. A história, então, se repetia e os olhos vermelhos andavam sonâmbulos pela casa, em silêncio.
Fernanda era a provedora da casa. Na cidadezinha onde moravam já era ela quem mantinha a família, enquanto o pai inventava toda sorte de empresas com o intuito de enricar. Tudo dava em nada. Até que ele teve a engenhosa ideia de vir para a capital. “Ah! Lá sim, vai dar certo. Essa cidade é o cu do mundo, aqui ninguém vai fazer nada.” Dizia ele, dia após dia, como acontecia quando plantava uma ideia na cabeça. Até que um dia Fernanda resolveu atender aos apelos do marido. Vendeu a casa e vieram para Fortaleza. Aqui tiveram de morar de aluguel e penar, mas voltar para o interior era algo que assombrava o marido e a ela também, o orgulho não lhe permitia a ela dar o braço a torcer, sua família sempre fora contra a união, por isso retroceder jamais. O tempo, no entanto, foi engenheiro, e Deus nos dá o frio conforme o cobertor. A vida da família teve uma reviravolta. Uma pequena herança deixada para D. Fernanda, por uma tia que morava distante, resolveu parte dos problemas. Agora moravam em um apartamento modesto, mas próprio, em um condomínio que mais parecia uma cidade, com quase quatrocentos apartamentos. Era o sonho da casa própria realizado. Possuíam ainda um carro na garagem, e Fernanda tinha um emprego. Larissa ganhara um quarto e um computador. Mas todas aquelas agruras e umas poucas decepções com os meninos possivelmente foram os responsáveis pelo seu semblante um pouco triste, melancólico. D. Fernanda trabalhava em casa fazendo salgados. Não parava um só minuto, de segunda a segunda. Tinha uma funcionária, Gorete, uma negra nariguda que, nas horas de folga, dava em cima de todos os rapazes, e a quem pagava um salário mínimo, mas não permitia que a filha penetrasse na cozinha, bastante ampla, fruto da união da cozinha original com o terceiro quarto que havia; de um lado, a “oficina”, como gostava de chamar o lugar reservado só para a feitura dos salgados; do outro, a cozinha, onde cuidava das refeições da família. Larissa se entristecia com o sufoco da mãe, socada naquela cozinha ou dentro do carro fazendo as entregas. O pai, mesmo tendo habilitação D, nunca pegou no volante para entregar um salgado.
Foi nesse contexto familiar, de conflitos difíceis de compreender e mais difícil ainda de separar, que Larissa chegou à primeira idade difícil de uma pessoa, a idade em que o indivíduo começa a se tornar responsável por alguma coisa, embora não saiba ainda o que é: doze anos.




CAPÍTULO II

“Rosa geral de sonho e plenitude
Transforma em novas rosas de beleza
Em novas rosas de carnal virtude.”
(Soneto da rosa)


Ela estava no banho, quando, pela primeira vez, sentiu uma formigação nos seios e os percebeu altos, intumescidos. Essa mudança dolorosa nos mamilos veio, com o tempo, acompanhada por pêlos pubianos. A princípio eram apenas penugens, que com o tempo foram escurecendo e formando um tufo. D. Fernanda, muito atarefada, não deu por essa transformação. Foi com Aninha que ela comentou pela primeira vez. As duas estavam no banheiro depois da aula de Educação Física e Larissa percebeu que os seios da colega já estavam crescidos. E, como fazemos sempre que temos uma novidade e precisamos dividir com o mundo, comentou:
─ Nossa como os seus seios estão grandes, os meus também começaram agora!
Aninha com seu eterno ar de sabichona de tudo exibiu mais ainda os seios para Larissa e tocou os da menina, que sentiu um arrepio pelo corpo e um constrangimento na alma, vestiu-se rápido e foi para casa. Chegando lá, não foi com menos constrangimento que mostrou o corpo para a mãe. Fernanda tomou um susto. “Como aquilo passara despercebido?” Indagou-se em silêncio. Em seguida, as duas tiveram uma longa conversa e D. Fernanda esclareceu-lhe as mudanças pelas quais estava passando.
À noite, Larissa foi tomada por forte indisposição e recolheu-se cedo para a cama. Nem olhou para o computador, que chegara do conserto há duas semanas, apesar de haver uma pesquisa para ser feita. Os livros muito menos receberam sua atenção. O celular tocou, mas ela não atendeu, ignorou a chamada e desligou o parelho. O sono veio logo, com ele um sonho. Nele ela anda numa estrada de terra ladeada por cercas de arame. É apenas uma menininha, de longos cabelos feito tranças. Aos poucos ela começa a correr e penetra num lindo jardim. Nele há flores de todas as cores, menos de coloração vermelha. As flores são de diversos tipos: tulipas amarelas, brancas; orquídeas lilases; rosas brancas; flores-de-maio. O chão está todo forrado de pétalas brancas e sépalas verdes. O flóreo aroma emana e empesta o ar. Todas as flores agora são amarelas, o sol parece aproximar-se da terra de tal forma que dá para ver o seu halo. Nesse instante um enorme leão de juba escarlate penetra no jardim e caminha na direção de Larissa. Ela não tem medo, pelo contrário, aproxima-se do animal, com grande intimidade, alisa-lhe o pelo, abraça-o e os dois se fundem numa só criatura: corpo de mulher e cabeça de leão. Começa subitamente uma chuva de pétalas vermelhas e ela sente que não é mais uma menininha, vê-se como agora, com todas as mudanças, impostas pela natureza. As pétalas encarnadas formam um tapete no qual ela deita para, em seguida, sentir de si transbordar uma avalancha de pétalas rubras semelhantes às outras caídas do céu. Vê-se aos poucos ser coberta por um rio vermelho, um rio de sangue. Paulatinamente o sol vai-se eclipsando, e tudo fica escuro.
A menina acordou assustada com a molhadeira que havia na cama. Chamou pela mãe, que veio correndo. Havia sangue por toda a cama, o lençol estava empapado do mênstruo transformador. A mãe, depois de trocar a roupa de cama, abraçou a filha e lhe disse:
─ Agora, filha, você é uma mulher. Está pronta fisicamente para suportar o peso que a sociedade impõe a nós. Todos os meses essa sangria se repetirá, como se fosse a lavagem dos pecados de Eva, culpada pela expulsão do paraíso.
Larissa conhecia bem o espírito conformado da mãe. Sabia que em parte ela tinha razão, e enquanto ela falava, iluminados pela lâmpada do abajur, ela lia os dois primeiros versos da segunda estrofe do soneto presenteado pelo tio:

“Pois vieste disposta a ser princesa
De um reino daqui, de nina à mulher,”

Ela agora os compreendia. Havia transposto a fronteira que divide a existência feminina. “Eu agora sou uma princesa, do reino da realidade, deverei esquecer os contos de fadas que ouvira quando menina e encarar o destino que me aguarda como mulher. Talvez mamãe tenha razão sobre o sofrimento destinado a nós, mas estou disposta a reinar como me indica o signo de Leão. Uma mulher preparada para o sofrimento, mas resolvida a amar e buscar a felicidade.” Concluiu.
CAPITULO III


“Virgem! filha minha
De onde vens assim
Tão suja de terra
Cheirando a jasmim”
(A Anunciação)


Por essa época nossa amiga já fizera algumas amizades dentro do condomínio onde morava e aos poucos ia-se entrosando de forma mais efetiva, até que finalmente foi convidada a fazer parte de um grupo constituído. O grupo era bem organizado, tinha líder, caixa para a realização de sessões de vídeo ou para passeios ao Shopping. Todos os sábados havia reunião na casa de um dos membros do grupo, formado só por meninas. Numa das reuniões, Viviane, a líder, apresentou as novas diretrizes do grupo: Tatu. A partir daquele momento o grupo iria se tornar um fã-clube do Tatu.
─ Mas o que é Tatu? Perguntou Larissa, com medo de haver cometido uma gafe.
─ É uma dupla formada por duas garotas. Elas são russas e cantam rock.
Dizendo, isso Viviane, um pouco mais velha que as demais, branca de olhos azuis, cabelos loiros, com seu eterno hábito de puxar o xorte para baixo, exibiu um CD da dupla. Àquela tarde, elas ouviram as músicas das cantoras russas. Apesar de não entenderem as letras acharam-nas bastante agradáveis.
À noite costumavam descer e ficar de bate papo numa área a qual se dizia “a frente do prédio”. Havia a quadra defronte de uma sequência de lojas onde funcionavam mercadinhos, lanchonetes, um bar e até um ciber café, com alguns poucos computadores e algumas máquinas de games. Ao lado da quadra havia um espaço com bancos e árvores. Ali se reunia um monte de gente, organizada em grupos de meninos, meninas, mulheres desocupadas, jogadores. Vez por outra o barulho das conversas se confundia com o grito de algum bêbado ou com o arrastado de pneu na avenida que passava na frente do prédio.
Fernanda não gostava que a filha ficasse ali, perto daquela promiscuidade de seres e de ideias. Temia pelo futuro da filha. No entanto reconhecia que próximo a completar treze anos, ela já não era mais uma criança e precisava se socializar, por isso indignava consigo mesma por não permitir à filha uma melhor localização social. Com o tempo foi-se acostumando com o fato de a filha chegar a casa sempre às dez. A princípio reclamava, ao que a filha respondia:
─ O que tem mãe, eu tava só ali com as minhas amigas, conversando abobrinha.
E Fernanda passou a não ver nada. Afinal de contas a menina estava na idade de começar a namorar, pensava e se conformava. Pelo menos algumas vezes em que o pai chegava bêbado o fato não era presenciado pela filha.
Com efeito, Larissa estava interessada num garoto. Chamava-se Ígor, era bonito e discreto; enquanto os colegas falavam alto e se empurravam, ele se limitava a mostrar levemente os dentes. Estudava na mesma escola que Larissa, mas em salas e séries diferentes. Tinha 15 anos e uma idéia fixa: entrar para as Forças Armadas. Na verdade esse era o sonho do pai o qual ele resolvera realizar. Amava-o e o que menos queria no mundo era decepcioná-lo. Larissa achava-o atraente, inteligente. Dos meninos do condomínio, mesmo da escola e até onde seus olhos podiam alcançar, ele seria o único a quem ela entregaria pela primeira vez seus lábios num beijo terno e quente. Sim, a menina ainda tinha os lábios virgens. É que diferente das outras garotas ela achava um sacrilégio beijar alguém na boca só por beijar. A última vez que se sentira assim, com vontade de beijar alguém, foi quando paquerava Tiago. As outras trocavam selinhos a toda hora só para parecerem “descoladas”. Além de tudo Larissa era tímida e sua timidez se aguçava a cada dia. Mesmo na roda com as amigas ela se postava a meio passo do grupo, a cabeça ficava sempre dando voltas e mais voltas e muitas vezes não conseguia se concentrar sequer na conversa que rolava. Agora seus olhos se detinham sobre o novo sonho de amor.



CAPÍTULO IV

“Viu-se assim por um lapso em sua beleza
morena, real, mas já se distanciando na penumbra
ambiente...”
(Separação)




Era quarta-feira, quando Larissa chegou para encontrar as amigas. O grupo estava meio calado. Ao procurar saber o que estava acontecendo, soube que Jaqueline havia fugido com o namorado. Jaqueline era uma negra bonita, rosto redondo, leonina, daí o eterno sorriso nos lábios adentrados por dois pares de dente brancos como o marfim. “Ainda existe isso, fugir como namorado! É o novo!”, exclamou quase entre dentes, mas foi ouvida pelas outras, que riram.
Realmente fugir com o namorado é uma atitude quase medieval, mas que ainda ocorre com frequência. Algumas garotas para pressionar os pais a aceitarem um namoro recorrem a esse expediente. Elas partem com a cabeça cheia de sonhos de que finalmente vão encontrar um rumo para a sua vida, pois é a falta de perspectiva de futuro financeiro ou espiritual ou simplesmente busca de aventura que as fazem cometer esses atos desesperados.
Apesar de parecer primeva, a ocorrência desses fatos é algo bastante hodierno, principalmente com o advento da internet e seus variados recursos para se fazerem relacionamentos. Recentemente, não muito longe dali, numa casa de família abastada financeiramente, mas carente de afeto e de diálogo, Virgínia, 17 anos, fugiu com o namorado chileno, que conhecera numa sala de bate-papo, deixando a filha, fruto de uma anterior desastrada relação com um homem casado, aos cuidados da mãe. Só retornou dois meses depois, novamente grávida e sem namorado. É isso o que acontece, devido à imaturidade e a busca de uma identidade, acabam vítimas de seu vácuo interior. O namorado, por não ter responsabilidade nem vontade de crescer e se tornar homem de verdade, muitas vezes foge, deixando-as na conhecida Rua da Amargura, quase esquina com a Rua da Perdição. Outros, mais perversos, as surram para as obrigarem a voltar à casa dos pais. E assim se não tomam cuidado, as mulheres, sobremaneira as meninas, vão sendo enredadas numa rede de promessas e mentiras, e só mais tarde, quando estão velhas aos vinte anos, é que se voltam para o passado irreversível.
No caso de Jaqueline isso é mais explicável, pois, chegada do interior e agregada à casa de uma tia, via-se com uma profunda necessidade de criar sua própria estrutura familiar e financeira. Com ela a história se deu assim. O namorado levou-a para a casa de uma tia, num bairro mais à periferia. A tia, muito solícita, recebeu-os com mimos e abraços de “bem vinda, queridinha”. Aos poucos, posto que a casa em que fora alojada fosse humílima, devido ao tratamento recebido, a menina foi-se sentindo uma princesa. Tinha levado consigo todas as suas economias que a mãe havia-lhe dado, “para não incomodar sua tia, com despesas extras”. O namorado, um boizinho que trabalhava num sítio vizinho ao condomínio, palco dessa crônica, falava até em casamento. Foi em resposta a essa proposta que ela entregou sua virgindade e seus dois mil reais. Quando por fim seu parco numerário se esgotou, a pobrezinha passou a viver um verdadeiro inferno de Dante. A tia do energúmeno esqueceu as palavras doces e os afagos, passando a tratar Jaqueline como se fosse uma estranha, o que realmente era, e a reprovar os carinhos trocados com o namorado pelos cantos da casa, eram ciúmes do sobrinho. O meliante gastou os últimos centavos em farras com alguns amigos. Desesperada, coitada, voltou para a casa da tia, que passou a olhá-la com desdém, como se se tratasse de algo repelente. As desconfianças logo foram comprovadas: a desgraçada estava grávida. Ao saber disso, a tia deportou-a para a casa dos pais, no interior. E assim acabou o sonho urbano de Jaqueline. As colegas nunca mais a viram, até porque ao retornar a moça estava profundamente amargurada a ponto de não mais sair de casa.
Foi com Cristina, outra moradora do condomínio, que se deu um caso mais grave do que o havido com Jaqueline. Ela tinha apenas doze anos, quando engravidou de seu namorado, oito anos mais velho. Sem que ela se desse conta, de forma arbitrária, ele a levou a uma farmácia, onde um enfermeiro inescrupuloso, amigo do cretino, aplicou-lhe uma injeção terrivelmente dolorosa, para que abortasse. Depois daquele dia, seu interior nunca mais foi o mesmo. Sentia náuseas, dores e melancolia, frequentemente. Outrossim, não vira mais o namorado, ele desaparecera, virara gás. Ela envergonhada nada contou para a mãe, sempre distante da filha. Sentia um vazio enorme e uma voz interior lhe dizia que algo muito precioso havia sido roubado de si. Na escola, conheceu Guida, que tinha a mesma idade que ela e uma história parecida. Guida falava do barato que era a casa de dona Marta. Numa sexta-feira, as duas mais uma outra colega gazetearam aula e foram à casa da referida senhora. O local ficava em uma favela. Era uma casa grande e de muros altos, havia até uma piscina, onde homens e mulheres banhavam-se nus numa orgia de causar arrepios a Baco. Logo, vendo Cristina um pouco arredia, a referida matrona, balançando suas pelangas de quem já fora gorda e fizera uma cirurgia, aproximou-se dela e serviu-lhe um copo de cerveja, depois outro. Em breve sua apatia desapareceu e ela zanzou de braço em braço, de boca em boca, embriagou-se, dormiu sem saber o que lhe estava lhe acontecendo. Chegou a casa pela primeira vez, às onze da noite, esperava que sua mãe, com quem morava sozinha, lhe fizesse a maior censura, mas ela estava trancada no quarto e não quis saber de abrir a porta quando percebeu a chegada da filha. No dia seguinte e nos finais de semana que vieram, a história se repetiu, só que agora ela tinha que pagar pela própria bebida e para isso tinha de vender o corpo, que apesar de tenro era muito disputado. Depois resolveu aceitar um pó branco que as colegas cheiravam para se sentirem bem. Quando a mãe percebeu o descaminho da filha, já era tarde. Ela foi até a delegacia, prestou queixa contra Dona Marta, mas a polícia nada pôde fazer. Cristina saiu de casa e foi morar com a cafetina. Quando a CPI da prostituição infantil passou por lá, nada pôde ser confirmado e a boa Dona Marta continua aliciando meninas para seu alcouce. Hoje Cristina pode ser vista na Ponte dos Ingleses (Ponte Metálica) com outras mulheres de dezesseis anos, todas rotas, desonradas, esfarrapadas. Para viver, transam por uma ninharia com homens que se encontram em semelhante situação, ou roubam na madrugada, enquanto o vento sopra do sertão para o mar, levando aos peixes brutos notícias do mundo civilizado.
CAPÍTULO V

“Ao acordar, naquele dia preliminar da primavera,
senti imediatamente que alguma coisa tinha acontecido de muito
fundamental na ordem do mundo.”
(Sentido de Primavera)
No dia de seu aniversário de treze anos Larissa ganhou um presente não muito condizente com a data. Um não, dois. O pai, logo cedo, alegando falta de liberdade e espaço, botou a roupa numa mochila, pegou a chave do carro e disse:
─ eu sei que vocês não me querem mais aqui, já conseguem viver sem mim, pois eu vou embora.
E saiu sem ligar para os apelos de D. Fernanda, que instava com ele para a necessidade de ele deixar o carro. E o pior era que o veículo estava em seu nome e ele certamente iria vendê-lo, pois segundo afirmara era sua parte nos negócios bem sucedidos.
Larissa não sabia o que sentir, estava atônita com aquela situação. Sabia, era bem verdade, que aquilo mais cedo ou mais tarde iria acontecer. Até por que já acontecera outras vezes. Daquela vez, é certo, era diferente, parecia ser definitivo. Enquanto a mãe sufocava as lágrimas, numa atitude quase apopléctica, nossa amiga ensimesmava-se, numa angústia inexplicável, principalmente porque não entendia o que levava as mulheres a manterem uma relação sem sentido, como aquela, por tanto tempo. Eram recorrentes essas histórias de homens que não trabalham, vivem a explorar a força feminina e ainda se sentem traídos pela inadimplência da sorte. De repente resolvem abandonar o lar e ainda buscam uma indenização, por possíveis serviços prestados. Mas o pior de tudo é que não admitem, por exemplo, que as mulheres organizem suas vidas sentimentais e se tornam verdadeiras máquinas mortíferas. O caráter do pai era por demais covarde para atitudes extremas, mas ela pensava em outras coitadas que existem nestes oito milhões de quilômetros quadrados, era assim que a professora de geografia referia-se ao Brasil, e ela gostara do epíteto. A mãe bem poderia ser uma mulher feliz, pensava ela, se se tivesse livrado do marido há tempo, logo quando percebera a asneira que tinha feito. Mas como se até agora ela ainda chorava sobre um leite estragado! Como se poder dizer para a sociedade “eu ainda sou casada, muito mal casada, mas o sou” fosse a coisa mais importante do mundo, mais importante do que a própria felicidade e a da filha.
Foi com certeza o pior dia de aniversário de que a menina tinha lembrança. Os tios chegaram para o almoço e encontraram D. Fernanda com os olhos vermelhos e um sorriso ridículo nos lábios. O clima que deveria ser de festa era de enterro. Algum comentário um pouco hilário sobre a situação logo era motivo de silêncio sepulcral. A hora do bolo foi antecipada para depois do almoço. Com a barriga cheia de feijoada e de cerveja, o bolo não entrava, transformava-se numa pasta que mexia e remexia pelos quatro cantos da boca, teimando em não descer. O término do dia também foi antecipado. Aos poucos e em sucessão tios, primos e algumas colegas foram-se. Larissa aproveitou um convite de Clarinha para ir até sua casa ver um vídeo e eclipsou-se das vistas de D. Fernanda, deixando-a sozinha com sua infelicidade.
No caminho enquanto Clarinha falava pelos cotovelos, Larissa jurava-se que nunca mais iria pagar o mico de uma reunião familiar para comemorar seu aniversário. Apesar de todos aqueles dissabores, achava boa a idéia de o pai ter ido embora. Agora as duas poderiam viver sozinhas, decidir o que iriam fazer nos finais de semana sem se importar com as rezingas dele embriagado e mandão. Quantas vezes as duas não ficaram em casa esperando que ele chegasse, com medo de um escândalo, apesar do modo acovardado como voltava para casa! Quantas vezes ficaram esperando por ele para irem a uma festa para a qual foram convidados, porque ele ligava de instante e instante dizendo que estava chegando, até que se aborreciam e tiravam a roupa. E o pior é que ele já estava na festa, inventando desculpas para a ausência de ambas. Tinha certeza de que em breve a mãe se acostumaria à nova situação e há males que vêm para o bem, e o que ocorrera nem mal era.
Foi perdida nesse emaranhado de idéias que chegaram à casa da amiga. Quão grande não foi sua surpresa quando ouviu forte e afinado o coro de “parabéns pra você”. As amigas do grupo, todas de preto, aguardavam-na com uma mesa enfeitada onde havia enormes pizzas de calabresa além de diversos tipos de chocolates. Aproveitando a ausência dos pais, Clarinha e as amigas haviam decorado a sala com fotos da dupla russa, Tatu, e várias outras roqueiras adotadas pelo grupo, entre elas Avril Lavigne, “a predileta da Lissa”, como dizia Viviane, a anfitriã, a organizadora daquela festa. Depois dos parabéns e das comilanças, todas as meninas se sentaram nos sofás, almofadas e pelo chão para assistirem a um DVD da dupla Tatu, abriu-se a primeira garrafa de vinho, a única bebida adotada pelo grupo. Larissa era outra, estava radiante. A vontade que sentia era agradecer as amigas pela surpresa. Aquele parecia ser, até o momento, o melhor dia de aniversário que já tivera. Só parecia.
A sala estava escura e silenciosa, só se viam vultos. Na tela, a dupla trocava carícias. Foi aí que Larissa sentiu uma mão tocando de leve seu ombro enquanto uma voz lhe sussurrava:
─ Calma, meu bem, sou eu.
Larissa reconheceu a voz da Vivi e ficou estática, enquanto a mão da menina tocava seus seios e a voz quase inaudível dizia:
─ Você está uma bela mulher, e eu te quero muito.
A voz era lúbrica, engrolada. O hálito quente, recendendo a vinho, arrepiava-lhe a pele. Larissa tentou afastar-se, mas algo, que não a outra, a segurava. A língua de Vivi penetrou-lhe fundo no ouvido, e ela sentiu o corpo todo ser sacudido por uma onda de volúpia. Depois os lábios juntaram-se a aos dela com força, pressionando-os, a língua penetrava-lhe a boca em busca da sua. Larissa sentia nojo, repugnância, entretanto não conseguia se desvencilhar, enquanto a mão daquela já lhe acariciava, por dentro da calcinha, seu clitóris, úmido, abrasado. Aos poucos seus olhos foram se fechando e ela foi-se entregando àquela voluptuosidade que invadia seu ser, os espasmos sacudiam aos poucos seu corpo enquanto uma lassidão foi tomando conta de sua alma, sofregamente a língua de Vivi explorava sua desconhecida gruta. À sua mente, vinham-lhe, como um sonho, os versos de Tio Jonas:


Larissa, tu és assim: mar de pureza,
Vasta floresta tão desconhecida,
Depurada rosa de casto espinho





CAPÍTULO VI

“Aquele riso foi o canto célebre
Da primeira estrela, em vão.
Milagre da primavera intacta
No sepulcro de neve
Rosa aberta ao vento, breve
Muito breve...”
(O Riso)

Quando Larissa chegou a casa, já passavam das onze horas e ela estranhou o fato de sua mãe não ter ligado para seu celular nenhuma vez. Já ia apertando a campainha quando percebeu a porta entreaberta. Ao penetrar tomou um susto: o corpo da mãe estava no meio da sala. A menina correu para a mãe e depois de muito sacudi-la, ela abriu os olhos, foi então que a menina percebeu que a sala tresandava álcool, exalado pela mãe. O que mais a espantou era o fato de ela nunca beber. Espalhadas pelo chão havia algumas latas de cerveja vazias, e a tevê estava ligada. Foi com muito esforço que Larissa conseguiu conduzir a mãe para a cama. Tomadas pelo cansaço físico e moral, dormiram juntas, abraçadas.
No dia seguinte, a jovem não foi ao colégio. Sentia-se indisposta, envergonhada. A mãe não insistiu, por pensar que sabia o motivo principal da indisposição da filha. Ela própria não tinha muita coragem de olhar no olho da menina, depois da carraspana do dia anterior. A distribuição dos salgados para as padarias saiu atrasada e cara, pois tivera de pagar um motobói que lhe percebendo o transtorno lhe arrancou os olhos da cara. Tentou diversas vezes contatar com o marido para tentar negociar a devolução do carro, mas foi em vão, ninguém para onde ligou sabia de seu paradeiro. O remédio foi ficar no prejuízo enquanto não comprava outro transporte. Teve finalmente que contratar definitivamente os serviços do motobói, para realizar as entregas. A ausência do corpo do marido lhe doía menos do que as interrogações que se-lhe faziam cada vez que encontrava alguém. Além do mais havia os olhares libidinosos que os homens lhe lançavam, como se ela fosse um quarto de pensão que, uma vez desocupado, estivesse à disposição de qualquer um. Isso lhe doía bem mais do que a lacuna na cama deixada pelo companheiro. Mas nada lhe doeu tanto quanto os ares de “bem que eu te disse, bem que eu te avisei” dos irmãos e dos pais. Era algo contra o qual ela sempre lutara e pelo qual suportara tanta inépcia do ex-marido.
Larissa foi paulatinamente se recuperando do choque daquele nefasto domingo. A princípio se ausentou do grupo, tinha vergonha de si mesma e evitava encontrar as amigas e principalmente Viviane. Como a mulher que traiu pela primeira vez o marido, ela tinha a impressão de que todas as pessoas liam sua falta escrita na testa. Mas o tempo é engenheiro, não há mal que ele não cure, não há constrangimento que não apague nem pudor que não dissipe. Com uma ajuda fortuita tudo se resolve. Estava ela na parada do ônibus, para a escola, quando chegou Clarinha e a cumprimentou:
─ Oi Lissa. Quanto tempo!
─ Oi.
Respondeu Larissa tentando desviar os olhos, mas foi abraçada pela interlocutora, que, mantendo sua fama de falante compulsiva, colocou-lhe a par das poucas novidades. Sua voz era tão espontânea que a outra aos poucos foi-lhe olhando de frente e respondendo com um meio sorriso. Sua cabecinha fazia e respondia uma infinidade de questionamentos, como “o que terá realmente acontecido naquela noite?” “Será que as outras garotas viram o que aconteceu?”, “Será que não lembram?”, “Será que faziam o mesmo?”. As respostas eram-lhe dadas pelas palavras francas da amiga, pelos gestos expansivos com que Clarinha lhe contava coisas. Quando o ônibus chegou Larissa estava novamente à vontade para olhar quem quer que fosse de frente. Antes de entrar no veículo, ainda ouviu Clarinha gritar:
─ Ah! Ígor perguntou ontem por ti.
─ Obrigada. Disse com um brilho novo no olhar.
CAPÍTULO VII

“Com as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia.”
(Poética)


Com efeito, as coisas se reorganizaram na cabeça de nossa amiga, enquanto em casa a vida tomava seu curso natural, agora sem a presença, digamos incômoda, do pai. Na escola, o ano letivo havia iniciado seu segundo semestre e Larissa voltava a estudar com o intuito de voltar a tirar boas notas. Quanto a amizades, continuava sem tê-las às mancheias, se tinha uma aula em branco, ela recorria à biblioteca para folhear um livro ou uma revista, ou ia à sala de computação teclar com alguém.



No condomínio havia uma novidade nada interessante: falta de água. O síndico não havia pago a conta e ainda processara a Companhia por juros indevidos. Aí, enquanto a situação não se resolvia, a imensa população teve de recorrer às antigas cacimbas, há muito fechadas. Essas cacimbas tinham sido construídas ainda durante as fundações das quadras, cada uma, portanto, possuía a sua, para onde acorriam todas as manhãs os moradores. Era um vaivém de pernas e um tilintar de baldes de ferir os ouvidos. À beira dos cacimbões fazia-se um zunzunzum infernal, em que se misturavam vozes que variavam entre falsetes e graves, num abrir de bocas que não cessava, fosse para cumprimentar alguém, ralhar com uma criança presepeira ou para esculhambar a mãe do responsável por aquela desordem compulsória. Mas como em todo contratempo há sempre quem tire proveito, nesse não podia ser diferente. Era lá, entre um lançamento de balde e outro, que mulheres e homens, preocupados com os bem-estar ou mal-esestares dos outros, se punham a falar da vida alheia. Dava-se notícia de tudo, do novo amante da Iolanda, uma biscate que a cada dois anos mudava de companheiro para com ele ter um filho e assim aumentar sua “aposentadoria”, ao carro novo de seu Armando, um indivíduo que andava feito esmoler, mas que trocava de carro mais do que de cueca. Essas interlocuções ao pé da cacimba eram realizadas com tanto empenho que as protagonistas esqueciam as mãos, e o balde acabava por cair dentro da cacimba, ao que logo acorria um dos meninos, sempre de plantão, para se jogar na água em busca do escorregadio objeto, em troca, é claro, de uma moeda. Mais motivo para falatório:
─ Menino do inferno sai daí, cê tá sujando a água, diabo.
Aquele vaivém de pernas e braços arrefecia no meio da manhã para voltar com todo gás à tarde, mais discussões, mais risos e mais interlocuções. Mas quem realmente tirava proveito da situação era o Cleiton, um grandalhão metido a poeta que não perdia tempo de galantear uma moça, desde que desimpedida, era precavido nosso Shakespeare eternamente apaixonado. Gozava fama de conquistador e tinha sempre um elogio na ponta da língua, para dirigir a um sorriso de mulher. E não era ali, na cacimba de sua quadra, a mais povoada do condomínio, um belo recanto para se fazer uma conquista?
─ Oi – chegava-se ele dirigindo a uma moça, depois de examinar-lhe a mão esquerda – deixe-me ajudá-la. E encetava papo aguado, daqueles que não constroem nenhum Dom Juan, mas que também não saem de moda, já que há sempre alguém emocionalmente abalado à procura de um ombro de aluguel. E assim Cleiton ia edificando sua fama de cordial, gentil, romântico. Outro proveito que ele tirou da estressante situação foi a produção de um cordel, que lhe deu uns bons trocados. Cinco dias depois de o infortúnio começar lá estava ele ao pé das cacimbas divulgando seu novo trabalho:
─ Não perca o imperdível cordel “A hora e a vez do balde”.
A hilária ambigüidade do título foi a grande responsável pelo sucesso do livreto, logo transformado em entradas para o filme do momento, pacotes de pipoca e amassos no escurinho do cinema. E assim nosso folclórico amigo levava a vida, brincando de fazer versos e de amar. Quando alguém fazia algum comentário sobre seu modus vivendi, ele argumentava com uns versos de Vinícius “A gente só leva desta vida a vida que a gente leva”, dava um sorriso e saía.


Foi numa dessas excursões à cacimba que Larissa reencontrou-se com Ígor. Ela acompanhava Gorete, que naqueles dias estava com trabalho dobrado na oficina e na cacimba. Preparava-se para ir embora quando o viu com um balde em cada mão. Ela não sabia se o ignorava ou cumprimentava-o. Foi ele quem teve a iniciativa.
─ Oi. Que que cê tá achando de tudo isso?
─ Chato, né. Mas fazer o quê!
─ Nunca mais tinha te visto.
─ É que eu tava tirando nota baixa e minha mãe mandou estudar. – Mentiu ela.
─ Hoje à noite o pessoal vai se reunir pra vê a história do natal da favela. Cê vai?
Larissa então lembrou que em todo final de ano quando se aproxima o natal os meninos e as meninas se reúnem para angariar roupas e mantimentos para o pessoal de uma favela que fica nas proximidades do condomínio. E aquela era uma boa oportunidade de ver Ígor.
─ Vou, vou sim. Clarinha já tinha me falado. – Mentiu de novo.
─ Tá bom. Te vejo lá. Tchau.
Larissa eclipsou-se das vistas do rapaz, e lembrou-se de que o professor de Português falou uma vez que quem inventa uma mentira tem que inventar mil para encobrir a primeira, e acompanhou Gorete que a esperava adiante.




CAPÍTULO VIII


“Tudo isso pelo encanto
Desse beijo de um minuto
(...)
Mas que cria em seu transporte
De um minuto, a eternidade
E a vida de tanta morte.”
(Um Beijo)












À noite, com efeito, as meninas e os meninos se reuniram na sala contígua à administração do condomínio para decidirem as diretrizes das ações para o natal da favela, como chamavam. As ações foram traçadas. Ficou decidido que além de pedirem roupas e mantimentos no condomínio, eles também o fariam nos condomínios vizinhos e que as meninas utilizar-se-iam de seu chame para convencer as pessoas a fazerem as doações e que os meninos iriam buscá-las. No final da reunião, Ígor se aproximou de Larissa, que deu graças a Deus por essa ocorrência. É que Viviane durante a reunião não tirou os olhos de cima dela, a ponto de Clarinha comentar:
─ Por que a Viviane só fala olhando pra você? Parece até que só tem você aqui!
Ao final da reunião a loira se aproximou de Larissa:
─ Oi. Aonde você andou? Nunca mais tinha te visto – e segredando-lhe no ouvido – eu já estava com saudades dos teus olhos.
─ É, eu tava estudando. Disse a menina com uma voz meio sumida.
─ Eu não consigo deixar de pensar em você – Tornou Viviane, insinuante.
Larissa sentiu uma sensação estranha a qual não conseguia explicar. Não sabia se era uma vontade de correr, esbofetear a garota, retirar-se dali. Era tudo misturado, mas algo a paralisava. Os olhos de Vivi exerciam certo poder sobre ela, o cheiro do suor da menina penetrava suas narinas e a deixava com todos os sentidos alerta. Foi nesse momento que o menino se aproximou. Houve um silêncio constrangedor entre o trio, até que Vivi, sentindo-se de mais, despediu-se:
─ Tchau, Lissa. Depois eu te ligo.
Ígor começou então a falar sobre o que ficou decidido na reunião, depois falou sobre a cacimba, sobre um acidente que havia ocorrido na avenida, sobre o perigo de se andar de moto, do exorbitante preço da gasolina, das eleições para presidente, enquanto isso Larissa ruminava como é interessante o cérebro humano, como as pessoas mudam de assunto sem mesmo se dar conta disso. Os assuntos vão-se sucedendo de tal forma que se começa a falar de ouro e se conclui com couro. Depois pensou em Vivi. Como aquela menina a irritava! Naquele momento foi resgata ao plano dos imortais por alguma coisa que o rapaz dissera, algo como namorar. Os dois estavam em pé, ainda perto da sala onde ocorrera a reunião. Os outros já haviam sumido, estavam praticamente sós, apenas um ou outro passante se dirigia à frente do condomínio. Ela aproximou o rosto do rosto do menino e o beijou nos lábios. Movido pela surpresa ele teve quase o impulso de se afastar, mas ela segurou-lhe o rosto impedindo-o de fazê-lo. As duas bocas uniram-se como se quisessem eliminar uma a outra. Suas línguas se tocaram e os narizes sentiram mutuamente os cheiros que se confundiam. Durou pouco, entretanto foi suficiente para que ambos percebessem que havia algo neles que os tornava um par, mas que eles não sabiam ainda o que era. Era a química de seus corpos, o cheiro emanado de suas entranhas era bem recebido pelo outro. Estava explicado por que quando um chega próximo ao outro, seus corpos pedem a fusão. O silêncio que tornava o barulho de um grilo audível foi quebrado pela menina:
─ Desculpa, mas deu vontade. Sua boca é tão bonita. – falou ela corajosamente, com um frio terrível na espinha.
Foi a vez de Ígor repetir o gesto da menina, e a confusão de bocas se repetiu. Depois os dois foram para a frente do condomínio e mostraram-se aos outros numa atitude libertária, sem pejo. Ela estava feliz. Mas não lhe passou despercebido o olhar fuzilante que lhe dirigiu Vivi.


Chegando a casa a menina contou, com certo temor, a novidade à mãe. D. Fernanda tomou um susto:
─ O quê, menina, cê tá namorando, com quem?
─ Com o Ígor, mãe, cê num conhece, não. Ele é super legal depois eu te apresento.
Dona Fernanda olhou para a filha e lembrou-se de quando ela era uma meninazinha. As lágrimas vieram-lhe aos olhos. “Como o tempo passa rápido, Meu Deus, minha filha já está uma moça! Abençoe-a, por favor.”
No quarto, Larissa sentiu-se nova, diferente da menina que acordou de manhã. Era realmente singular o que sentia, uma vontade de gritar, de abrir a janela e acenar para quem passasse lá embaixo. Ela tinha um namorado, podia trazê-lo para casa, ir ao cinema com ele ou ao shopping. Sobre o que conversariam? Tudo aquilo era realmente novo. Levantou-se da cama e foi até o computador para teclar com Juliana e contar-lhe a novidade. Mas desistiu, voltou para a cama, desligou a luz, tentou dormir, embalde. Seu corpo fervilhava, havia uma energia extra que não lhe permitia pregar olho. Ligou novamente a luz, pegou o porta-retrato sob a cabeceira e leu mais uma vez o poema presenteado por tio Jonas. Seus olhos se fixaram, dessa feita, nos dois últimos versos da segunda estrofe:
Pronta a amar, augusto, a quem aprouver,
Ó impudente luz de dourada beleza.

De posse do dicionário, Larissa procurou o significado das três palavras cujo significado desconhecia: aprouver, augusto e impudente. Só bem tarde conseguiu dormir certa de que havia decifrado mais uma sequência do poema feito para si.

Nos dias que se seguiram edificou-se profunda mudança na menina. Estava mais falante. As colegas foram as primeiras a elogiar seu novo comportamento. Até sua pele ficou mais viçosa, mais limpa, seus cabelos adquiriram novo brilho e o sorriso, característica inata dos leoninos, bailava em seus lábios. Só Vivi não estava gostando daquilo e remoía um plano para acabar com aquela alegria.


quinta-feira, 2 de julho de 2009

REFLEXÃO SOBRE ÉTICA

REFLEXÃO SOBRE éTICA

Certa vez um aluno chegou-se a mim e perguntou sobre a questão da crase facultativa. Depois de devidamente esclarecido, ele me disse que sua professora tinha considerado incorreta uma questão sobre pronome possessivo e o uso do acento grave. Eu o aconselhei a falar com ela, que com certeza se enganara e, assim, reveria sua posição. Fiquei então pensando como a professora ficaria feliz por seu aluno ter aprendido as regras do uso do sinal de crase, inclusive os casos facultativos!
Entretanto a professora passou-lhe uma descompostura, conseguiu que ele fosse suspenso por desacato e ainda por cima acusou-me de não ter ética profissional. Fiquei então pensando o que é ética. Eu sou assim, conheço um monte de coisas que ninguém sabe e desconheço aquilo que é lugar comum. Fui então pesquisar sobre o assunto. Li um monte de coisas a respeito, mas nada me foi elucidador. Vi várias definições de filósofos, sociólogos, psicólogos, e nada. Depois compreendi que esses caras não sabem nada e pensam que sabem tudo.
Resolvi, pois, ver isso na prática. Decidi acompanhar jornais e revistas que trazem notícias sobre as atitudes dos seres humanos mais éticos. Analisei posturas de políticos e sua insaciável fome de poder; atitudes de pessoas ligadas à lei, muitos vendendo sua alma ao diabo por uma quantia em dinheiro, para, ao morrer, deixar aos herdeiros de suas misérias morais; pessoas comuns e profissionais diversos negando aos clientes o direito de ser verdadeiramente beneficiados com seu trabalho...
Depois de algum tempo, compreendi finalmente o que é ética (nego-me a usar inicial maiúscula) e o que é ter ética. ética é a arte de conviver com a raça humana. Sim porque lidar na selva, por exemplo, com leões famintos, hienas carniceiras, sol causticante e lutar pela sobrevivência é fichinha diante da difícil convivência com a volúpia humana. Ter ética é mentir e deixar mentir. Se não quiser mentir, não o faça, mas não impeça que outros mintam. Roubar e deixar roubar. Não quer roubar? Não precisa, mas o que você tem com o roubo dos outros? Burle a lei, transforme o princípio da publicidade da gestão pública em atos secretos. Não quer? Deixe para seu colega no senado que ele gosta. Se você quer ser responsável no seu trabalho, problema seu, mas querer que outros sejam também! Pô já é faltar muito com a ética. Ser desonesto é uma dádiva do indivíduo ético. Feche os olhos, você não tem nada a ver com isso, ou então tenha: junte-se a eles. A traição e a ingratidão são talvez a maior virtude das pessoas éticas, seja em casa, no trabalho ou com os amigos, depois é só dizer que foi necessário, abraçar os seus e está tudo novo.
Depois de chegar a essas conclusões, fique feliz por, como disse a professora mencionada, não ter ética, pois sendo assim não faço nenhum mal a sociedade. Mas depois fiquei triste por saber que a grande massa humana está sob a regência dos detentores dessa alta virtude.
(Professor Alves)

terça-feira, 30 de junho de 2009

PARA UMA CRIANÇA DE OITO ANOS

PARA ISABELE, NO SEU ANIVERSÁRIO DE OITO ANOS


Isabele, hoje que você está comemorando seus oito anos, tenho algumas palavras para você. Primeiro queria dizer-lhe que me esforcei para fazer um poema bem bonito, que você lesse e ficasse com orgulho e dissesse para suas amigas: “Vejam só o que meu padrinho fez para mim!!” Mas não deu. Talvez minha já parca inspiração tenha se intimidado diante desse momento tão grandioso. Sim porque fazer OITO anos é o momento mais significativo da nossa existência. Afinal aos oito anos já estamos em um décimo da vida. Casimiro de Abreu fez seu mais belo poema em homenagem aos seus oito anos. Ou (a inspiração) tenha se inibido diante de sua beleza e de sua esperta sapiência.
Segundo, queria deixar meus sinceros votos de felicidade, e dizer-lhe que para ser feliz não é preciso muito esforço. É suficiente, para isso, que não envelheça por dentro, é preciso manter eterna a criança que nos habita aos oito anos de idade. É preciso que mantenha acesa a inocência desse momento, mesmo que depois o mundo se descortine com suas maldades e perversidades. Feche os olhos e os ouvidos a tudo isso e os mantenha anchos para as coisas boas, para as coisas simples, para a bondade humana. Admire o voo das borboletas, mas não deixe de torcer pela sorte da lagarta; ilumine-se nos raios de sol, mas não deixe de refletir o mundo por entre os pingos da chuva; deixe seus lábios sempre abertos em pétalas de sorriso, mas sem edificá-lo na amargura alheia. Não esqueça o mais importante: cultive amigos! Amigos de verdade, que estejam com você em todos os momentos, como naquela história do homem e do peixinho (lembra?). Tenha-os em abundância, como o jardineiro às flores, como o avaro ao dinheiro. Quando crescer, escolha uma profissão que lhe dê um mundo de conforto, mas que seja útil ao semelhante; que lhe dê prazer em realizá-la, mas também que apraza aos outros, principalmente aos mais necessitados.
Desculpe-me pela ausência da poesia. Sei que ela um dia virá, fomentada no sorriso que baila em seus lábios e na inocência que rodeia seu ser. Não será digna de uma publicação, mas espero que traga consigo uma boa dose de pureza e sabedoria.

Professor Alves

sexta-feira, 19 de junho de 2009

ESSE É O PRINCIPEZINHO

NOTAS DAS AVENTURAS DO PEQUENO PRÍNCIPE


O principezinho, depois de deixar seu pequeno planeta, chega a um outro não muito maior. Lá encontra o monarca absoluto e mantém com ele um diálogo, do qual subscrevo o seguinte trecho:

O principezinho, depois de deixar seu pequeno planeta, chega a um outro não muito maior. Lá encontra o monarca absoluto e mantém com ele um diálogo, do qual subscrevo o seguinte trecho:

“ ─ Majestade... sobre quem é que reinais?
─ Sobre tudo, respondeu o rei, com uma grande simplicidade.
─ Sobre tudo?
O rei com um gesto discreto, designou seu planeta, os outros, e também as estrelas.
─ Sobre tudo isso... respondeu o rei.
Pois ele não era apenas um monarca absoluto, era também um monarca universal.
─ E as estrelas vos obedecem?
─ Sem dúvida, disse o rei. Obedecem prontamente. Eu não tolero indisciplina.
Um tal poder maravilhou o principezinho. Se ele fosse detentor do mesmo, teria podido assistir, não a quarenta e quatro, mas a setenta e dois, ou mesmo a cem, ou mesmo a duzentos pores-do-sol no mesmo dia, sem precisar sequer afastar a cadeira! E como se sentisse um pouco triste à lembrança do seu pequeno planeta abandonado, ousou solicitar do rei uma graça:
─ Eu desejava ver um pôr-do-sol... Fazei-me esse favor. Ordenai ao sol que se ponha...
─ Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor a outra como uma borboleta, ou escrever uma tragédia, ou transformar-se em gaivota, e o general não executasse a ordem recebida, quem – ele ou eu – estaria errado?
─ Vós, respondeu com firmeza o principezinho.
─ Exato. É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar, replicou o rei. A autoridade repousa sobre a razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance ao mar, farão todos revolução. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis.
─ E meu pôr-do-sol? Lembrou o principezinho, que nunca esquecia a pergunta que houvesse formulado.
─ Teu pôr-do-sol, tu o terás. Eu o exigirei. Mas eu esperarei, na minha ciência de governo, que as condições sejam favoráveis.”
(O Pequeno Príncipe, Exupéry. tradução de dom Marcos Barbosa, Agir, 39ª edição, pp. 38 à 40)

Observemos que apesar de toda a autoridade nosso rei é sábio. Entende que as pessoas não são aquilo que queremos que elas sejam, nem as situações estão sempre favoráveis à nossa vontade. É preciso que haja condições para que tenhamos o que desejamos com tanta impaciência. É preciso esperar o momento adequado e que nossas vontades, sonhos sejam razoáveis.


quarta-feira, 17 de junho de 2009

A MORTA

Hoje tive um sonho interessante. Sonhei que estava em sala de aula falando para nossos alunos sobre um dos mais interessantes contos que já li: A Morta, do escritor francês Guy de Maupassant. Lembrei-me também de uma pessoa muito importante para mim e que é, como eu, apaixonada por esse conto. Transcrevo-o abaixo para deleite de algum visitante desafortunado.
A Morta

Eu a amara perdidamente! Por que amamos? É realmente estranho ver no mundo apenas um ser, ter no espírito um único pensamento, no coração um úni­co desejo e na boca um único nome: um nome que ascende ininterruptamente, que sobe das profundezas da alma como a água de uma fonte, que ascende aos lábios, e que dizemos, repetimos, murmuramos o tem­po todo, por toda parte, como uma prece.
Não vou contar a nossa história. O amor só tem uma história, sempre a mesma. Encontrei-a e amei-a. Eis tudo. E vivi durante um ano na sua ternura, nos seus braços, nas suas carícias, no seu olhar, nos seus vestidos, na sua voz, envolvido, preso, acorrentado a tudo que vinha dela, de maneira tão absoluta que nem sabia mais se era dia ou noite, se estava morto ou vivo, na velha Terra ou em outro lugar qualquer.
E depois ela morreu. Como? Não sei, não sei mais.
Voltou toda molhada, nutria noite de chuva, e, no dia seguinte, tossia. Tossiu durante cerca de uma semana e ficou de cama.
O que aconteceu? Não sei mais.
Médicos chegavam, receitavam, retiravam-se. Traziam remédios; uma mulher obrigava-a a tomá-los. Tinha as mãos quentes, a testa ardente e úmida, o olhar brilhante e triste. Falava-lhe, ela me respondia. O que dissemos um ao outro? Não sei mais. Esqueci tudo, tudo, tudo! Ela morreu, lembro-me muito bem do seu leve suspiro, tão fraco, o último. A enfermeira excla­mou: "Ah! Compreendi, compreendi!"
Não soube de mais nada. Nada. vi um padre que falou assim: "Sua amante." Tive a impressão de que a insultava. Já que estava morta, ninguém mais tinha o direito de saber que fora minha amante. Expulsei-o. Veio outro que foi muito bondoso, muito terno. Cho­rei quando me falou dela.
Consultaram-me sobre mil coisas relacionadas com o enterro. Não sei mais. Contudo, lembro-me muito bem do caixão, do ruído das marteladas quando a enterraram lá dentro. Ah! meu Deus!
Ela foi enterrada! Enterrada! Ela! Naquele bu­raco! Algumas pessoas tinham vindo, amigas. Cami­nhei durante muito tempo pelas ruas. Depois voltei para a casa. No dia seguinte, parti para uma viagem.

Ontem, regressei a Paris.
Quando revi o meu quarto, o nosso quarto, a nossa cama, os nossos móveis, toda essa casa onde ficara tudo o que resta da vida de um ser depois da sua morte, o desgosto apoderou-se de mim novamente, de uma forma tão violenta que quase abri a janela para atirar-me à rua. Não podendo mais permanecer no meio daqueles objetos, daquelas paredes que a tinham encerrado, abrigado, e que deviam conservar em suas fendas imperceptíveis milhares de átomos seus, da sua carne e da sua respiração, peguei meu chapéu para sair. De súbito, ao atingir a porta, passei diante do grande espelho que ela mandara colocar no vestíbulo para mirar-se, dos pés à cabeça, todos os dias antes de sair, para ver se toda a sua toalete lhe ia bem, se estava correta e elegante, das botinas ao chapéu.
E parei, de chofre, diante desse espelho que tan­tas vezes a refletira. Tantas, tantas vezes, que também deveria ter guardado a sua imagem.
Fiquei lá, de pé, trêmulo, os olhos fixos no vidro liso, profundo, vazio, mas que a contivera toda, que a possuíra tanto quanto eu, tanto quanto o meu olhar apaixonado. Tive a impressão de que amava aquele espelho - toquei-o - estava frio! Ah! recordação! recordação! Espelho doloroso, espelho ardente, espelho vivo, espelho horrível, que inflige todas as torturas! Felizes os homens cujo coração, como um espelho onde os reflexos deslizam e se apagam, esquece tudo o que conteve, tudo o que passou à sua frente, tudo o que se contemplou e mirou na sua feição, no seu amor! Como sofro! Saí e, involuntariamente, sem saber, sem que­rer, dirigi-me ao cemitério. Encontrei seu túmulo, um túmulo singelo, uma cruz de mármore com algumas palavras: "Ela amou, foi amada, e morreu."
Lá estava ela, embaixo, apodrecendo! Que hor­ror! Eu soluçava, a fronte no chão.
Fiquei lá por muito tempo, muito tempo. Depois, percebi que a noite se aproximava. Então, um desejo estranho, louco, um desejo de amante desesperado apoderou-se de mim. Resolvi passar a noite junto dela, a última noite, chorando no seu túmulo. Mas me ve­riam, me expulsariam. Que fazer? Fui esperto. Levan­tei-me e comecei a vagar pela cidade dos desaparecidos. Vagava, vagava. Como é pequena essa cidade ao lado da outra, daquela em que vivemos! Precisamos de casas altas, de ruas, de tanto espaço, para as quatro gerações que vêem a luz ao mesmo tempo, que bebem a água das fontes, o vinho das vinhas e comem o pão das planícies.
E para todas as gerações dos mortos, para toda a série de homens que chegaram até nós, quase nada, um terreno apenas, quase nada! A terra os toma de volta, o esquecimento os apaga. Adeus!
Na extremidade do cemitério habitado, avistei subitamente o cemitério abandonado, onde os velhos defuntos acabam de misturar-se à terra, onde as pró­prias cruzes apodrecem, e onde amanhã serão coloca­dos os últimos que chegarem. Está cheio de rosas silvestres, de ciprestes negros e vigorosos, um jardim triste e soberbo alimentado com carne humana.
Estava só, completamente só. Agachei-me perto de uma árvore verde. Escondi-me completamente en­tre os galhos grossos e escuros.
E esperei, agarrado ao tronco como um náufra­go aos destroços.
Quando a noite ficou escura, bem escura, dei­xei o meu abrigo e comecei a caminhar de mansinho, com passos lentos e surdos, por essa terra repleta de mortos.
Vaguei durante muito, muito tempo. Não a en­contrava. Braços estendidos, olhos abertos, esbarran­do nos túmulos com as mãos, com os pés, com os joe­­lhos, com o peito, e até com a cabeça, eu vagava sem encontrá-la. Tocava, tateava como um cego que pro­cura o caminho, apalpava pedras, cruzes, grades de ferro, coroas de vidro, coroas de flores murchas! Lia nomes com os dedos, passando-os sobre as letras. Que noite! Que noite! Não a encontrava!
Não havia lua! Que noite! Sentia medo, um medo horrível, nesses caminhos estreitos entre duas filas de túmulos! Túmulos! Túmulos! Túmulos. Sempre túmulos! À direita, à esquerda, à frente, à minha volta, por toda parte, túmulos! Sentei-me num deles, pois não podia mais caminhar, de tal forma meus joelhos se dobravam. Ouvia meu coração bater! E também ouvia outra coisa! O quê? Um rumor confuso, indefinível! Viria esse ruído do meu cérebro desvairado, da noite impenetrável, ou da terra misteriosa, da terra semeada de cadáveres humanos? Olhei à minha volta!
Quanto tempo fiquei ali? Não sei. Estava parali­sado de terror, alucinado de pavor, prestes a gritar, pres­tes a morrer.
E, de súbito, tive a impressão de que a laje de mármore onde estava sentado se movia. Realmente, ela se movia, como se a estivessem levantando. Com um salto, precipitei-me para o túmulo vizinho e vi, sim, vi erguer-se verticalmente a laje que acabara de dei­xar; e o morto apareceu, um esqueleto nu que empur­rava a lápide com as costas encurvadas. Eu via, via muito bem, embora a escuridão fosse profunda. Pude ler sobre a cruz:
"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinquenta e um anos de idade. Amava os seus, foi honesto e bom, e morreu na paz do Senhor."
O morto também lia o que estava escrito no seu túmulo. Depois, apanhou uma pedra no chão, uma pedrinha pontiaguda, e começou a raspar cuidadosamente o que lá estava. Apagou tudo, lentamente, con­templando com seus olhos vazios o lugar onde ainda há pouco existiam letras gravadas; e, com a ponta do osso que fora seu indicador, escreveu com letras lumi­nosas, como essas linhas que traçamos com a ponta de um fósforo:
"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinquenta e um anos de idade. Apressou com maus tratos a mor­te do pai de quem desejava herdar, torturou a mulher, atormentou os filhos, enganou os vizinhos, roubou sempre que pode e morreu miseravelmente."
Quando acabou de escrever, o morto contemplou sua obra, imóvel. E, voltando-me, notei que todos os túmulos estavam abertos, que todos os cadáveres os tinham abandonado, que todos tinham apagado as mentiras inscritas pelos parentes na pedra funerária, para aí restabelecerem a verdade.
E eu via que todos tinham sido carrascos dos parentes, vingativos, desonestos, hipócritas, mentirosos, pérfidos, caluniadores, invejosos, que tinham rou­bado, enganado, cometido todos os atos vergonhosos, abomináveis, esses bons pais, essas esposas fiéis, es­ses filhos devotados, essas moças castas, esses comerciantes probos, esses homens e mulheres ditos irrepreensíveis.
Escreviam todos ao mesmo tempo, no limiar da sua morada eterna, a cruel, terrível e santa verdade que todo mundo ignora ou finge ignorar nesta Terra.
Imaginei que também ela devia ter escrito a verdade no seu túmulo. E agora já sem medo, correndo por entre os caixões entreabertos, por entre os cadáve­res, por entre os esqueletos, fui em sua direção, certo de que logo a encontraria.
Reconheci-a de longe, sem ver o rosto envolto no sudário.
E sobre a cruz de mármore onde há pouco lera:
"Ela amou, foi amada, e morreu", divisei:
"Tendo saído, um dia, para enganar seu amante, resfriou-se sob a chuva, e morreu”.

Parece que me encontraram inanimado, ao nas­cer do dia, junto a uma sepultura.
(31 de maio de 1887)
com as devidas adaptações para nova ortografia.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO XXII
“Nascemos um para o outro dessa argila
de que foram feitas as criaturas raras”
(Raul de Leôni)



Desde então tornamos-nos inseparáveis, aliel e eu. Não havia lugar que eu fosse que ela não estivesse ao meu lado. Passeávamos juntos, íamos às compras um ao lado do outro, levávamos os filhos para o mesmo passeio. Até que, a despeito do que as pessoas poderiam vir a comentar, Aliel mudou-se para nossa casa, como se dela tivesse saído para fazer um passeio. O nosso amor finalmente desabrochou como as pétalas de uma rosa ansiosas por verem a luz do sol. Nadiel e Leila ganharam uma mãe e um pai, e os quatro formamos uma família feliz. As lembranças do passado foram guardadas no fundo do nosso consciente e tacitamente sem palavras fizemos um acordo de nele não tocar. Aliel continuou a fazer seu curso de Turismo e sempre que podia aparecia no hospital para me ajudar apesar das reclamações dos colegas. Eu ria do modo como ela invadia as enfermarias cantarolando algo para animar os pacientes, tomando-lhes a pressão, acariciando um e outro sem nenhum receio de contaminação. Quando um médico perguntava por que ela não fazia um curso de enfermagem, ela respondia que não, “basta um em casa ter a obrigação de não viver lá”, fazia um muxoxo e saía para olhar outro doente.
Em outros momentos, ficava em casa cuidando de nossos filhos. Dava a eles toda a atenção possível. Era esfuziante quando brincava com eles, inventando-lhes desenhos, contando-lhes histórias ou fazendo-os rir com mungangos. Quando estávamos juntos, eu não conseguia fazer outra coisa senão mirar sua beleza e, como as crianças, rir dos suas brincadeiras pueris. Por outro lado nunca reclamava de minhas ausências, quando eu virava plantão após plantão sem descanso. Quando eu voltava para casa, dessa muitas vezes inúteis batalhas contra a morte, ela estava me esperando e passava horas velando meu sono.
E assim o tempo passou como uma flecha. Nunca mais fui atormentado por sonhos de outras vidas. Vez por outra reconhecia alguém de uma outra existência ou tinha um leve transe em que revia uma cena de encarnações anteriores, mas nada que me molestasse ou que fosse de grande relevância. Uma noite sonhei com Ernani. No sonho ele era uma criança e estava vestido com um uniforme escolar. Aproximou-se de mim, abraçou-me e me chamou de pai. No dia seguinte, ao chegar do hospital, Aliel me deu a feliz notícia de que estávamos esperando um bebê. Eu chorei, pois agora entendia o significado daquele sonho: Ernani viveria na pele de nosso filho.

EPÍLOGO
“Se este mundo é um demônio
nós somos dele uma parte
e se a vida é só um sonho
que seja um sonho de arte.”
(Fagner/Brandão)

No meu aniversário de cinquenta anos, pedi um presente a Aliel: que ela casasse comigo. É que nos faltara tempo para ter uma lua-de-mel. Ela riu muito antes concordar. A cerimônia foi simples, com poucos amigos e familiares. No dia seguinte partimos para Veneza, um sonho de criança. Depois vim a saber que Aliel também sempre sonhara conhecer a cidade mais romântica do mundo.
No décimo dia nessa maravilhosa cidade, estávamos num restaurante à noite, enquanto eu me embriagava com as brincadeiras de minha amada esposa, vislumbrei a fisionomia de um brasileiro. Seu ar impaciente diante do reflexo das luzes no canal me chamou a atenção. Ele me era familiar, de onde eu o conhecia? Não, não era de onde, mas de que vida! Como sempre, fiquei apenas com a certeza de que era alguém conhecido. Quando Aliel saiu para ir ao toalete, dirigi-me até ele e mantivemos um rápido diálogo, para logo nos familiarizarmos. Ele também era de Fortaleza e isso foi motivo para longa conversa. Quando soube que o Sr. Rodrigo, era esse seu nome, era escritor tive a idéia de lhe contar nossa história para que ele a romanceasse. Algumas vezes eu mesmo tentara fazê-lo, mas meu talento para a literatura era o de leitor, por isso desisti. Nosso novo amigo, encantado por Aliel (impossível, Sr. Rodrigo, alguém não ficar encantado por ela), durante uma semana ouviu de mim essa história de sonhos e de encontros.


FIM

quarta-feira, 3 de junho de 2009

CAPÍTULO XX
“Todo vale será aterrado, e nivelado todos os montes e outeiros; os caminhos tortuosos serão retificados, e os escabrosos, aplanados.”
(Lucas: 3 – 5)

Quando despertei desse transe, estava na enfermaria do cemitério. Ao meu lado, Aliel, vestida de preto, me sorria e com seu habitual jeito brejeiro me falou:
─ Pensei que você também ia me deixar.
Depois de alguns minutos, mais recuperado, contei a ela o que havia ocorrido, ao que ela, meneando a cabeça, disse:
─ Imaginei que houvesse sido isso mesmo, é tanto que, por incrível que pareça, fui eu que acalmei os demais sobre seu estado.
Sua voz era pausada, calma. Soava como se tivesse além de palavras um enorme sentimento de revolta contra o destino, contra tudo que conspirava para que sua existência não fosse normal. Desde quando ela tivera direito a um tempo longo de descanso espiritual, de serenidade, para realmente edificar seu ser. Em quantas de suas mais de cinqüenta vidas estivera plena? Que lhe lembrasse nenhuma. Será que alguém o seria, seria possível aqui na terra, com todas as suas contradições, alguém atingir essa plenitude? Talvez pensasse também em mim, em minha desventura. Pois não éramos os dois desventurados? No entanto não estava o destino conspirando para que ficássemos juntos? Mas Será que se deveria agradecer a esse Senhor tão onipotente por decidir sobre os caminhos de seres tão frágeis, assim de forma tão desgraçada? O certo é que deveríamos nos conformar com Ele. Enquanto ela passava a mão em meus cabelos, uma lágrima caiu sobre mim, e nela pude ler mais interrogações que vinham de sua alma angustiada: “e se ele queria realmente nos juntar, e para tanto abrira uma ferida tão grande no peito de muita gente, pois nem nós nem nossas famílias seriamos os mesmos depois do que ocorrera, nossos filhos um dia saberiam o que havia acontecido de fato, e o que pensariam, não seria esse esforço para nos unir apenas mais uma de suas armadilhas urdida para depois nos destruir novamente, física e moralmente, como o fomos agora?”
Nossas vidas aos poucos ganharam novos rumos, ganharam uma nova rotina. Agora eu era pai e mãe de Leila. Enquanto me desdobrava em cuidados para com meus pacientes, pensava em várias formas de educá-la, dar a ela o carinho de mãe. Ah! Como ela sentia a falta da voz materna! Acordava durante a noite e, por mais que eu me esforçasse, não conseguia fazer com que parasse de chorar, às vezes ela adormecia de cansaço e eu ficava velando aquele ser tão carente do amor de mãe.
Para aliel a vida também não era fácil. Uma criatura que teve na infância a pena de ser torturada por imagens de outras vidas enquanto a mãe sempre censurando-a, certa de que ela era louca. Ela sentia agora um grande desespero pela perda do marido, que talvez tenha sido seu verdadeiro pai, porque soubera compreendê-la e reeducá-la. Naquele momento ela era uma mulher saudável, entretanto frágil e fragilizada. Nas vezes que fui visitá-la e levar sua afilhada para lhe pedir a bênção, encontrei os pais fazendo-lhe companhia. Havia, no entanto, certo desconforto entre ela e eles. Quando me via, A pobrezinha abria um sorriso de gratidão como se dissesse “obrigado por ter vindo, por me tirar desse constrangimento compulsório”. Em breve eles se iam e nós podíamos, às vezes em silêncio, confrontar nossas dores. Eu brincava com Nadiel, e Aliel se encantava com o riso espontâneo de Leila. Em outros momentos, deixávamos os dois brincando e nos dispúnhamos a uma partida de xadrez. Ficávamos a mirar as peças e a pensar em tudo que nos rodeava. Às vezes erguíamos os olhos um para o outro, como se quiséssemos dizer algo, mas as circunstâncias nos impediam. Outras vezes, íamos juntos ao centro espírita, depois a uma pizzaria ou coisa que o valha.
CAPÍTULO XXI
“Minha alma de sonhar-te anda perdida,
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois se tu és já toda minha vida!”
(Florbela Espanca)

Uma vez Aliel me surpreendeu. Era um sábado à tarde, eu estava atendendo um paciente quando a enfermeira me chamou para atender ao telefone. Apesar de o celular já ser quase moda, em 1997, nós médico éramos proibidos de usá-los dentro do hospital, como minha vida toda era dentro dele, eu nunca pensei sequer em comprar um. Só depois, pelos idos de 2002, é que a vida tornou-se impossível sem eles. Ao atender ao telefone, surpreendi-me com a voz de Aliel do outro lado da linha. Ela, com sua voz jovial, me perguntou se eu não queria dançar. A princípio eu não entendi, estava meio atônito. E ela percebendo meu embaraço, tratou de explicar:
─ Olha, eu tomei a liberdade de vir à sua casa e liberar a Marlene durante o dia para que ela venha à noite, pra gente sair um pouco. Ou você não quer?
Pensei um pouco, ainda surpreso com suas palavras. Naquele momento imaginei Aliel tomando conta das duas crianças. A casa devia estar uma bagunça só. Tive ímpetos de correr para casa para presenciar aquela cena, mas me contive. Como me demorei em responder, ela brincou:
─ Alô! Tem alguém aí? – ao que eu respondi:
─ Sim, claro, é que você me pegou de surpresa. Quando terminar o expediente eu vou para casa e a gente resolve.
─ Certo, mas eu quero dançar. Ouviu? – respondeu ela.
O restante da tarde se arrastou a passos de tartaruga, enquanto eu imaginava a cena pela qual eu esperava, mesmo que fosse de brincadeirinha. De súbito tive remorso daquelas idéias, mas algo mais forte do que eu me dizia “deixa de ser tolo, se o destino assim quis, que assim seja”. E me lembrei de uma frase lida ou ouvida em algum lugar: “É incrível a força que as coisas parecem ter quando precisam acontecer.” Repassei como num filme todo o meu passado, refleti sobre o de Aliel e concluí que não devemos ter medo de ser felizes, pelo menos por alguns instantes. Essa é a eternidade de que nos fala o poeta Vinícius de Morais: “Mas que seja infinito enquanto dure!” Era isso! O que eu realmente tinha medo era de sofrer mais uma vez, eu tinha medo da desilusão. Ademais eu nunca tive certeza dos sentimentos de Aliel, por isso temia um golpe mais forte. De repente as idéias me vieram cristalinas como as águas de uma lagoa azul: “vamos agir de forma espontânea, sem forçar o momento, deixar que nossos seres se encontrem de fato”. Pensando nisso, balancei a cabeça para espantar as minhocas que se enrolavam em meu cérebro e fui atender a um paciente.
Quando cheguei a casa, encontrei uma cena merecedora de um quadro. as crianças batiam palmas compassadamente ao som de uma música infantil cantada por Aliel que as rodeava, fazendo os movimentos que eram imitados por elas. Ao lado Marlene se deleitava, com a cena, formando o pano de fundo do quadro uma desarrumação completa: livros de histórias infantis pelo chão, papéis rasgados, tesouras, tubo de cola derramando o líquido pelo chão. A única coisa que estava organizada era a cabeça das crianças. Aliel estava suada com toda aquela trabalheira. Difícil foi fazer com que os pequenos lhe deixassem sair para tomar banho. Reclamavam a toda hora que queriam dançar, bater palmas, mas devido o adiantado da hora e a prática da Marlene eles se renderam ao cansaço e dormiram, ambos no sofá, tomando a mamadeira.
Quando por fim aquela bagunça saiu de minha retina, fui-me aprontar. Aliel demorou uma hora e meia para fazê-lo, enquanto eu tentava distrair a impaciência folheando sem ver uma e outra revista. Finalmente pudemos sair. Estava uma noite linda. A lua branca parecia nos premiar com sua luz imensa e amarela. Eu respirei o ar da noite, mirei as estrelas. Como é bela a noite! Infelizmente devido ao corre-corre do dia não vemos a noite, só sua negritude; assim como não admiramos o dia, só sentimos a luz e o calor do sol. As pessoas seriam, com certeza, melhores e bem mais felizes se vivessem mais o sol e menos o dia; a lua e a noite, menos a escuridão. Eu estava feliz, e Aliel possuía um sorriso de menino que acabou de inventar uma brincadeira, mas que não pode contar para os colegas.
Fomos à Praia de Iracema (Ah! que saudades!), depois a um restaurante para jantar. Por fim realizamos o desejo de minha companheira: dançamos. Fomos a um bar-restaurante e lá ficamos por muito tempo, nossos corpos se confrangeram e por toda a noite dançamos como se nunca tivéssemos feito outra coisa na vida. Embalado pela música e pelo perfume de Aliel não vi o tempo passar. Durante todo esse tempo, não falamos senão alguns monossílabos. Era que não havia necessidade, a música falava por nós, enquanto nossos corpos e nossas almas respondiam à altura. Até que em determinado momento eu a beijei. E ficamos assim, por um tempo que os relógios não marcam. O cheiro da boca de Aliel se confundiu com a maresia e com o cheiro de Ranjicniami: foi o beijo de uma eternidade.
Já era madrugada quando saímos do bar, mas aliel não estava satisfeita. Queria ver o nascer do sol. Voltamos para a praia e lá ficamos esperando o sol surgir com toda sua magnitude apolínea. Aliel dormiu no meu colo e não viu o espetáculo de Hélio. Eu assistia a tudo quando de súbito me vi em uma outra época bem remota. Eu era um menininho negro e estava aguardando o mesmo espetáculo do Sol, quando passou por mim um grupo de homens vestidos de lorica, trazendo à cabeça um elmo e na mão uma lança. Próximo ao líder do grupo, um indivíduo de pele curtida trajando uniforme civil, dizia algo como “dar-lhe-ei um beijo no rosto e vocês o reconhecerão”. Os olhos dele brilhavam, preso à sua cintura estava um saquinho de onde, com o movimento rápido dos pés por entre o chão pedregoso, tilintavam umas moedas que lá estavam. O homem ao seu lado ainda perguntou: “Tens certeza de que ele reagirá?” ao que ele respondeu: “Ele não deixará que o levem a termo.” O sol naquele momento nascia, mas sua luz era opaca, triste. Aliel como uma borboleta espanejou em meus braços. Eu acordei. Estivera dormindo? Aliel também despertou de seu sono e reclamou por eu não tê-la acordado para ver o nascer do sol. Fomos tomar café numa merendeira que já abrira suas portas. Depois fomos para casa. Naquele dia eu tinha plantão a partir de uma da tarde, por isso dormi feito uma pedra. Quando acordei, Aliel já tinha ido para casa, entretive-me um pouco brincando com Leila e fui para o hospital, onde me esperava uma legião de enfermos, para quem deveria dedicar toda a minha atenção.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO XVIII
“Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, amor!
E para as tuas chagas o ungüento
Com que sarei a minha própria dor.”
(Florbela Espanca)

Quando completou um mês de sua estada ali, Ângela foi para casa totalmente recuperada. Aliás, salvo algumas exceções, todos que chegavam ali saíam recuperados, a partir do milagre dos anti-retrovirais, tudo graças, não esqueçamos de falar, ao esforço conjunto do governo e de toda a sociedade. Infelizmente em países pobres, principalmente da África, seres esqueléticos morrem a toda hora vítima desse flagelo, e as perspectivas para o futuro não são nada animadoras. Espera-se, portanto, que o mundo se una num grande consórcio, sem interesses particulares, para socorrer esses miseráveis. Que nações representadas por seus governantes deixem de lado seus desafetos e suas fronteiras, parem de fomentar guerras para se juntar numa luta sem trégua pela salvação da humanidade. Pois bem, depois que saiu do hospital, Ângela passou a me visitar, mesmo nos dias em que não ia dar seqüência ao tratamento. Depois passamos a sair, íamos ao cinema, ao teatro, a shows e atividades afins. Quando demos pela coisa estávamos namorando. Às vezes eu lembrava da outra época, de nosso namoro de outrora. Naquele tempo nosso relacionamento parecia uma tromba d’água, as cataratas do Iguaçu. Agora, assemelhava-se a um manso lago azul, fazíamos amor, é óbvio, mas com o consentimento do momento e da ocasião, sem nos atropelarmos, sem os desatinos de então. Ela me levou pela primeira vez a conhecer seus pais, e eu fiz o mesmo. Num outro dia, fomos pela primeira vez para ela conhecer Aliel e seu esposo. Apesar de não querer demonstrar, Aliel se roeu de ciúme. Eu ria interiormente com a situação, no mínimo hilária, era ciúme fraterno. Descobri com o tempo que formávamos um quarteto, por isso resolvi casar com Ângela, para surpresa até mesmo minha. Foi uma decisão súbita. Eu estava dormindo quando no meio da noite despertei com aquela idéia me carcomendo o juízo. Eu estava prestes a terminar meu curso, as minhas funções iriam se intensificar e eu precisava de um porto seguro para garantir o retorno do navio cansado da labuta. Por outro lado, aliel e Ernani eram tão felizes que a esperança de vir a tê-la quase inexistia. Além disso, Ângela havia mudado e nossos seres se completavam. Pela madrugada consegui dormir, mas logo acordei despertado dessa vez pelas palavras do Wellington sobre alguém que queria me fazer sofrer e me veio à memória o que ela me fizera no passado, entretanto a idéia de sua metamorfose reforçava a decisão, e dormi convicto do que deveria fazer. Na manhã seguinte comuniquei aos meus pais que resolvera me unir em matrimônio com Ângela. Eles não acharam problema nenhum, principalmente depois de eu explicar que, mesmo tendo o vírus da AIDS, Ela poderia perfeitamente ter filhos, sem transmiti o HIV para o bebê. No final de semana oficializamos o noivado num almoço na casa de Aliel, que no fundo não escondia que estava sendo picada pelo mosquito do ciúme.
Dois meses depois estávamos casados e felizes. Pouco tempo depois, num passeio à praia, Aliel nos contou que estava grávida e que teria um bebê para dali a oito meses. No domingo seguinte foi a vez de Ângela revelar o que já suspeitávamos, também seríamos pais. É uma sensação singular esta de ser pai, poder transmitir seu ser a uma criança que vai nascer. Para nós quatro, esse sentido era maior porque ficávamos pensando quem encarnaria em nossos filhos, que espírito estava na fila para renascer um nosso rebento? Entre os cuidados que tinha com um paciente e outro, ficava pensando naquela criaturinha que se formava, como seriam seus traços físicos; como será seu gênio, tranqüilo, enfezado, tímido, extrovertido. Foi com grande expectativa que recebemos o resultado dos exames, e para nossa alegria o feto não era soropositivo.
Os bebês nasceram na mesma semana. Aliel dera à luz um lindo menino, e Ângela, uma espetacular menina. Conforme já estava combinado, nossa filha chamou-se Leila, Aliel de trás pra frente, e o filho de Aliel chamou-se Nadiel, anagrama de meu nome. Durante o primeiro ano de vida de Leila e Nadiel, éramos as seis pessoas mais felizes do universo. Encontrávamos, sempre que podíamos, em praças, clubes e ambientes afins. Quando estava de plantão ou quando o hospital requeria minha presença mais constante, Ângela ficava com Aliel, e assim nossos filhos cresciam unidos, irmanados pelo afeto que nos unia. Ângela dera uma ótima mãe, melhor do que eu poderia imaginar, atenciosa, carinhosa, prestativa. Não havia ressonar da Leila mais forte que ela não despertasse e fosse ninar a filha, eu estava feliz por tê-la encontrado naquele dia, no leito do hospital. Ernani também se mostrava bastante feliz pela situação, tornara-se amigo de Ângela, e eu ficava enternecido quando ia buscá-la juntamente com a nossa filha e encontrava os dois, ela e Ernani, conversando na sala, ou compenetrados numa partida de xadrez. Muita vez, Aliel dormia enquanto essas cenas ocorriam. Éramos, pois, felizes...



CAPÍTULO XIX
“De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.”
(Vinícius de Morais)


... Até o dia e que o mastro onde tremulava a flâmula de nossa felicidade ruiu sobre nossas cabeças, para assombro dos sobreviventes. Era meia noite de sábado e eu estava de plantão. Nesse dia os corredores pareciam mais lúgubres do que o costumeiro, o sofrimento daquelas criaturas me causava um calafrio inexplicável. Eu andava pelos corredores ouvindo-lhes a tosse ou os gemidos que se misturavam num lamento triste. Quando o bip chamou. Era aliel. Fui até o telefone mais próximo e liguei, apreensivo, pensando ter havido algo com Leila. Aliel chorava e pedia desesperadamente que fosse ao seu encontro. Os soluços não lhe permitiam palavras elucidativas, e eu, após chamar um amigo para me substituir, chispei para lá. No caminho minha cabeça girava e eu imaginava as mais diversas situações que poderiam ter ocorrido para aquele desespero de Aliel, mas jamais atinaria com a verdade. Chegando lá, encontrei-a do mesmo modo como estava ao telefone. Ela correu para mim, me abraçou e soluçando me disse:
─ Um acidente terrível com Ernani, vamos comigo. – Disse entre soluços!
─ Claro! – disse eu – vamos logo! – e pegue o telefone para ligar para Ângela, e fiquei surpreso por ela não estar. Quem atendeu foi Marlene, nossa diarista, que me dissera que Ângela lhe havia pedido para ficar com Leila. Outrossim, liguei para o IJF para saber se alguém já havia ido ao local de algum acidente na BR. A resposta foi afirmativa. E eu saí com aliel para o local do sinistro um pouco mais tranqüilo, pois se havia socorro era porque havia alguém para ser socorrido.
O local estava já cercado por policiais e equipes de reportagem. Nós nos identificamos e fomos liberados para ver a cena de perto. O carro do psicólogo estava totalmente destroçado. Os bombeiros tentavam a custo retirar as vítimas, duas, um homem, Ernani e uma mulher, cujos rosto estava coberto pelas ferragens. A escuridão também contribuía para que não identificássemos a companheira de Ernani. Aliel abraçada a mim, não chorava, apenas soluçava de vez em quando. Conversando com os policiais, ficamos sabendo que um caminhão, que se encontrava a alguns metros dali, havia avançado a contramão. Continuamos esperando apreensivos enquanto o local transformou-se num inferno de carros e curiosos. O socorro já chegara há algum tempo, mas não podia agir enquanto as vítimas não fossem retiradas dos destroços. Em pouco tempo alguém nos chamou, era o médico do socorro: “Infelizmente não foi possível salvá-los” Falou enquanto tirava as luvas e as atirava longe como um lutador que joga a toalha após a derrota. Foi quando finalmente pudemos ver os rostos dos corpos exânime: Ernani e Ângela haviam morrido abraçados sob as ferragens do que antes havia sido um automóvel de passeio. O choque para mim não fora menos cruel do que o fora para Aliel. Não compreendíamos o que estava acontecendo, se uma bomba estourasse próximo a nós não causaria tanto espanto, como foi o causado naquele momento por aquela surpresa. Aliel desmaiou nos meus braços, e tive de levá-la para casa. Chamei seus pais e, mesmo abalado, tive de fazer um esforço sobre-humano para me controlar. Sempre achei que as pessoas têm todo o tempo do mundo para se rasgarem, arrancar os cabelos ou bater com a cabeça na parede, menos quando precisam ter calma. Fui para casa ver como estava minha filha, tomei um banho, troquei a roupa e fui cuidar da burocracia que compete aos vivos para dar termo aos mortos.
O dia seguinte foi o mais longo de toda minha existência. O velório se realizou na igreja do cemitério Parque da Paz. Mesmo havendo profundo sofrimento envolvido no caso, não houve quem se opusesse a realização dos enterros no mesmo horário e lugar, a missa também foi uma só. Coincidentemente havia naquele domingo muitos enterros a se realizarem ali, o cemitério fervilhava de familiares de finados, parecia que era o dia dos mortos. Aliel estava abraçada a mim. Já não soluçava. Vez por outra me olha e fazia um gesto com a boca de quem pedia desculpas pelo ocorrido. Estávamos assim, quando senti uma sensação estranha, quase caí. Um amigo médico se aproximou, perguntou se eu estava passando bem, ao que eu disse:
─ Sim, estou bem. – e pedi – fique aqui com aliel, que vou tomar uma água.
Quando me dirigia para fora, pensando que o meu mal-estar era provocado pelo aglomerado, pois sempre tive um pouco de claustrofobia, desmaiei. Súbito vi quando as pessoas correram para mim, vi também Aliel desesperada. Meu amigo médico levou-me imediatamente para uma sala. Tudo sumiu. Ao redor de mim, vi Ângela, Ernani e vários outros recém desencarnados. Ernani estava abstraído, distante, perdido, dir-se-ia numa atitude quase resignada. Sua áurea demonstrava arrependimento. Ângela ao seu lado, falava palavras ensandecidas, gritava que sua fraqueza era não ter amor, pois se amasse a esposa não teria caído em sua armadilha e ria, sua áurea era negra, obscurecida por um gênio ruim, cujo imo era difícil de se atingir. Quando me viu, arreganhou os dentes e me perguntou:
─ Que foi? Já vieste te juntar a nós? Ou vieste apenas me agradecer pelo que te fiz? Vai, volta logo para os braços de Aliel. O caminho agora está livre e graças a mim. – falou com uma fala que me lembrou Almerinda, com um sarcasmo irritante.
─ Cala boca, seu espírito apodrecido, você não tem o direito de se reportar aos sublimes – gritei eu – você não se envergonha de, vida após vida, a única coisa que faz é seguir seus instintos, eu sempre soube o que realmente lhe dá prazer: é ver a vida das pessoas destruída.
Nesse momento ela se aproximou de mim, fez um muxoxo de quem está arrependida e me falou baixinho:
─ Mas o caminho agora está livre, meu bem, – repetiu – volte logo para os braços de sua Aliel, antes que nos venham buscar. Ou você pensa que eu nunca soube de sua história com ela, hem!? Aquele bobão me contou tudo. – e apontou para Ernani, que estava muito distante.
Eu a afastei de mim com força, e ela gargalhou sonoramente, fez um desdém e foi ter com os outros que estavam mais afastados e lá ficou fazendo terror sobre o que os esperava. Aproximei-me de Ernani, ele me fitou e me pediu desculpas, em seguida falou:
─ Durante toda minha existência eu me pautei a ser um homem digno, honesto, fiel. E o fui até o dia em que essa coisa ruim – e apontou para Ângela – entrou na minha casa e começou a me torturar. Eu devia ter resistido, pois é impossível uma pessoa ser tão dissimulada. Na frente de vocês, sua e de Aliel, era um anjo, seu olhar para mim era quase fraterno. No entanto, quando vocês não estavam, havia lascívia em seus olhos, luxúria em seus trejeitos, mel em suas palavras Quando dei por mim estava vivendo o céu em vida. Agora estou vivendo o inferno na morte. – e me pediu novamente desculpas e se afastou para o seu limbo.
Nesse momento todos os espíritos saíram para o campo verde, salpicado de branco da cal dos jazigos. Alguns choravam, lamentavam-se por abandonar a vida, outros como Ernani, pareciam estar num profundo estado de resignação. Sob toldos brancos abriram-se covas, as de Ernani e Ângela postaram uma ao lado da outra. Eu vi Aliel amparada pela mãe, enquanto os pais de Ângela ficavam a alguns passos atrás. Foi em silêncio, que os corpos desceram ao leito derradeiro. Alguns espíritos gritavam quando a luz chegou para levá-los, outros apenas baixaram a cabeça, Ângela ria alto, escandaloso. E eu assisti a tudo entristecido por ela. Quando nos encontraremos de novo? Terá ela tirado dessa sua estada aqui na terra alguma lição de fato para sua evolução? Infelizmente, assim como há pessoas, espíritos reticentes, é claro, também os há.

NA ESCURIDÃO MISERÁVEL

FERNANDO SABINO  “Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o m...