CAPÍTULO XV
“Como, dentro do mar, libérrimos, os polvos
No líquido luar tateiam a coisa a vir
Assim, dentro do ar, meus lentos dedos loucos
Passeiam no teu corpo a te buscar-te a ti.”
(O Mergulhador)
Voltemos à nossa narrativa principal. Nossos leitores e leitoras, mais estas que aqueles, devem estar ansiosos por saber o que aconteceu, quais foram as decisões de nossa figura principal. Pois bem. Como diz o provérbio “Com a sabedoria edifica-se a casa, e pela inteligência ela se firma.”. Foi de forma inconsciente, seguindo esse dito bíblico, que Larissa resolveu edificar sua personalidade, pois o prazer, conforme nos informa Eclesiastes “também é vaidade e correr atrás do tempo”. Uma noite, enquanto o sono não vinha, ela pôs-se a refletir sobre que rumo daria a sua vida e sua orientação sexual, pois depois de muitos acontecimentos ela percebia-se perfeitamente dona de si. O sexo, o gênero, a decisão de quem amar era um detalhe na sua vida. Ela tinha a mãe com quem compartilhar boa parte de seu tempo. Sabia que ter ou não um namorado ou uma namorada não devia ser um objetivo de vida, tinha de ser uma consequência. Dever-se-ia permitir conhecer pessoas. Lembrou então de Clarinha que vivia paquerando, ficando com um aqui outro ali e não se decidia por nenhum ou nenhum se decidia por ela. Na escola também era assim. Com qualquer uma colega com quem conversasse, notava a ansiedade por encontrar alguém, deixavam a própria existência em segundo plano, como ocorreu com Jaqueline. Por falar nela, onde andaria? Teria aprendido a lição? Teria cometido outro desatino como aquele? É! A vida é cruel principalmente com quem não avalia o preço que pode pagar por uma atitude impensada. Não! Definitivamente ela seguiria os conselhos do tio Jonas. Namoraria a quem lhe aprouvesse, sem tornar isso um objetivo de vida, sorriria para as pessoas, deixaria o silêncio aos mortos e as gargalhadas aos bobos. Esses novos conselhos do tio ela os encontrara certa vez, quando ela e a mãe visitavam Lúcia, viúva do tio. Ela (Larissa), que era curiosa e adorava se isolar para ler qualquer coisa que lhe caísse nas mãos, foi presenteada pela tia com uma caixa, na qual estavam os escritos diversos do tio Jonas. Foi com grande alegria e entusiasmo que explorou aquela floresta virgem de idéias e papéis, e para seu susto lá estava um outro poema escrito para ela:
APOLOGIA À CANÇÃO DO MUNDO
(para Larissa no seu aniversário de quatorze anos)
Desconfia do silêncio
Sorri, bate palmas, faze barulho
O silêncio é tão insuportável que deu origem ao som
Como à luz a escuridão
O silêncio está sempre carregado de mistério, de sombra
(Mas sempre não é todo dia)
Não te iludas
Quando a cidade dorme, não dorme
É nesse silêncio profundo que amantes se dão
Revira-se pelas camas, e redes, e chãos, em busca de se achar
Não te iludas com o silêncio
Foi silenciosamente com três beijos que Judas cumpriu sua sina
Foi no silêncio de Ouro Preto que se confidenciou e se coseu uma nova bandeira
(ainda que tarde)
Foi nesse mesmo silêncio que um tal Joaquim a traiu.
Foi também em silêncio, que os vermes roeram as frias carnes de Machado, Augusto...
E foi no silêncio da asfixia química que o holocausto se consumou
Não te iludas.
Cultua um só tipo de silêncio: o benéfico
O silêncio do ler:
É nos mínimos intervalos entre as palavras que se descobre o mundo
Que se vislumbra a fantasia, e a realidade...
O silêncio do escrever:
É no correr da caneta ou das teclas que damos asas ao silêncio da imaginação
Que se recria o pensamento.
Mesmo quando amares, não o faças em silêncio.
Desconfia do silêncio
Sorri, bate palmas, faze barulho
Deixa o silêncio aos mortos e as gargalhadas aos bobos.
(Julho de 2000)
O que mais a surpreendia era que fora escrito à mesma época do anterior, mas tinha como subtítulo “Para Larissa, no seu aniversário de quatorze anos”. Como o tio adivinhara há quatro anos como ela estaria se sentindo agora? Sabia que ele tinha uma percepção de mundo e um conhecimento de gente impressionantes. Isso com certeza, aliado ao fato de conhecer a irmã, Dona Fernanda e o marido desta, além do seu conhecimento de astrologia, possivelmente lhe tenha facilitado muito imaginar a confusão que iria na cabeça da sobrinha quando chegasse a essa idade.
Foi por esse tempo que Larissa voltou novamente a procurar a turma. Sabia de suas futilidades, de suas infantilidades, mas tinha de respeitá-las mesmo assim. Foi então que descobriu que Ígor tinha viajado. Havia passado no concurso para fuzileiro naval e estava em Natal, de onde só retornaria no final de ano para visitar a família. Ela ficou surpresa com a notícia:
─ Nossa que bom, era o que ele tanto queria.
A notícia lhe foi dada por Vivi, que agora via nisso uma oportunidade de ouro para se acercar novamente da menina. Para o grupo a novidade, no entanto, era o retorno de Larissa.
─ Puxa vida que legal. – Bordoneou Clarinha. – Agora o grupo está completo.
Para desespero de Vivi, Larissa não lhe deu espaço. Por mais que ela procurasse ficar junto dela, a menina se mostrava amadurecida e, mesmo sem descartá-la, escorregava-lhe pelas mãos, deixando-a apreensiva, ansiosa por tê-la, sentir-lhe o cheiro e saciar seus instintos.
Passara pouco tempo, pouco mais de quatro meses, mas na adolescência o tempo urge, passa numa velocidade estonteante e com ela a inocência e a ingenuidade de suas vítimas. Como diria Gregório de Matos, não aguarde que o tempo transforme essa flor, essa beleza em terra, em pó, em cinza, em sombra, em nada. Assim amadureceu Larissa nesses quatro meses, em que praticamente ficou em casa cuidando para que a mãe não sofresse uma recaída, apesar de não ter sido necessária essa atitude. Ela também precisava refletir sobre si mesma e o que lhe aguardava o futuro. Então quando ela voltou ao seio da turma não era mais uma menininha de quatorze anos, era uma moça com a mesma idade. Em Vivi o tempo também causara mudanças. Ela não mais escondia das pessoas suas preferências sexuais, tampouco sua personalidade forte era desconhecida, a ponto de causar certo mal estar nas mães de algumas garotas cujas casas ela frequentava, e cujo temperamento frosô era estimulado. Agora sua liberdade de certa forma estava cerceada, sua pessoa já era motivo de expectativa por parte das matildes e dos matildes de plantão, por isso ela buscava outros grupos mais acolhedores, cuja orientação condissesse com a sua. É a lei da existência, que reúne os seres em agrupamentos iguais. E era exatamente o conhecimento instintivo dessa lei que a abespinhava e fazia crescer a vontade de trazer a filha de Dona Fernanda para jogar no seu time. A percepção da mudança ocorrida na menina e o controle que esta tinha sobre si desnorteavam-na, e ela partiu para o ataque. De distantes tentativas passou ao assédio.
Certa vez, era quase madrugada quando Larissa recebeu uma ligação pelo celular:
─ Oi, Lissa, sou eu sua loirinha.
─ Quem? Perguntou Larissa meio atordoada.
─ Eu, gatinha, Vivi. – respondeu ela com a voz de cadela no cio – Desculpe ligar a essa hora, mas é que estou morrendo de saudades de seus beijos, morrendo de tesão. Que tal a gente se encontrar amanhã. Só mais uma vez. Eu juro que se você não me quiser, se meu corpo não for a sua praia eu não te procuro mais.
─ Tá legal, eu te encontro amanhã na tua casa, depois do almoço, tá bom? – respondeu Larissa e desligou o telefone.
Vivi estava deslumbrada. “Nossa não pensava que iria ser tão fácil, agora ela será minha.” E deitou, tentando dormir, mas a ansiedade por ficar frente a frente com a dona dos seus desejos lhe tirou o sono, e só quando o sol já mostrava sua claridade pelas frestas da janela ela pregou olho.
Durante toda manhã Larissa permaneceu concentrada em como deveria agir diante da loira, que lhe despertava sentimentos ambíguos. Estava também ansiosa, mas sua ansiedade era controlada pelos sentidos, em nenhum momento deixou escapar o auto controle. Terminado o almoço não deixou de notar na roupa que a mãe usava. E comentou.
─ Que bom, mãe, te ver de roupa nova dentro de casa. Bom sinal.
─ Ah, você notou, é que minhas roupas de casa estão muito velhas e eu estou colocando algumas novas na baia. – Respondeu a mãe como se se quisesse desculpar. Para ela era difícil toda aquela mudança, mas ela aos poucos estava se acostumando e até pensava em entrar numa academia para melhorar a forma. Para Dona Fernanda e para qualquer pessoa de sua idade, o tempo passa rápido, mas as mudanças, devido aos hábitos enraizados, não ocorrem na mesma proporção. Mas, afinal, o tempo tudo cura, tudo digere, como diria Vieira.
Eram duas da tarde quando Larissa chegou ao apartamento de Vivi. A demora se deu porque ficou embromando pelo caminho para evitar as vistas da maledicência. Mal apertou a campainha, a outra já estava à porta, com um xorte minúsculo e uma blusa fina, quase transparente que lhe deixava ver os mamilos, e foi com um sorriso meio nervoso nos lábios que disse:
─ Entra minha rainha, eu já não aguentava de vontade de te ver.
Larissa, sem dizer palavra, mas mantendo um meio sorriso nos lábios grossos que a tornava mais sensual ainda aos olhos da outra, entrou e sondou o ambiente, enquanto, ao seu pé, Vivi era toda prestativa. O ambiente estava a caráter. Janelas fechadas, aparelho de ar condicionado ligado, uma garrafa de vinho dentro de um recipiente com gelo e na tela da tevê um DVD da dupla russa, Tatu, com legenda em português. A música e os gestos das duas cantoras não podiam ser mais sugestivos para o momento:
"O que você vê é o que você tem, uma garota sem arrependimentos, eu não sou ideal – Sou absurdamente quieta, sou só uma garota imperfeita, eu estou acima desse mundo perfeito, sou só uma garota imperfeita"
A anfitriã encheu um copo de vinho e o ofereceu a amiga. Que o recusou para sua apreensão:
─ Que foi meu bem, não quer, o vinho vai deixar você mais leve.
Larissa passou a mão pelo rosto da loira, cheirou-lhe o cabelo e começou falando com uma voz que surpreendeu a outra, que estava acostumada a comandar suas reuniões particulares.
─ Você sabia que é a mulher mais espetacular que já conheci? É sim, eu gosto muito de você. Pra dizer a verdade eu tremo quando estou perto de você. Mas de uns dias pra cá eu tive de enfrentar alguns problemas em casa. Eu e minha mãe passamos por uma barra muito pesada, meu pai saiu de casa. Essas coisas. Cê deve tá sabendo, né. Eu também não tô preparada pra nenhum tipo de relação. Eu quero resolver umas coisas pra depois pensar nisso. Vamos deixar que as coisas aconteçam normalmente, sem forçar. Eu vim aqui porque acho que tinha de falar pra você, afinal você é uma pessoa legal...
─ Mas, Lissa, eu não quero ser legal, por favor, me chame de qualquer coisa mas nunca diga que eu sou legal. Isso me soa falso. Me chama de vagabunda, ordinária, mas não me trata assim. Se você quer ficar com esses caras que não têm nada na cabeça, só pensam em comer a gente e dizerem piada besta, fica, mas não me chama de legal, tá. – falou meio descomposta a loira.
─ Desculpe, eu não queria ofender. É que eu acho você demais, muito interessante, mas eu não tô preparada para nenhum tipo de relação. No fundo eu achei até bom ter flagrado o Ígor com aquela moça, agora eu tô livre. Eu vou deixar o tempo passar. No fundo eu acredito em destino, eu acho que as coisas vêm ao seu tempo.
─ Gata, mas naquele dia foi maravilhoso... – interrompeu novamente Vivi num último recurso. Mas antes que continuasse, a outra contratacou.
─ Eu sei, mas eu tava meio bêbada, depois as sensações não foram legais. Deixa eu te dizer uma coisa. Tudo nessa vida se resolve com o tempo, se a gente... sei lá... tiver de ficar juntas, isso vai acontecer, mas agora eu não quero, não sinto vontade. Desculpa tá!?
─ Suas palavras eram tão firmes e tão sinceras que a outra não tinha o que dizer. Assim ela deu um selinho, terno, em Vivi e saiu.
Na rua ela se sentia vitoriosa, fez aquilo que deveria ser feito da melhor maneira, no fundo ela admirava a amiga, mas não a ponto de seguir seu caminho. Ela faria o seu próprio. No momento certo ela guinaria à esquerda ou à direita, até porque saber o que é certo e errado é apenas uma questão de referencial Seguiria seu coração. Por isso sentia-se livre como um pássaro cujas asas estavam presas nos galhos de uma árvore e agora estivesse livre para alçar o melhor vôo de sua vida. Assim ela poderia fazer parte novamente do grupo do condomínio, já estava se envolvendo em outros na escola, sem dever nada a ninguém, sem baixar os olhos ou fechar os ouvidos a ninguém. Nesse momento lembraram-lhe os último versos do soneto legado pelo tio Jonas.
Terás, tu, sempre essa eternal leveza
Posto sejas fixa imagem surgida
Em virgem terra, ares de passarinho.
E foi para casa resolver um outro problema: estudar para as provas bimestrais que se aproximavam.
CAPÍTULO XVI
“Quando chegares e eu te vir chorando
Te tanto te esperar, que te direi?
E da angústia de amar-te, te esperando
Reencontrada, como te amarei?”
(Soneto de Véspera)
Era semana de provas finais. Larissa havia repassado a matéria das avaliações do dia seguinte. Sentindo-se cansada, resolveu desopilar. Ligou o computador, acessou a internet e entrou numa sala de bate papo, antes escolhera um pseudônimo engraçado: descaroçadora. Ficou por algum tempo teclando com um e outro. Às vezes ria das besteiras que alguém escrevia, noutras se chateava com baboseiras mais irritantes. Quando um nome lhe chamou a atenção: Ígor Mariner. O internauta havia acabado de entrar na sala e:
─ (Ígor Mariner para todo mundo) Oi, alguém quer tc comigo?
─ (Descaroçadora fala para Ígor) Oi, de onde vc é?
─ Sou de Fortal, mas tc de Natal, tô morrendo de saudades de lá, e vc tc de onde?
─ Coincidência, sou de Fortal e tc de Fortal. O que vc faz.
─ Sou fuzileiro naval e vc.
...
...
...
Larissa não tinha mais dúvida, era ele. Nossa aquilo era que se podia chamar coincidência. Passara o dia todo pensando no rapaz e agora ali estava ele, a alguns megabites de distância. Lembrou-se então de uma frase que encontrara entre os guardados do tio Jonas: “É incrível a força que as coisas parecem ter, quando precisam acontecer.” Ela estava radiante, mas manteve a calma e teclou com o ex-namorado durante algum tempo. Antes de se despedir combinou de encontrá-lo no dia seguinte na mesma sala.
No dia seguinte, na mesma hora lá estava ela teclando com Ígor:
─ (Ígor Mariner fala para Descaroçadora) E aí vc boa prova?
─ (Descaroçadora para Ígor Mariner) Fiz, eu estudo, ñ tô a fim de ficar de recupera.
─ Tá certo, aqui a gt estuda d+ tb.
O papo já estava esfriando quando o rapaz:
─ E aí vc tem namorado?
─ Ñ. E vc?
A conversa tomou esse rumo e esquentou novamente. Ele contou-lhe a história de seu namoro e do final angustiante que teve. Revelou sua fraqueza, mas também levantou uma suspeita em Larissa:
─ Sabe, (teclou ele) no fundo eu acho que caí numa armadilha.
E revelou à menina suas desconfianças sobre Vivi ter armado uma para cima dele. Isso deixou Larissa aparvalhada, “caramba, fazia sentido o que o amigo de bate papo lhe contava a ela, que na verdade tinha sido a grande vítima da história, ou a grande vilã, pois não custava nada ter dado uma chance ao rapaz, que sempre revelara bom caráter.” Ela teve em determinados momentos ímpetos de revelar-lhe sua identidade e pedir-lhe desculpas pelo que deixou acontecer. No entanto tinha medo de piorar ainda mais as coisas, sabia que as conversas virtuais são impessoais demais, a distância que separam as pessoas nada tem de reais. Mesmo quando se conhecem, esse tipo de diálogo não deixa transparente o verdadeiro laço que podem uni-las. Portanto teria de esperar o final do ano para tirar realmente aquela história a limpo, resolver sua vida. Se ele a perdoasse, muito bem, caso contrário, tudo bem também. Não iria se desgastar à toa, descobrira, outrossim, em sua curta existência, que as oportunidades existem e que temos apenas que saber administrá-las. Foi assim que ela suportou o lento passar dos últimos dias de novembro e a primeira semana de dezembro, data em que combinaram se encontrar, para se conhecerem.
Era sexta-feira, final de tarde quando ela se dirigia à casa de Clarinha para emprestar-lhe uns livros, a fim de que a amiga estudasse para a recuperação. Ao virar a esquina, deu de cara com Ígor. A aceleração do seu coração chegou a mil, a ponto de ela pensar que ele fosse parar. Ele por sua vez também teve uma descarga emocional, ficou lívido. Ela jamais imaginaria que sua reação fosse tão forte, e foi com voz trêmula que o cumprimentou:
─ Oi, tudo bem?
─ Tudo bem, e você?
─ Legal... fiquei feliz quando soube de sua viagem... cê queria tanto... chegou quando.
─ Hoje...
─ Cê tá mais bonito do que antes. – Disse ela quase sem se conter, ao que ele respondeu:
─ Obrigado, cê também tá muito bonita, eu... deixa pra lá, eu vou ali nos meninos, tchau. – Disse retirando-se para a calçada onde estavam os colegas de sempre.
O encontro entre os dois estava marcado para dali a dois dias e foi com grande apreensão que ela aguardou o tempo passar. Às vezes pensava se não seria mais correto ligar para o rapaz e contar que ela era a descaroçadora, mas ria da situação e resolveu esperar.
O shopping estava cheio como em toda época natalina, pessoas transitando de um lado para o outro com sacolas e mais sacolas, gringos brancos dos olhos azuis e estaturas enormes por todo lado, era um espetáculo de cor e de gêneros. Ao chegar à praça de alimentação, de longe ela viu o ex-namorado, de costas. Aproximou-se lentamente, pediu licença e sentou. Ele é claro tomou um susto, não sabia se pedia para ela se retirar ou sentar. Foi preciso que ela se apresentasse.
─ Prazer, sou a Descaroçadora.
Ígor tomou o maior susto de toda sua vida e desabou numa gargalhada que ela não sabia se desaparecia dali, se o esbofeteava ou se ria também. A última opção foi espontânea e os dois ficaram rindo e olhando-se até que ela pegou a palavra e lhe contou tudo pelo que passara até agora e finalizou:
─ Quando eu te encontrei naquele dia de forma virtual eu fiquei pensando na coincidência e lembrei de uma frase que vi uma vez nas coisas do tio. Era assim: “É incrível a força que as coisas parecem ter, quando precisam acontecer.” E eu pensei “caramba como a internet é pequena.” E u pensei também que seria possível que a gente voltasse a namorar, sei lá... – Apesar da aparente tranquilidade da voz, as mãos por baixo da mesa suavam devido ao atrito, daí o motivo pelo qual as palavras se repetiam num discurso que se realizava mais com os olhos do que verbalmente.
Foi compreendendo que as desculpas e afirmativas não teriam fim nem se completariam, que as palavras se repetiriam infinitamente, que Ígor tomou-lhe as mãos, umedecendo as suas e a beijou, enquanto os olhos de ambos se fechavam.
Que coisa boa é o beijo, principalmente quando ele ocorre entre duas pessoas cujo desejo de se encontrar é mútuo, quando há reciprocidade de sentimento. Mas por que fechamos os olhos ao beijar?
SONETO DO BEIJO
Por que fechamos os olhos ao beijar?
É um grande mistério para os que não amam
Mas a resposta é óbvia aos que se apaixonam:
Quem ama só o ente amado quer mirar.
Quando os lábios começam a se tocar,
As pálpebras lentamente se apagam
Os corações rapidamente se acalmam
É a magia do amor a se manifestar.
O resto são sonhos, delírios,
É a respiração que se torna ofegante
O balé das mãos que se tocam no ar.
Os sinos tocam, chovem lírios,
Inicia-se a revolução pujante
Inicia-se por fim o ato de amar.
E assim a poesia, que é um estado de espírito que leva a Deus, se fez para aqueles dois seres, afastados pela inconsequência, pela incúria e unidos pelo sublime, pelo amor.
EPÍLOGO
“Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos
[salvar.”
Passou-se um ano. Eram 25 dezembro de 2005, quando Larissa chegou a casa com o namorado. Havia murmúrio lá por dentro, vozes baixas. Ela estranhou e foi até o quarto de onde vinham os sussurros, o namorado a acompanhou. Lá estava a mãe sentada na cama com um bebê de poucos dias de nascido. Era linda a menininha que esperneava com os olhos vivos e uma mamadeira na boca. Ela sugava quase com violência o bico, como reclamando por um seio de verdade. Dona Fernanda tinha os olhos umedecidos. Diante da perplexidade, da filha ela murmurou:
─ É nosso presente de natal, enviado por Deus. Seu nome será Cristiane, em homenagem a Cristo. Ela veio para mudar toda a história dessa casa e quem sabe mudar a história da humanidade. E as lágrimas vieram aos olhos de Larissa e do namorado.
Depois Larissa ficou sabendo que a menina era filha do pai com a atual ex-mulher. Esta chamava-se Lourdes e, não suportando as irresponsabilidades do companheiro, resolvera ir embora, abandoná-lo. Mas como estava grávida não pôde fazê-lo antes. Assim esperou a filha vir ao mundo para concretizar seu plano. Enviara uma carta à dona Fernanda, pedindo-lhe que não saísse de casa durante o dia de natal, pois “Deus estará enviando um lindo presente para você”. Assim realizou seu plano, certa de que a ex-mulher do companheiro juntamente com a filha, por tê-lo suportado por tanto tempo, teriam amor e carinho para educar aquele minúsculo ser. O pai, quando percebeu a ausência da amante e da filha recém nascida, deu graças a Deus, por saber que Lourdes lhe havia tirado mais um peso das costas, pois no seu íntimo egoísta, o que havia de humano lhe dizia que a atual companheira, por ser mulher, cuidaria bem da filha. E nunca soube o que acontecera na verdade. Já Dona Fernanda e Larissa souberam por terceiros a história da pequena Cristiane e souberam amá-la, como se ela tivesse saído das próprias entranhas.
FIM